Patologizar para controlar: a transexualidade na história do DSM

Ao longo das décadas, medicina serviu como instrumento para reforçar a discriminação contra pessoas transexuais

Por Vitória Regina

O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), criado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA), tornou-se um instrumento central dentro da prática psiquiátrica, classificando e rotulando experiências humanas em categorias diagnósticas. Mais do que uma ferramenta técnica, ele opera como um mecanismo de controle, ditando quem se encaixa nos moldes da normalidade e quem deve ser considerado doente. Esse impacto se estende para além da psiquiatria, influenciando outras áreas do saber e sustentando a lógica de uma sociedade que prefere corrigir a diversidade a questionar suas próprias normas.

Em 1980, com a publicação do DSM-III, a transexualidade foi transformada em uma categoria psiquiátrica sob o nome de Transtorno de Identidade de Gênero (TIG). De forma reducionista, a APA definiu essa vivência como uma condição rara e anormal, exigindo, para o diagnóstico, que a pessoa demonstrasse um sofrimento persistente por pelo menos dois anos em relação ao seu corpo biológico e um desejo de modificação corporal para se alinhar à sua identidade psíquica.

Mais do que isso, reforçava-se uma visão estereotipada dos papeis de gênero: meninas diagnosticadas com TIG deveriam preferir jogos considerados agressivos e buscar vínculos com meninos, enquanto meninos deveriam rejeitar brincadeiras tradicionalmente consideradas femininas.

A tentativa de encaixar a transexualidade em um modelo de transtorno mental vinha acompanhada de explicações que a vinculavam a acontecimentos da primeira infância. A APA sugeria, por exemplo, que uma menina poderia se identificar excessivamente com o pai e, por isso, desenvolver uma identidade masculina. Reduzia-se, assim, a complexidade das experiências trans a um suposto ‘’erro’’ no desenvolvimento psíquico, desconsiderando os efeitos sociais e culturais na construção da identidade.

Em 1994, com a publicação do DSM-IV, a categoria TIG foi mantida, mas sofreu modificações. Agora, o diagnóstico exigia quatro critérios: forte e persistente identificação com o gênero oposto, não se tratar de mero desejo por vantagens sociais e culturais, relação com as condições biológicas do sujeito e a presença de sofrimento clínico significativo ou prejuízo social (PREU & BRITO, 2019). A patologização, no entanto, seguia intacta, mantendo a transexualidade no campo do anormal e do indesejado.

A edição de 2013, o DSM-V, trouxe algumas mudanças, mas não rompeu com essa lógica. A principal alteração foi a substituição do termo “Transtorno de Identidade de Gênero” por “Disforia de Gênero”. O termo “disforia”, já utilizado em outros transtornos mentais, como depressão e transtornos alimentares, seguia vinculando a experiência trans a uma condição patológica, algo a ser tratado e corrigido.

O DSM-V parte do princípio de que o gênero é determinado pelos chamados “indicadores biológicos clássicos” no nascimento, sustentando a ideia de que o corpo deve definir como a pessoa se comporta e se identifica. Desta forma, um menino que manifeste comportamentos considerados femininos pode ser visto como alguém que precisa de intervenção, assim como uma menina que goste de esportes de contato, como futebol. Este modelo impõe um destino ao sujeito desde o nascimento, negando-lhe a possibilidade de viver para além das normas impostas.

Embora o DSM-V reconheça que a identidade de gênero pode não estar restrita ao binarismo homem-mulher e ofereça maior detalhamento conceitual e estatístico, a essência do manual permanece: ele localiza o problema no sujeito, e não nas normas sociais que restringem a liberdade de ser. Em vez de questionar os padrões que impõem o que é aceitável ou não, o DSM continua a reforçá-los, justificando intervenções psiquiátricas sobre corpos e identidades diversas.

A transexualidade, ao deslocar as fronteiras do gênero, desestabiliza a suposição de que a coerência entre sexo, gênero e desejo seja algo natural. O que se entende por normal e patológico não são senão efeitos discursivos de um regime que produz sujeitos inteligíveis, à custa da exclusão daqueles que não se conformam com as normas hegemônicas. 

Neste cenário, transexuais e travestis tornam-se alvo constante de estigma, discriminação e violência, pois encarnam a ruptura de um sistema que insiste em fixar os corpos dentro de categorias rígidas e hierarquizadas. No Brasil, esta violência atinge dimensões extremas: o país lidera, pelo 16º ano consecutivo, o ranking global de assassinatos de pessoas trans e travestis, um sintoma evidente da brutalidade com que a diferença é punida.

O DSM, ao invés de interrogar as normas que sustentam tais exclusões, reafirma-as, mantendo intacta a estrutura que patologiza corpos e identidades que escapam à lógica binária. A psiquiatria, ao catalogar a transexualidade como um transtorno, não apenas reforça a norma cisgênera como natural, mas também legitima intervenções médicas e sociais que visam a regulação e o controle desses sujeitos.

Como qualquer instituição disciplinar, sua função não é apenas diagnosticar, mas produzir realidades, estabelecendo quem tem acesso ao reconhecimento e quem será relegado à marginalidade. Ao transformar em doença aquilo que deveria ser compreendido como uma expressão legítima da diversidade humana, o DSM opera como um dispositivo de normalização que perpetua exclusão, sofrimento e violência.

Referência 

PREU, R., BRITO, C. PATOLOGIZAÇÃO DA TRANSEXUALIDADE: UMA LEITURA CRÍTICA DAS TRANSFORMAÇÕES OCORRIDAS NAS TRÊS ÚLTIMAS VERSÕES DO DSM. IN: GÊNERO, NITERÓI, V. 19, N.2, P. 134-154, 2019.

 

Vitória Regina

Vitória Regina

Marxista e psicóloga. Debate política, psicologia e cultura.

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