O Brasil é uma máquina de moer gente

Ao contrário de narrativas que apontam que “não há presidente”, país tem sido governado. Seus comandantes optaram por ações que ceifaram centenas de milhares de vidas; seja por infecção, fome ou por tiro. Não é acidente, é projeto

Por Vitória Regina
Colaboraram Leopoldo Neto e Norberto Liberator

O primeiro caso de infecção registrado pelo novo coronavírus aconteceu no dia 1º de dezembro de 2019, em Wuhan, China. 30 dias depois, o país alertou a Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre uma possível epidemia. Desde então, foram registradas mais de três milhões de mortes no mundo, o que corresponde à metade do número – oficial – de judeus assassinados durante o genocídio nazista. Quando os primeiros casos foram registrados na Itália, o lado ocidental entrou em choque. Parecia o fim. O medo de viver um evento histórico – uma pandemia – aflorou o individualismo de nossa época e milhares de pessoas foram aos supermercados estocar comida, bebida e, claro, papel higiênico. Além disso, o preço de itens básicos de proteção – como álcool em gel e máscaras –  explodiram, o que é esperado quando se vive em um modo de produção onde o lucro está acima da vida. Nesse sentido, embora a grande mídia tenha tentado vender a ideia de que estávamos todos no “mesmo barco”, a realidade fez questão de escancarar que não.

Em São Paulo, os bairros periféricos têm três vezes mais mortes do que as regiões ricas. Até março de 2021, a taxa de mortalidade por 100 mil habitantes em bairros como Jardim Paulista, Pinheiros e Perdizes não passava de 61; no entanto, Iguatemi, Brás e Guaianases, o número se aproximava de 193. Ademais, evidenciando novamente que não estávamos no mesmo barco, a taxa de infecção e de morte por covid-19 é superior em pessoas pretas, sendo 250 óbitos por covid-19 a cada 100 mil habitantes e 157 entre pessoas brancas. Todavia, o número de pessoas brancas vacinadas é duas vezes mais do que pessoas pretas.

No Brasil, o primeiro caso aconteceu em 26 de fevereiro de 2020 e desde então não paramos de enterrar pessoas. O excelentíssimo presidente da República, Jair Messias Bolsonaro (sem partido), que costumava dizer que ‘’sua especialidade era matar’’, provou a todos que estava certo. Desde o início, o chefe de Estado brasileiro ignorou a seriedade da doença e fez diferentes piadas, estas que custaram a vida de centenas de milhares de brasileiros. Bolsonaro, além de proferir atrocidades ao dizer que o vírus seria como uma ‘’gripezinha’’, também reproduziu um discurso eugenista ao dizer que o vírus só mataria ‘’fracos, doentes e idosos’’. Além disso, ele trabalhou contra a saúde pública ao promover aglomerações e incentivar a desconfiança da população no uso da vacina, ignorando que emergências mundiais costumam acelerar processos. O presidente também rechaçou a ideia de lockdown –  por mais que a eficácia da medida seja comprovada, prometendo até utilizar as Forças Armadas contra a ‘’covardia do lockdown’’. Não à toa o Brasil é considerado o pior país no combate à pandemia

Em agosto, a empresa farmacêutica Pfizer ofereceu ao Brasil o número expressivo de 70 milhões de doses, contudo, o Governo Federal não respondeu à proposta. Durante a CPI da Covid, uma carta da empresa datada de 12 de setembro de 2020 foi divulgada e afirma que a equipe da empresa no Brasil:

[…] se reuniu com representantes de seus Ministérios da Saúde e da Economia, bem como com a Embaixada do Brasil nos Estados Unidos. Apresentamos uma proposta ao Ministério da Saúde do Brasil para fornecer nossa potencial vacina que poderia proteger milhões de brasileiros, mas até o momento não recebemos uma resposta. Sabendo que o tempo é essencial, minha equipe está interessada em acelerar as discussões sobre uma possível aquisição e pronta para se reunir com Vossa Excelência ou representantes do Governo Brasileiro o mais rápido possível.

A realidade é implacável e não absolverá Jair Bolsonaro e todos àqueles que não se movimentaram para evitar essa tragédia no país. É fato que haverá uma tentativa de falsificação da história, mas nada retirará a culpa e responsabilidade dos ombros do capitão reformado. Bolsonaro, em diferentes momentos, chamou a vacina de ”Vachina” – explicita alusão à China, criando conflito com maior parceiro comercial do Brasil e atrasando o envio de insumo para produção de vacina. No dia 21 de outubro de 2020, Jair Bolsonaro cancelou a compra de 46 milhões de doses da vacina produzida pelo Instituto Butantan. Doze horas após anunciar a compra, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello gravou um vídeo com Jair dizendo que ”um manda e o outro obedece”. Em 9 de novembro de 2020, a Anvisa interrompeu os estudos clínicos (fase três) da Coronavac. Bolsonaro, em sua conta no Twitter, comemorou. ‘’Morte, invalidez, anomalia… Esta é a vacina que o Dória queria obrigar a todos os paulistanos tomá-la. O presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha’’, escreveu o presidente. 

Com a aprovação e incentivo de Bolsonaro, a parte da população foi relaxando e ignorando a gravidade da pandemia. Os números de infectados passaram a aumentar a partir de abril de 2020 e um ano depois o Brasil chegou a registrar, em 24 horas, mais de quatro mil mortes. Diante da administração, o país passou a preocupar o mundo e diferentes países proibiram a entrada de brasileiros. Em contraste, Bolsonaro e seus aliados sentem-se orgulhosos do trabalho realizado nos últimos meses. As reações do presidente à maior crise sanitária da história do país dão asco a qualquer pessoa que se preocupe com a vida. Jair afirmou que a pandemia não seria “tudo isso” e que a mídia seria a responsável por instalar o caos na sociedade, bem como afirmou que não era coveiro ao ser questionado sobre o número de mortes no país.

O presidente da 13ª potência econômica, além de não se preocupar com a gravidade da doença, também trabalhou para que a população não se preocupasse e apostou – muito influenciado por Donald Trump – em indicações de remédios e “kit Covid” que não tiveram sua eficácia comprovada, como no caso da cloroquina. O medicamento utilizado no tratamento da malária tornou-se a aposta de Jair Bolsonaro e trouxe diferentes problemas à saúde dos brasileiros que tentaram fazer uma espécie de tratamento precoce. No processo de negação da ciência administrado por Bolsonaro, travou-se uma disputa política com João Dória (PSDB), governador de São Paulo, a respeito da fabricação da vacina em solo brasileiro. Dória, que não é nenhum defensor das Universidade Públicas e do SUS, viu na corrida pela vacina um capital político a ser utilizado em 2022, caso se candidate à Presidência.

Diante da crise sanitária instaurada nacionalmente, as vísceras da desigualdade social ficaram expostas a todos que a ignoravam. O Brasil, que recentemente saiu do mapa da fome, foi alertado no primeiro semestre de 2020 que poderia enfrentar uma crise alimentar. A tentativa de minimizar a inópia entre as famílias pobres seria a aprovação de uma renda emergencial e a defesa dos direitos sociais. Em março de 2020, diante de uma demanda popular, o Governo Federal foi forçado a pensar no auxílio emergencial. Desde o início o presidente foi contra o auxílio de R$ 600, pois seria “muito para o Brasil”. No primeiro ano da pandemia, o auxílio foi entregue para 67,9 milhões de pessoas. Contudo, em 2021, mesmo com 117 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar e a taxa de desemprego girando em torno de 14,5%, o Governo Federal reduziu o valor pago e o número de pessoas que teriam acesso. O pagamento do novo auxílio emergencial será entregue para 45,9 milhões de pessoas e em valores que variam entre R$ 150, R$ 250 e R$ 375.

Em março de 2021, o Senado deu início à CPI da Covid-19, visando esclarecer algumas decisões do Governo Federal – como se mais de 400 mil mortes não fossem o suficiente – diante o enfrentamento da pior crise sanitária da história no país. Todos os ex-ministros da Saúde foram convocados a prestar depoimento sobre o período em que estiveram à frente do Ministério. Luiz Henrique Mandetta (DEM), o primeiro ministro de Bolsonaro, afirmou ter tido contato com um rascunho que visava incluir a Covid-19 na bula da cloroquina via decreto presidencial. O presidenciável Mandetta também alegou que Jair Bolsonaro não seguia orientações técnicas e que contava com uma assessoria paralela. Nelson Teich, segundo ministro da pasta, também afirmou ter saído do governo por insistência do presidente no uso da cloroquina.

O terceiro ministro, Eduardo Pazuello, também foi convocado a depor, mas no dia 4 de março comunicou ter tido contato com pessoas infectadas e, sendo assim, pediu adiamento. No dia 13 de maio, a Advocacia-Geral da União (AGU) protocolou um pedido ao Supremo Tribunal Federal (STF) a garantia que o aliado de Bolsonaro e ex-ministro tenha o direito de permanecer em silêncio durante seu depoimento à CPI, além de não poder ser preso, caso minta sobre as ações tomadas em exercício. Dois dias após protocolar o pedido, Ricardo Lewandowski, Ministro do STF, concedeu a Pazuello o direito de permanecer em silêncio. Todavia, o ex-ministro da Saúde tem como obrigação dizer a verdade sobre terceiros.

Até o momento, um dos depoimentos mais importantes foi o de Carlos Murillo, gerente-geral da Pfizer na América Latina. Murillo, diante dos senadores, afirmou que Jair Bolsonaro rejeitou três ofertadas de 70 milhões de doses da vacina. A primeira oferta foi feita em agosto de 2020 com previsão de entrega para até dezembro e o primeiro contrato só foi assinado em março de 2021. A farmacêutica visava utilizar o Brasil como vitrine de vacinação da Pfizer na América Latina, mas foi ignorada.

O diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, durante seu depoimento na CPI da Covid, afirmou que o Governo Federal ignorou por três meses as ofertas de doses da Coronavac. Em julho de 2020, o Instituto ofereceu ao Ministério da Saúde 60 milhões de doses para o último trimestre de 2020; 60 milhões – 45 milhões entregues ainda em 2020 – em 18 de agosto e 100 milhões de doses foram oferecidas em 7 de outubro do ano passado. Todas as ofertadas foram ignoradas. Ao mencionar o contrato fechado com os laboratórios produtores de vacina, o Diretor ressaltou que:

[…] quase 2 bilhões em uma vacina que ainda não estava aprovada pela Anvisa, mas não coloca um real porque era uma vacina chinesa, que, hoje, graças à Coronavac, milhões de brasileiros estão sendo vacinados.

A 13ª maior economia do mundo poderia ter sido o primeiro país a iniciar a vacinação, bem como servir de vitrine para América Latina. Todavia, por escolha do Governo Federal e de decisões políticas e ideológicas de Jair Bolsonaro, o país tornou-se pária. Se Bolsonaro tivesse se alinhado à ciência para enfrentar a pior pandemia do último século, não teríamos enterrado mais de 450 mil brasileiros; tampouco lidaríamos com uma crise alimentar tão séria e uma taxa de desemprego se aproximando de 15%. Atingimos a maior taxa de desemprego já registrada pelo IBGE. No fim, não salvamos nem vidas e nem a economia.

Durante a pandemia, o número de famintos no Brasil chegou a 19 milhões. A mídia burguesa, que tenta passar que a crise é a mesma para todos, assumiu um sadismo ao noticiar o tema. Quando mais 50% da população enfrenta uma crise alimentar, sem saber se conseguirá almoçar e jantar no dia seguinte, a mídia hegemônica ensina quando é seguro comer alimentos mofados e como cuidar crianças estando em situação de rua.

O Brasil é uma máquina de moer gente e nosso compromisso é registrar e enfrentar as ações dos nossos algozes, sem mascarar e/ou se alinhar com àqueles que operam esta máquina. A eleição de Jair Bolsonaro não abriu somente os porões do DOPS e assentou no governo os fantasmas da ditadura; também fortaleceu uma onda de negacionismo e fundamentalismo. Diante da realidade, nosso dever é derrotar o bolsonarismo e todo o seu projeto. O local a qual Bolsonaro e sua tropa de choque pertencem é a lata de lixo da história.

Comparando os números da pandemia com genocídios, conflitos e atentados

De janeiro de 2020 a maio de 2021, 155 milhões de pessoas foram infectadas pelo vírus – que tem sofrido mutações – e 3,25 milhões morreram. No Brasil, mais de 400 pessoas morreram e mais de 15 milhões foram contaminadas (1), desconsiderando a subnotificação e o fato do país não ter realizado uma testagem em massa. Ainda assim, a gravidade da doença parece ser ignorada e diante disso, resolvemos fazer uma comparação com o número de contaminados e mortos na pandemia com o número de mortos em guerras, conflitos e atentados.

O ataque às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001 ceifou a vida de 2.996 pessoas e o Brasil registrou 2.798 mortes em 24h no dia 16 de março de 2021. Entre 1973 e 1990, a ditadura chilena deixou mais de 3.000 mortos ou desaparecidos, o Brasil atingiu o mesmo número de mortes em 24h no dia 27 de abril de 2021. A Batalha de Stalingrado travada entre a Wehrmacht (forças armadas da Alemanha Nazista) e o Exército Vermelho (exército da União Soviética) foi a maior e mais sangrenta batalha da história com cerca de 2 milhões de mortos, o mundo superou este número na segunda semana de 2021. Durante a Guerra da Coreia, iniciada no início da década de 1950, mais de 2,5 milhões de mortes foram contabilizadas (leia sobre o conflito nesta entrevista publicada pela Badaró). Poderíamos listar diferentes conflitos ao longo da história para comparar com a gravidade da pandemia que vivenciamos! No país do fundamentalismo, onde se ignora a ciência, paga-se com a vida. O Brasil está sendo governado e seus comandantes optaram por ações que ceifaram centena de milhares de vidas, seja por contaminação, fome ou tiro. Não é acidente, é a boiada passando. É projeto. 

Vitória Regina

Colunista

Marxista e bacharel em Psicologia. Debate política, psicologia e cultura.

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