Entre mitos e resistências: uma conversa sobre a Coreia do Norte

Entre mitos e resistências: uma conversa sobre a Coreia do Norte

Invasões, genocídio, revolução e especulações: o pesquisador Lucas Rubio falou à Badaró sobre a pouco conhecida história recente norte-coreana

Entrevista por Vitória Regina
Introdução e arte por Norberto Liberator

Com justiça ou não, eleger heróis da pátria é direito dos que comandam uma nação. Douglas MacArthur, que liderou as tropas das Nações Unidas na Guerra da Coreia, é chamado de “general estadista” em seu país, os Estados Unidos da América. À parte de condecorações e outras honrarias, como o posto de herói nacional, MacArthur foi um criminoso de guerra responsável por um genocídio que, segundo seu comandado e também general Curtis LeMay, matou cerca de 20% da população da Coreia do Norte.

A título de comparação, se considerarmos os 16,6 milhões de judeus que havia no mundo em 1939, o regime nazista matou cerca de 37% daquela população. Um leitor hipotético, condicionado a minimizar os crimes de guerra do imperialismo, poderia dizer: “mas é quase o dobro”. No entanto, a comoção não é só o dobro. Há dezenas de museus, centenas de obras cinematográficas e milhares de livros sobre as atrocidades nazistas, como não deveriam mesmo deixar de haver. Quantos sabiam, contudo, dos números sobre o massacre na Coreia?

A memória coletiva norte-coreana, por motivos óbvios, nunca se esqueceu do holocausto praticado por aqueles que, menos de uma década antes, haviam se reunido para “solucionar conflitos através da diplomacia”. As tropas de MacArthur representavam não os Estados Unidos como nação, mas a ONU, afinal. Foram despejadas 635 mil toneladas de bomba em um território de 120,5 mil km². Uma média de 5,2 mil bombas por quilômetro quadrado. Dados do governo norte-coreano à época relatam a destruição de 5 mil escolas, mil hospitais e 600 mil residências.

A República Popular Democrática da Coreia — conhecida por Coreia do Norte, Coreia Popular ou ainda pela sigla RPDC — também elegeu seus heróis. Kim Il Sung, que morreu em 1994, é o presidente eterno. A quantidade de estátuas e de outras prestações de homenagem estarrece a mídia hegemônica alinhada às potências ocidentais. Kim era um homem centralizador. O regime norte-coreano é altamente militarizado. Mas não há registro, nem mesmo desconfiança, de que os militares daquele país tenham ceifado as vidas de 20% da população de algum outro.

Devemos reconhecer que há, sim, um regime no qual as crianças são doutrinadas desde cedo a declarar outros povos como inimigos e a exaltar aqueles que comandam seu país. Nas escolas, são obrigadas a jurar lealdade ao sistema político e econômico daquele lugar, que se declara representante de uma divindade na Terra. Ainda na fase de alfabetização, têm de fazer, com o braço esticado, uma promessa: “eu juro fidelidade à bandeira dos Estados Unidos da América e ao que sua república representa; uma nação sob Deus, indivisível, com liberdade e justiça para todos”.

Lucas Rubio, presidente do Centro de Estudos da Política Songun (Ceps), é um estudioso do processo revolucionário da Coreia do Norte, que traz outra perspectiva sobre o regime norte-coreano e a ideologia juche, a qual baseia a política do país. Você pode concordar ou não, pode achar que ele exagera ou não; de qualquer forma, vale a pena conhecer o outro lado da história e dar atenção a alguém que se dedica a estudar, com seriedade, uma realidade pouco conhecida, muito especulada e demasiado mistificada.

Rubio, que esteve na Coreia Popular em 2018, fala sobre as invasões imperialistas na península coreana ao longo dos anos e sobre a Guerra da Coreia na década de 1950, bem como a reconstrução do país. A relação com a Coreia e outros países socialistas do Século XX também foi comentada, bem como temas que geram falsas polêmicas, como o mito da dinastia norte-coreana e o acesso à internet. Confira abaixo a entrevista na íntegra. 

Vitória Regina: Antes da ameaça imperialista norte-americana, a Coreia foi anexada pelo Império Japonês e teve sua língua e sua cultura deixada de lado. Fale um pouco sobre essa ocupação japonesa e os movimentos de guerrilhas que surgiram como resistência. 

Lucas Rubio: O Japão, com ânsia de se tornar uma potência regional e global, seguindo uma tendência de modernização interna, acabou por desenvolver desejos extremamente expansionistas na virada do século XIX para o XX. A Guerra Russo-Japonesa é um dos exemplos de como os japoneses ambicionavam se expandir na região. A Coreia foi o primeiro alvo de uma ação mais direta e prolongada. 

Em 1910, foi invadida por tropas do Japão que lá iniciaram um regime colonial cruel de exploração econômica e humana. Além de roubar os ricos recursos minerais e agrícolas para alimentar as suas indústrias, os japoneses rapidamente obrigaram milhões de coreanos a trabalharem em regime escravo, para não contar o sequestro de milhares de jovens coreanas que foram enviadas como escravas sexuais dos soldados japoneses. Outras áreas do país também foram afetadas, como a cultura e História. Os japoneses pisaram sobre toda a cultura coreana, inclusive proibindo o uso da língua coreana nas escolas e obrigando o povo a mudar os seus nomes para nomes japoneses. 

Diante desse cenário caótico de desastre nacional, surgiram vários movimentos de contestação, indo de mais moderados e liberais até movimentos revolucionários influenciados pelos comunistas russos. A família de Kim Il Sung, considerado hoje o fundador da Coreia moderna, estava inserida nisso. O seu pai, logo nos primeiros anos de fundação, havia organizado resistências contra os japoneses. Mas seria o próprio Kim Il Sung que daria um caráter mais bem articulado e efetivo para a luta anti-japonesa ao assumir um socialismo de caráter patriótico e adequado às características coreanas, o chamado Juche. 

Ele também delineou que a luta deveria ser armada contra o ocupante fascista japonês e organizou um exército de guerrilhas que operou por muitos anos nas inóspitas montanhas e florestas do norte do da Coreia, na divisa com a China. Em vários momentos, havia contato entre esse exército insurgente coreano e também os revolucionários chineses e o Exército Vermelho da URSS. 

Houve participação feminina no processo revolucionário? 

Sim, desde o começo. Os revolucionários de Kim Il Sung centravam a sua luta não somente na questão da libertação nacional como também na construção de um futuro país socialista. E isso incluía derrubar milênios de tradição cultural machista. As mulheres foram força de resistência tanto quanto os homens. 

Os batalhões femininos do Exército Popular Revolucionário da Coreia eram especialmente temidos se tivessem entre suas fileiras uma mulher chamada Kim Jong Suk, que futuramente até chegou a se casar com Kim Il Sung  de quem era guarda-costas  e ter um filho dele, Kim Jong Il (futuramente líder do país). Kim Jong Suk não só introduziu novas técnicas militares como também conduziu ela mesma operações guerrilheiras contra as posições japonesas e introduziu muitas mulheres na luta. 

Os ocupantes e guerrilheiros diziam que as balas de Kim Jong Suk tinham olhos porque era uma boa atiradora e pessoa muito metódica. Isso se reflete na sociedade até hoje, onde as mulheres são muito inseridas em vários assuntos da sociedade, mas pessoalmente creio que ainda há um pouco mais a se avançar em alguns aspectos. 

Em 1930 aconteceu a Conferência da Kalun. Qual foi a importância dessa conferência para o desenvolvimento da ideia Juche? E o que é a ideia Juche? 

Essa conferência foi um divisor de águas no processo. Até 1930, havia confusão e divisionismo entre a esquerda coreana. Surgiram alguns partidos e organizações depurados pelo território e muitos seguiam cegamente as recomendações e ordens da União Soviética sobre como se achava que deveria ser a luta. Kim Il Sung vai criticar especialmente essa dependência ideológica dos coreanos comunistas e também a divisão interna, muitas vezes causadas por problemas secundários. 

Ele vai estabelecer que a Revolução é um processo criativo e dinâmico que leva em conta as características de cada nação e território e que a Revolução na Coreia seria muito diferente da Revolução na Rússia. Ele então lança as bases da chamada Ideia Juche  um socialismo de novo tipo que proclama as bandeiras da autodeterminação, independência, caráter central nas massas populares como condutoras do processo e um intenso ênfase na capacidade única dos seres humanos de alterarem o seu destino e realidade material. 

“Juche” em coreano quer dizer “sono de si próprio”. Esse socialismo, embora nascido em razão das necessidades coreanas e como uma crítica à “cópia” que alguns tentavam fazer, acabou se desenvolvendo cientificamente para uma filosofia original da qual podemos aprender muito. 

No início da década de 1950, inicia-se a chamada Guerra da Coreia – ou guerra esquecida. Diante disso, comente sobre como aconteceu e quais foram os impactos para a península. Os Estados Unidos ocuparam o lado Sul, mas como foi a participação da União Soviética ao lado Norte? 

Em 1945, já no fim da Segunda Guerra Mundial, a União Soviética avançou sobre a Coreia em conjunto com as forças guerrilheiros comunistas de Kim Il Sung para derrotar os japoneses, não só cumprindo um acordo feito com os Aliados ocidentais como também auxiliando na libertação nacional de um povo. Os EUA enxergaram com preocupação o avanço repentino da URSS pelo Extremo Oriente – já mentalizando um mundo dividido pela Guerra Fria – e temeram até mesmo um desembarque vermelho no Japão. Por isso até lançaram as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki. 

Logo depois, os estadunidenses desembarcaram na Coreia e abocanharam metade sul do país, criando poucos anos depois um Estado fantoche sob tutela militar dos EUA chamado República da Coreia, com um governo reacionário e anti-comunista comandado por Syngman Ree, em 1948. A resposta da parte Norte foi a fundação da chamada República Popular Democrática da Coreia. Os EUA então incitaram a todo custo uma guerra contra o Norte, principalmente após o ano de 1949, quando a China também passou a ser um Estado socialista. 

Nessa altura, a União Soviética já havia saído da Coreia, onde ficou apenas um curto período auxiliando no restabelecimento da ordem, ao passo que os EUA jamais saíram do Sul. Ocorreu ali uma substituição de imperialismo – saíram os japoneses e chegaram os estadunidenses. Em 1950, quando eclode a guerra, os EUA arrastam consigo vários países do mundo numa guerra de puro desejo de conquista territorial e política para alcançar as fronteiras da URSS e China e também esmagar qualquer processo político anti-imperialista.

Os EUA vão usar de toda a violência disponível para destruir a República Popular, bombardeando tudo e qualquer coisa daquele território e matando milhões de civis. Mesmo com todo o uso de força, os norte-coreanos conseguem manter de pé suas posições, contando com a ajuda de soldados da China e também suprimentos da URSS, que participou indiretamente. 

Em 1953, os EUA chegam a uma situação de grave impasse na guerra e resolvem assinar o armistício, que para a Coreia do Norte é um tipo de vitória porque o objetivo de destruição da Revolução não foi alcançado pelos americanos. De qualquer forma, é claro que existiam desejos de ambos os lados para reunificar a Coreia em um só sistema nacional. Mas contando que os EUA eram a superpotência do globo e a Coreia do Norte era um Estado de dois anos de idade, conseguir um armistício nesse contexto foi um grande prodígio. Os coreanos costumam dizer que foi uma luta de uma lebre contra um lobo ou do rifle contra a bomba atômica (e olha que os EUA cogitaram usar tais armas lá). 

Depois da guerra, a URSS, que já estava fora da Coreia, manteve-se como uma parceria econômica à Coreia do Norte, mas os EUA apoiaram sucessivas ditaduras militares na Coreia do Sul que causaram anos de atraso e pobreza generalizada entre os coreanos. Foi só recentemente que o Sul se transformou num exemplo de milagre econômico  e às custas de muito sangue e exploração. 

Ainda neste assunto, gostaria que você comentasse sobre os crimes de guerra cometidos pelos Estados Unidos durante a guerra da Coreia, além da destruição e reconstrução do país. 

Essa é uma parte pouco conhecida de um conflito que já é desconhecido pelo público. Os EUA cometeram vários crimes de guerra durante o conflito. Talvez o mais visível seja o bombardeamento indiscriminado de todo o território da Coreia, calcinando desde fábricas até pequenos vilarejos agrícolas, muitas vezes com armas de fósforo e até mesmo dispositivos de guerra biológica. Uma das estratégias envolvia até destruir diques e barragens para que a água represada inundasse tudo que tivesse abaixo, matando e destruindo ao máximo. 

Outros crimes tiveram caráter de participação mais direta dos militares, como os massacres de civis que tentavam fugir através da ponte de No Gun Ri. Estupros coletivos e assassinato de todos os oficiais políticos feitos prisioneiros era uma diária da guerra. Inclusive milícias de jovens sul-coreanos radicais ganhavam carta branca para fazer o que quisessem com as populações dos territórios sobre os quais eles avançavam. É claro que, provavelmente, em algum momento as forças comunistas tenham cometido algum excesso ou injustiça. Mas fato é que ao fim da guerra, o país estava completamente devastado pela destruição sistemática. 

A reconstrução nacional foi árdua e contou com a participação de todo o povo nos chamados Planos Chollima. A centralização da economia nas mãos do Estado foi a chave da rápida reconstrução. Inclusive nesse momentos foram reerguidos os sistemas de saúde e educação, além da construção, quase do zero, de cidades, fábricas, vias de comunicação e transporte, escolas, hospitais, moradias, etc. Pyongyang, a capital, ao fim da guerra, tinha apenas dois ou três prédios de pé. Foi totalmente reconstruída com planejamento urbano e hoje é o símbolo da verdadeira fênix criada pelos coreanos, sendo uma cidade moderna e muito bela. A reconstrução nacional tirou a Coreia da era da pedra – a intenção expressa dos EUA era destruir qualquer rastro de civilização ali – e a jogou para o mundo moderno. Um salto quântico, praticamente. 

Como era a relação entre União Soviética e Coreia Popular? Se pensarmos em Cuba, após o fim do bloco socialista, a ilha cubana sofreu sério impactos econômicos. O mesmo aconteceu na Coreia? 

A relação entre a Coreia e a URSS sempre foi muito amistosa e de cooperação. Foi com o auxílio da URSS que o povo coreano desenvolveu sua economia industrial do pós-guerra, então a importância desse tipo de relação era muito grande. Quando a China e a URSS tiveram o cisma, a Coreia manteve uma posição independente baseada na auto-suficiência do Juche, não pendendo nem para Pequim, nem para Moscou. 

Quando a URSS caiu, porém, junto com vários países da Europa Oriental, a situação econômica ficou muito grave na Coreia porque boa parte da economia girava em torno da dinâmica com os países Aliados. Do dia para a noite a Coreia se viu praticamente sozinha no mundo, a URSS era importante para eles. Assim como Cuba, a Coreia enfrentou dificuldades nos anos 1990, no que ficou conhecido como Árdua Marcha. 

A União Soviética é comumente citada quando falamos em ajuda em processos revolucionários do século XX, entretanto, esquecemos de Cuba – principalmente durante as ditaduras militares na América Latina – e o papel internacionalista da Coreia Popular. Quais foram os apoios – estratégico, militar, político – ministrados pela Coreia em prol de processos revolucionários? 

É verdade. A Coreia deveria ser mais lembrada por isso, porque ela também foi uma ativa apoiadora de diversas causas revolucionárias no mundo, principalmente na África e na Ásia. O Presidente Kim Il Sung apoiou vários movimentos anti-coloniais nascidos na África após o fim da Segunda Guerra Mundial. O apoio da Coreia era tanto político e diplomático quanto material – os coreanos enviaram suprimentos para diversos grupos revolucionários que alcançaram a independência nacional e logo depois reconheceu os seus governos. Fora da África, outros lugares do mundo também contaram com participação da ajuda coreana. 

A própria Revolução em Cuba é um exemplo, pois o Presidente Kim Il Sung enviou apoio material para os guerrilheiros. Os exemplos são vários outros, passando pela Guerra do Vietnã, na qual a Coreia ficou do lado dos revolucionários do Presidente Ho Chi Minh, até os conflitos árabe-israelenses, sobre os quais a Coreia se posiciona a favor dos árabes e contra Israel. 

Atualmente, a Coreia Popular mantém ajuda militar na Síria, na luta contra o terrorismo e o faccionismo interno, e também auxilia o Irã em alguns aspectos estratégicos-militares. Muitos países do mundo hoje existem graças à Coreia do Norte e nem nos damos conta disso. Alguns líderes já se pronunciaram sobre isso, mencionando a ajuda posterior que a Coreia deu no âmbito técnico e industrial também. 

Agora em relação aos países que passaram por uma experiência no Século XX, como se dá a relação com a atual Rússia, Cuba e China? 

As relações com esses três países são extremamente estratégicas e importantes para a Coreia do Norte. Com a Rússia, a relação ficou muito deteriorada desde o fim da URSS, mas o Presidente Putin retomou um contato mais próximo visando, também, a proteção territorial das suas fronteiras. O comércio e intercâmbio com esse país é importante para a Coreia, muitos trabalhadores coreanos atuam na Rússia, que fica bem próxima. 

Kim Jong Un já se encontrou com Putin, inclusive, que este ano [2020] enviou uma condecoração para o líder coreano em razão dos 75 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. Com Cuba, a parceria econômica é talvez apenas um detalhe diante da grandiosidade política dessa amizade. Inclusive nesse ano de 2020 os coreanos e cubanos estão comemorando com grande alegria os 60 anos do estabelecimento das relações diplomáticas e Cuba e Coreia possuem fortes vínculos revolucionários e anti-imperialistas, sendo ambos os países alvos do mesmo inimigo e sofrem dos mesmos injustos problemas, como os bloqueios. 

Todos os líderes da Coreia já se encontraram com os líderes cubanos, incluindo o próprio Che Guevara. Há pouco tempo, assim que assumiu o mandato, o novo presidente cubano Díaz-Canel visitou a Coreia e se encontrou com o Marechal Kim Jong Un, que o recebeu com uma gigantesca cerimônia. Agora, sobre a China, talvez seja a de maior grau de importância e interatividade. A amizade China-Coreia não é desde os tempos revolucionários de socialismo, vai muito além disso. Há milênios esses dois povos interagem. Claro que as relações são muito mais fortes e importantes de 75 anos pra cá. 

Coreanos e chineses lutaram juntos contra os japoneses e as relações de irmandade foram forjadas com aço e sangue, principalmente porque mais de 1 milhão de chineses lutou na Coreia durante a guerra contra os EUA. O Presidente Mao Zedong chegou a perder o seu filho nesse conflito. Atualmente, a China é um dos poucos países que furam o bloqueio contra a Coreia e comercializam com eles. É o maior comprador dos produtos coreanos e também o maior vendedor para a Coreia, isso para não citar o turismo – a maior parcela dos turistas que entram na Coreia do Norte são chineses. Essas relações também têm os seus momentos de ambiguidade e às vezes, por várias razões, a China também embarga a Coreia ou aprova uma nova sanção. Os atuais líderes – Xi Jinping e Kim Jong Un – já se encontraram várias vezes e são bem próximos. 

No Ocidente temos acompanhado o avanço da uberização e o índice do número de desempregados sempre nas alturas, esse processo ocorre na península coreana? Aproveite e comente sobre a divisão social e sexual do trabalho. 

Não acontece. É um processo que se você mencionar para um norte-coreano ele talvez nem entenda, não faz parte da realidade deles. Uma das grandes conquistas do país é o nível absolutamente zero de desemprego e a garantia total de direitos trabalhistas vastos. Além do emprego pleno, os coreanos desfrutam de férias, que podem ser incrementadas com viagens para regiões turísticas do país pagas pelo Estado, folgas e feriados longos, pagamentos adicionais por mérito, condecorações por conquistas de trabalho, além de outras garantias. 

Por exemplo, se um trabalhador deseja ingressar numa faculdade ou instituto técnico, ele é afastado do trabalho, mas segue ganhando uma pensão do Estado enquanto estuda. Se uma família vai ter um filho, tanto o pai quanto a mãe ganham licença para cuidar do bebê. E tudo isso levando em consideração um sistema de saúde e educação que o próprio Estado está também custeando totalmente. Outra questão é que desde 1946 está em vigor na Coreia do Norte uma coisa chamada Lei da Igualdade Entre Homens e Mulheres, que garante a inserção das mulheres na vida laboral, social, política e militar da nação. 

Lá, as mulheres recebem os mesmos salários que os homens em profissões iguais, naturalmente, e estão ocupando postos de trabalho e governança em várias instâncias. Isso é visível no setor militar, por exemplo, que é, em grande parte, preenchido por mulheres. O Estado também fornece creches e escolas em tempo integral para as mulheres se dedicarem ao trabalho ou estudo sem preocupações. Conquistas da Revolução Socialista.

 Em 2018, você esteve na Coreia Popular, certo? O que você gostou de ver? O que não gostou? Quais foram os impactos que essa viagem teve para o entendimento da realidade coreana? 

Sim, em 2018, a Associação Coreana de Cientistas Sociais me convidou para conhecer o país e participar de cursos em razão do 70º aniversário de fundação da República. Foi uma verdadeira aventura revolucionária para mim, uma experiência muito engrandecedora. Eu já conhecia bem a realidade de lá, mas ver pessoalmente é algo completamente diferente. Eu diria que gostei muito de ver a calma e organização do país, a forma como as pessoas levam vidas tranquilas, sem grandes medos e sem essa competição doentia que vivemos no capitalismo. 

Eu fiquei muito surpreso com as estruturas imensas e muito bem cuidadas em vários aspectos, bem como pequenos detalhes, como salas de descanso e quadras de esporte em fábricas, provas de como as pessoas trabalham de maneira a edificarem um mundo novo e não a enriquecerem os bolsos de alguns poucos. Ah, a gentileza das pessoas e a visível e sincera admiração que elas têm pelos seus líderes e pelo país me emocionaram, pessoalmente falando. Elas realmente se sentem “donas do país” e eu senti até um pouco de inveja pela convicção que elas possuem no futuro. 

Como pontos que não gostei de ver eu citaria algumas dificuldades econômicas, causadas não por má administração estatal ou algo assim, mas pelos bloqueios. Os recursos do país, em alguns setores, são muito escassos e tive a sensação de que sempre estão no limite, economizando o máximo por não poderem comprar por conta dos bloqueios. Eu achei isso muito injusto e acho que os coreanos têm potencial para serem um país ainda mais avançado e moderno se não fossem as dificuldades impostas externamente. 

Ter visto a realidade coreana de perto me deixou ainda mais convicto de que o socialismo é a via de desenvolvimento humano mais avançada e justa e eu passei a me interessar a estudar ainda mais sobre essa Ciência e a particularidade coreana dentro disso. 

Até metade da década passada, os Estados Unidos falavam ”grosso” com a Coreia Popular. Todavia, quando o mundo soube do desenvolvimento bélico em voga no país, o tom mudou. Explique como ocorreu esse desenvolvimento e a importância para questão da soberania nacional. 

Chega a ser algo sintomático. Um país desarmado é um alvo muito fácil da ferocidade dos EUA, mas quando um país consegue alcançar um nível de desenvolvimento bélico considerável, rapidamente o discurso feroz muda para um tom mais amistoso e de diálogo. Seria até cômico. Isso deve ser explicado através de uma palavra: Songun. Principalmente desde os anos 1990, essa prática política e revolucionária do Songun passou a ser largamente aplicada e isso consiste em valorizar os aspectos militares, com a finalidade de aumentar a capacidade de defesa nacional sem se perder no sentido ideológico, mas sem fortalecê-lo. 

Desde então, a Coreia começou a perseguir um programa nuclear e missilístico, que alcançou o seu auge há pouco tempo quando Kim Jong Un testou com sucesso um míssil balístico intercontinental capaz de chegar até os EUA e carregar uma ogiva de Bomba-H em miniatura, uma tecnologia extremamente complexa e exclusiva e muito importante, geoestrategicamente falando. Mas a Coreia só desenvolveu isso porque foi forçada. Desde a queda do socialismo na URSS e Leste Europeu, os EUA fecharam o cerco contra a RPDC, não só com o bloqueio econômico criminoso como também com um cerco militar, introduzindo armas ofensivas na Coreia do Sul e Japão. 

A iminência de uma invasão militar por parte dos EUA era imensa e a Coreia do Norte se sentiu acuada. Para não ser totalmente devastada como foi o Afeganistão, Iraque, Líbia ou outros países que descuidaram do seu exército, os coreanos decidiram desenvolver poderosas armas para se defender diante dos EUA. Foi uma resposta, não um ataque. Por mais paradoxal que pareça, foi justamente o desenvolvimento nuclear da Coreia do Norte que travou e impediu a possibilidade de guerra na Península Coreana, pois a capacidade de resposta deles é tão grande que se torna inviável e impossível atacar aquele país. 

A Coreia do Norte empurrou os EUA de volta para outro beco sem saída: não é possível atacar a Coreia do Norte porque a resposta seria alta demais. Restam poucas opções para os EUA tentarem derrubar o governo coreano, tendo em vista que nem os bloqueios conseguem isso – pelo contrário, parecem reforçar a unidade interna e o senso coletivo de defesa da pátria.

O Brasil exportava produtos – como celulose e soja – para a Coreia do Norte. A eleição de Jair Bolsonaro afetou essa relação?

Na verdade foi o golpe de Estado de 2016. O governo Michel Temer pouco se preocupou com as relações com a Coreia do Norte e inclusive esvaziou a embaixada do Brasil lá. Hoje só um funcionário adjunto trabalha como representante formal. Até 2016, o Brasil comercializava com a Coreia do Norte, em pequena escala, claro, mas em um ritmo curioso: vendíamos produtos primários agrícolas e comprávamos tecnologia dos norte-coreanos, como placas eletrônicas, peças de computadores, telas e afins. 

O atual governo Bolsonaro também pouco se preocupa com essa relação, começada um pouco antes do governo Lula, mas consolidada principalmente no seu governo e depois nos mandatos de Dilma. Inclusive alguns bolsonaristas se desesperam com a presença da Embaixada da RPDC no Brasil, como ficou claro num recente episódio no qual um jornalista lunático da ala Bolsonaro disse que a Coreia do Norte estaria tentando assassiná-lo. 

O Brasil, sem bloqueio ou sanções econômicas, tem 46 milhões de pessoas sem acesso à internet [dados de 2018]. Comente um pouco sobre o acesso à internet pela população coreana. 

A nossa questão nacional de falta de acesso é uma questão de classe, de divisão da riqueza e acesso à informação e cultura, que é totalmente desigual e injusta. Já a questão da internet na Coreia do Norte possui outras variáveis muito diferentes. Antes de mais nada, para eles é muito difícil esse tipo de coisa por conta do bloqueio. Toda tecnologia do mundo moderno é impedida de chegar à Coreia do Norte pelas vias legais e empresas estrangeiras que com eles comercializa são duramente punidas pelos EUA. Há também o fato de que na época que os países estavam montando as suas redes de internet, a Coreia do Norte estava começando a entrar na grave crise econômica já mencionada, então essa questão ficou marginalizada. 

Mas talvez a questão mais complicada seja a questão ideológica. Os norte-coreanos não querem se conectar assim tão diretamente ao mundo por questões de segurança nacional e guerra cultural/ideológica. Conectar todos os computadores do país na internet seria praticamente um suicídio do ponto de vista estratégico – muito facilmente os EUA poderiam obter informações militares 10 sigilosas. Mas uma outra preocupação dos coreanos com a internet é a entrada de ideais hostis ou então a eclosão óbvia de uma guerra de informações e mentiras que inundariam a rede coreana. 

Já é muito sabido que a cultura e internet estão sendo usadas como armas de desestabilização nacional e financiamento de grupos terroristas dentro de países que estão muito distantes dos focos de ataque. Os EUA certamente usariam esses métodos para atacar a Coreia. Mas há lá uma intranet, uma rede que funciona só lá dentro, mas que possui coisas que nós já estamos acostumados – redes sociais, lojas online, sites de pesquisas, bibliotecas, blogs, imprensa, etc. Tive a oportunidade de ver essa rede funcionando tanto em computadores quanto em celulares. Fiquei impressionado e é muito mais moderna e veloz do que eu imaginava. Então veja como é complicada para eles toda essa questão. 

Em 1990, a RPDC enfrentou, por diversos fatores, problemas com a distribuição de alimentos à população. Esses problemas foram superados? Qual o papel das sanções econômicas nessa dificuldade de distribuição? 

Em grande parte sim, esses problemas foram resolvidos, inclusive há bastante tempo, muito embora a grande mídia goste de dizer que até hoje o país está em total crise. Há inclusive alguns relatórios da FAO-ONU que mostram que a RPDC progressivamente vem se recuperando dos difíceis anos 1990 com o aumento da produção alimentar. As sanções econômicas contra a RPDC possuem um caráter diferente das sanções contra outros países.

Ali, configura-se como um cerco militar. Isso é explicado pelo fato de que a situação é de guerra permanente e apenas um armistício foi assinado em 1953, não um acordo de paz. Portanto, quando um dos lados resolve sitiar um país inteiro e impedir que entrem e saiam recursos, isso é um cerco militar, talvez o maior da História, que envolve mais de 25 milhões de pessoas. A estratégia dos EUA para a Coreia do Norte é matá-la de dentro para fora, liquidando a população pela fome e pela falta de acesso à tecnologias. Sejamos bem claros e diretos quanto a isso. É um crime de proporções imensas sendo cometido 24 horas por dia, 365 dias por ano, e quase ninguém denuncia isso. 

Apesar da dimensão extremamente cruel desse bloqueio, o povo coreano conseguiu achar alternativas inimagináveis e muito criativas para conseguir manter a vida funcionando dentro do país e retomar o giro econômico. Isso se traduz na assustadora transformação que o país vem sofrendo nos últimos anos – uma explosão na construção civil, expansão de estruturas para todo o país e emprego pesado de muita tecnologia, totalmente desenvolvida dentro da Coreia do Norte, destaque-se! 

A educação é gratuita em todos os níveis? Comente sobre o sistema educacional e como se dá o acesso. 

Sim, o sistema educacional da Coreia Socialista é absolutamente gratuito em todos os níveis e é motivo de grande orgulho das pessoas por lá. O Estado garante educação desde a infância até a vida adulta. São fartos os jardins de infância, escolas, institutos de pesquisa e universidades. O governo também proporciona o material didático, uniformes, mochilas, transporte e alimentação. Para as crianças, há uma infinidade de atividades extracurriculares que envolvem absolutamente todas as esferas do conhecimento humano. 

Estive pessoalmente em escolas e no Palácio da Crianças de Mangyongdae e vi um lugar gigantesco destinado exclusivamente a desenvolver os talentos e paixões dos alunos. O acesso à educação é gratuito e livre. Não se paga nada. Todos devem estudar por no mínimo 12 anos. A versatilidade das instituições de ensino é admirável. Forma-se gente para todas as profissões e áreas de pesquisa. O enfoque na educação por parte do governo é nítida. 

As escolas, universidades, bibliotecas, institutos e outros prédios voltados para a educação são gigantescos, monumentais, pontos turísticos e frequentados massivamente pela população. Eu chegaria a comparar o Grande Palácio de Estudos do Povo – a maior biblioteca da Coreia, localizado bem na zona central da capital Pyongyang – com a Grande Biblioteca de Alexandria. É realmente algo épico e possui milhões de exemplares de livros de todos os lugares do mundo.

Há também um grande complexo de prédios que tem um formato de átomo e que fica numa ilha, onde se concentram estudos científicos especiais, é uma obra de aparência e finalidade impressionante. Há apenas um lugar que, pelo que parece, precisa-se pagar uma taxa simbólica, que é uma universidade onde os professores são estrangeiros. Essa universidade é uma tentativa de quebrar o bloqueio e trazer conhecimentos externos inovadores para serem usados no socialismo coreano. Há alguns relatos de professores que lá trabalharam, mas nunca achei uma informação concreta sobre o pagamento de tal taxa. Se existir mesmo, creio que seja muito baixa porque o sentido da educação na RPDC é de inclusão e construção criativa do mundo, não mero mercado de trabalho. 

A economia na Coreia Popular é planificada? Explique um pouco sobre a estrutura da economia no país. 

A economia nacional da Coreia Socialista é estatal. Os meios de produção pertencem ao Estado Socialista, logo é propriedade de todo o povo trabalhador e das classes governantes – os operários, os camponeses e os intelectuais. A economia funciona com planejamento centralizado e metas produtivas a serem alcançadas em função do tempo dos planos. O Estado estuda e redireciona os esforços produtivos para edificar a sociedade onde for necessário. 

Por essa razão, inclusive, desde a década de 1970 não são cobrados impostos na Coreia Popular, pela falta de necessidade de se cobrar algo assim. O planejamento sempre é feito para atender as necessidades da população e também aumentar a capacidade das forças de produção, assim como modernizá-las. Há um extenso campo industrial na Coreia do Norte. Inclusive essa indústria altamente especializada e bem consolidada fez o país ser mais rico que o seu vizinho do Sul por décadas do século passado. Há um notável destaque para a indústria pesada da siderurgia e da química. 

O país, especialmente após os bloqueios, também começou a produzir de maneira autônoma máquinas industriais e agrícolas, carros, motores e também bens de consumo, como eletrodomésticos e também tecnologias como computadores, TVs, rádios, etc. A agricultura talvez tenha sido o setor mais prejudicado na Árdua Marcha – que foi uma verdadeira confluência de bloqueio externo e desastres naturais nas áreas rurais. Mesmo assim, a agricultura por lá é bem desenvolvida e tem muitas técnicas próprias. A mecanização do campo é uma constante, mas faz falta em alguns lugares. 

Os coreanos têm introduzido cada vez mais técnicas de agricultura dentro de estufas, para poderem produzir mais diversidade de alimentos. A divisão econômica do campo agrícola se dá por fazendas cooperativas e os camponeses levam uma vida de estilo próprio, inclusive há muitas universidades exclusivamente agrícolas. Preciso citar também a indústria aeroespacial – a RPDC é um dos poucos países do mundo capaz de produzir satélites e enviá-los para o espaço usando os seus próprios foguetes e veículos. Isso é notável. 

Um pouco além da estrutura estatal, há umas poucas Zonas Econômicas Especiais – espaços planejados onde atuam empresas estrangeiras com regimes diferentes de produção em cooperação com o Estado coreano. Essas empresas geralmente são russas, chinesas ou até mesmo sul-coreanas ou europeias. É uma das formas de driblar o bloqueio, conseguir moeda estrangeira e atrair investimentos. Mas são zonas que operam em sistemas diferentes e o Estado ainda controla a dinâmica, não representando uma “abertura”, “capitalismo” ou “revisionismo”, como alguns gostam de citar, seja para mal ou para bem.

Comente sobre o mito da dinastia norte-coreana e sobre o sistema político de lá. Como são as eleições, os votos e a questão dos partidos? Ou seja, qual a estrutura política do estado? 

Acho que esse mito da “dinastia vermelha” é uma falsa percepção e falta de conhecimento mais específico do processo coreano. Naquele país, que desenvolveu um socialismo característico, alguns aspectos culturais marcantes da sociedade acabaram ganhando uma outra forma. A questão do papel da liderança é muito importante na cultura coreana não há 70 anos, mas há 5 milênios. Isso é o tipo de coisa que não se apaga do dia para noite. Porém é um equívoco achar que isso justificaria um poder concentrado nas mãos de uma pessoa porque não é isso que acontece. 

Kim Jong Un, por exemplo, é um deputado eleito para a Assembleia Popular Suprema, o órgão máximo de poder político do país. Essa Assembleia tem quase 700 deputados que foram eleitos democraticamente por todos os cidadãos do país. Inclusive, há vários partidos operando na Coreia do Norte e você nem precisa ser membro de algum deles para concorrer às eleições. Esses 700 deputados elegem outros cargos superiores, como o Presidente do Comitê de Estado da República, o Presidente do Presidium da Assembleia Popular Suprema e também o Presidente do Conselho de Ministros. 

Kim Jong Un foi eleito apenas para um desses cargos, o de Presidente do Comitê de Estado. Em níveis mais regionais, há as Assembleias Populares Locais – com membros eleitos – e também os Comitês Populares, que são órgãos de Poder Popular a nível provincial ou municipal. Todas essas estruturas já nos mostram como uma única pessoa não pode governar sozinha a RPDC, até porque são três órgãos máximos, ou seja, um triunvirato. Acontece que por conta do contexto de guerra da RPDC, Kim Jong Un também acumula a função de Marechal Supremo das Forças Armadas, então a importância dele é grande na política nacional, porém a maior parte do poder que achamos que ele tem é mais simbólica do que real. Suas funções são delimitadas por um Estado socialista e não o contrário, levando em conta a própria Filosofia Juche que centra nas massas o poder. 

O líder naquela sociedade tem um papel de unificação de um ideal revolucionário e, naquele caso, toda a família Kim foi muito importante na história em diversos momentos. Podemos pensar sobre como Kim Il Sung foi o libertador do país da ocupação japonesa e depois também lutou contra – e venceu – os EUA, o mais poderoso país do mundo. Anos depois, seria Kim Jong Il a governar o país durante os anos da crise da Árdua Marcha e foi o pai do programa nuclear, que foi concluído justamente com Kim Jong Un. 

Para aquele povo, essas pessoas são símbolos de devoção revolucionária e dedicação exclusiva à defesa da pátria. Imagine o impacto disso para eles. E erra quem pensa que o poder foi passado de pai para filho, uma vez que não há nenhum mecanismo que assegure essa forma de passagem do poder e nenhum líder deixou um testamento ou desejo expresso de que seu sucessor fosse seu filho. Isso simplesmente nunca aconteceu. Os sucessores assim assumiram porque ocupavam cargos de vice-liderança e depois de terem assumido, passaram pelo crivo do Partido e dos órgãos de poder. Não é uma coroa ou trono hereditário

Como a comunidade LGBT+ é vista na península coreana? O casamento entre pessoas do mesmo sexo é permitido? 

Essa complexa questão da comunidade LGBT+ é vista de maneira muito mais aberta em países como o nosso – e ainda com grande dificuldade – do que em outras partes do mundo. Temos que ter isso em mente. As bases culturais e filosóficas do povo brasileiro são completamente distintas da milenar sociedade homogênea coreana. Questões envolvendo sexualidade são vistas com assuntos do âmbito fechado e mais pessoal nas sociedades asiáticas em geral, e isso inclui tanto o Norte quando o Sul da Coreia. 

Na Coreia Socialista, não há leis específicas para pessoas LGBT+, como casamento ou adoção de crianças por casais de mesmo sexo, mas ao mesmo tempo, diferente do que muita gente acha, não há qualquer lei que puna ou persiga pessoas assim. Nunca vi qualquer menção a tratamentos médicos para pessoas LGBT+ e já li o código penal do país, que também nada menciona sobre isso. Ou seja, não é criminalizado. 

Acredito que grupos LGBT+ se reúnam quando há uma contradição aparente que incomode e oprima as pessoas. É assim com todos os grupos que historicamente são oprimidos e marginalizados no mundo. Talvez isso não esteja acontecendo na Coreia Socialista a ponto das pessoas LGBT+ de lá (que obviamente existem) se sentirem indignadas ao ponto de unirem-se para reivindicarem seus justos direitos. Pessoalmente falando, acho que os coreanos são um pouco fechados para debates mais amplos sobre isso e na sociedade em geral a questão LGBT+ não é muito debatida. 

Mas essa é uma questão que os próprios coreanos devem resolver e futuramente debater, usando, é claro, as bases científicas para lidar com esse assunto sem estigmas ou vícios de pensamento do velho mundo. Por fim, antes dos agradecimentos, gostaria que você indicasse pelo menos cinco livros para o entendimento do passado e do presente da Coreia Popular. Os livros sobre a Coreia Popular são um caso sério no Brasil. Diferente de outras nações, nós não somos abençoados com o fato de que os coreanos produzem muitos livros em espanhol, inglês, chinês e outros idiomas. 

Então temos pouquíssimo acesso à livros físicos sobre esse assunto. Felizmente, nos últimos anos, alguns livros têm sido produzidos ou traduzidos no Brasil sobre esse assunto, o que é ótimo para a popularização do tema. Destacaria a importância das publicações da Edições Nova Cultura, que possui um ótimo acervo sobre isso. Primeiramente, eu indicaria um trabalho científico sensacional que cobre boa parte da história do país; é o livro “A Revolução Coreana – O desconhecido socialismo Zuche”, escrito pelo Prof. Paulo Visentini. Depois, é importante então entender que é esse socialismo Zuche (Juche, na verdade) e ler a obra “Sobre a Ideia Juche”, escrita por Kim Jong Il. “História da Revolução Coreana”, do qual eu pude participar com uma simples contribuição, é também um bom meio de entender de maneira um pouco mais política a questão do desenvolvimento histórico da RPDC, assim como o livro “RPDC e o Socialismo Juche”, de Kim Il Sung. 

Todos esses três últimos livros podem ser obtidos na Edições Nova Cultura. E eu também indicaria muito a obra “Memórias no Transcurso no Século”, que é a autobiografia do líder revolucionário Kim Il Sung, que possui na verdade oito volumes, cinco já traduzidos ao português e disponíveis na Editora Alfa Ômega. Caso deseje ler livros gratuitamente, porém online, o nosso Centro de Estudos da Política Songun do Brasil montou uma biblioteca virtual que está em constante expansão e é possível acessá-la no site.

Em nome da Badaró, gostaria de agradecer a disponibilidade de tempo e parabenizar você e o Ceps pela dedicação aos estudos e divulgação de material sobre a Coreia Popular. Muito obrigada. 

Por nada, camarada!

Vitória Regina

Marxista e psicóloga. Debate política, psicologia e cultura.

Norberto Liberator

Jornalista, ilustrador e quadrinista. Interessado em política, meio ambiente e artes. Autor da graphic novel “Diasporados”.

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