Cultura da música cover e a nostalgia
- 22 de janeiro de 2025
Tradição de reprodução de canções consagradas no passado em detrimento da música autoral é sintoma de ideologia reacionária
Por Jorge Aluvaiá
Todos têm o direito à cultura, arte e lazer – e também têm o direito de criar e promovê-los. No entanto, também é direito do público e de agentes culturais questionar o que se produz. Assim, meu questionamento começa do seguinte ponto:
O que é gerado quando tanto os agentes das artes quanto seu público estão presos a uma forte nostalgia, conectados com passado – mesmo que, às vezes, um passado recente – artisticamente idealizado?
Primeiramente, precisamos reconhecer que qualquer produção artística tem sim seu valor e pode ser fonte de renda dos trabalhadores e trabalhadoras que as produzem. Quero neste momento abordar as intersecções existentes nesse movimento, sejam essas intersecções geradas de forma proposital, acidental ou estrutural, com um recorte de na nossa realidade artística brasileira.
É evidente, para o leitor ou a leitora, que nosso país passou e vem passando por um processo de terra arrasada, decorrente das articulações de golpe que culminaram na destituição da então presidenta Dilma Rousseff, em 2016, até a eleição de Jair Messias Bolsonaro, em 2018, e seu posterior governo.
O reacionarismo usado como ferramenta de controle de massas deixou, na boca do povo brasileiro, um sabor agridoce, reforçando uma nota de saudosismo por um passado que sempre nos foi vendido como um lugar melhor. De fato esse saudosismo não é fruto do dos governos Temer e Bolsonaro, mas foi neles que esse traço se acentuou.
Não à toa o carro chefe desse movimento é a música sertaneja, assim como no governo Collor de Mello. O sertanejo, além de ser trilha sonora do agronegócio predador, também tem uma enorme importância na formação da cultura brasileira e isso é indiscutível. Mas uma das facetas que sempre foram presentes no sertanejo é a saudade de uma vida bucólica, de uma vida campestre, simples e pacífica, e vivendo no Mato Grosso do Sul, sabemos que isso é uma falácia.
Nossa história está repleta de casos de violência contra todos que se opuseram aos senhores do campo, os autointitulados donos de terras, ou seja, um passado idealizado, vendido. Também vale lembrar que os ponteados, pagodes de viola, rasqueados e lamentos, eram majoritariamente tocados e cantados pelos trabalhadores da terra, que cantavam as agruras de uma vida simples, porém dura.
Outro exemplo é o sertanejo nordestino, quando canta saudades da sua terra por ter precisado se retirar, para tentar a vida na cidade grande ou nas fazendas do interior de São Paulo. Percebam como não é à toa o sertanejo ser carro-chefe de um movimento cultural que visa retroceder para um lugar que nunca existiu.
Mas o que fazer música cover tem a ver com tudo isso?
Caso o leitor queira fazer o teste, vá a uma apresentação sertaneja, e pode ser mais da simples à mais pomposa; os shows desses artistas estão repletos de canções que não são de sua autoria. Não estou tratando dos cantores que são intérpretes de outros compositores, pois essa é uma outra discussão sobre indústria do entretenimento.
A referência é à cultura do cover, que mostra seu lado mais feio em outros gêneros musicais em círculos menores. Artistas independentes de música pop, pop/rock, rock, forró, MPB etc. Aqui entra um fator onde artistas têm que dar o braço a torcer, caso queiram continuar trabalhando: o fator donos de casas de show.
Nesse âmbito, entendemos que os proprietários e proprietárias desses estabelecimentos, além de ter compromisso com o lucro, raramente são artistas e têm pouco conhecimento do mercado artístico, porém são ótimos comerciantes de bebidas alcoólicas.
Façamos um exercício para entender as características supracitadas.
- Compromisso com o Lucro.
Espero que não seja uma surpresa, para o leitor ou a leitora, que um empresário visa primeiramente a manutenção e a rentabilidade dos seus negócios – e não há nada de errado com isso. Sabendo que a casa deve estar cheia para se obter lucros, adivinhem só quem atrai esse público? Sim, artistas.
Esses artistas têm como trabalho proporcionar um bom espetáculo para público, afinal, quanto mais tempo eles passarem dentro das casas de show e bares, mais as pessoas irão consumir. E os donos da casa querem ter certeza de que isso irá acontecer. Sendo assim, eles passam a fazer parte da escolha de repertório do artista.
No processo de contratação, é comum o gerente da casa, quando não o proprietário, aprovar o repertório pré-selecionado do artista, para garantir que ele ou ela toque apenas sucessos das últimas décadas ou de um passado recente. Para além disso, deixa-se bem claro que músicas autorais são potencialmente problemáticas, pois estamos tratando de círculos menores da indústria, e tais artistas talvez nunca tenham algum trabalho com alcance o suficiente para ter autonomia em escolher seu próprio repertório.
A consequência disso é um show majoritariamente composto por sucessos de outros artistas, deixando para o público a errônea impressão de não se fazer mais músicas boas como antigamente, que o rock de verdade morreu nos anos 90, essas besteiras que se dizem por aí. Mas o pior desdobramento disso tudo acontece quando o artista vê que o público tem uma enorme rejeição ao que é novo, matando assim uma cadeia inteira de processos criativos e produção de novas obras, tudo isso em nome do deus lucro.
- Raramente são artistas.
Este é o ponto mais delicado, pois é aqui que os gostos e preferências musicais dos donos desses espaços se misturam com seu tino empresarial. Este que vos escreve já teve a oportunidade de frequentar, tocar e até trabalhar como funcionário em algumas casas de show.
E uma coisa é fato: quanto maior e mais profunda tiver sido a vivência artística pregressa dessa pessoa, mais bem definida será a temática do estabelecimento e mais liberdade artística os artífices que prestam serviço à casa terão. No meu ponto de vista, existe uma vontade, nesse tipo de proprietário, de fazer da sua casa um espaço legítimo de produção de arte, renovação e manutenção da cultura, manifestações autorais.
Já quando temos um contratante que talvez não tenha se desenvolvido e aprofundado nas artes ou na produção cultural, não haverá a mesma sensibilidade necessária para lidar com esse formato de negócios, de maneira que beneficie toda a cadeia produtiva.
Do contrário, não haverá muita diferença entre o boteco com cadeiras de plástico e um camarada tocado aquele vaneirão no teclado, para a galera gastar as sandálias a noite toda, e o bar super vibes, super conceito, com um DJ Playando as mais balas. As duas versões de show não são escolhidas apenas pelo seu potencial artístico, mas pela viabilidade financeira da apresentação, um DJ, um tecladista, um cantor de voz e violão, todas apresentações estruturalmente simples, mas muito bem-vindas nos bares, restaurantes e algumas casas de show.
Lembrando sempre que todos somos trabalhadores, buscando uma vida mais digna dentro de um sistema que nos obriga a competir sempre para ter mais lucros a obter e nos manter produtivos, sejamos artistas ou comerciantes. Pois esse sistema também usa todas as formas de nostalgia para nos manter presos na ideia de construir um futuro baseado num passado idealizado, que nunca foi a realidade da maioria da população brasileira.
Sabemos o que vem junto com essa ideia de passado idealizado. Para alguém que nasceu numa família de classe média/alta, com estruturas de existência sólidas ao longo das últimas três gerações, é óbvio que o passado da família terá sido bom, e visitá-lo nunca será algo doloroso.
Mas se precisarmos olhar para o passado de uma família de um recorte social mais simples, pobre, geralmente negra, as coisas já não são tão boas atualmente para essas pessoas. Imagine só o que é visitar o passado de uma família que precisou sobreviver num país que havia abolido a escravidão racial oficialmente há pouco mais de 50 anos.
Não é exagero: minha avó viveu durante a infância como empregada, na casa de outras famílias. Trabalhava em troca de comida e moradia até a adolescência, quando conheceu meu avô e foram morar no Vale das Mangueiras, no estado do Rio de janeiro, no começo dos anos 50, sem casa.
Uso o exemplo da minha própria família para mostrar como tudo isso é muito recente e próximo de todos nós. O passado brasileiro não é um lugar bonito.
Não se enganem, um movimento inteiro baseado em artistas que já foram sucesso não segue assim só por demanda do público, ou vontade dos artistas. Há sim intenções políticas por trás de tudo isso.
Precisamos parar de tratar arte e cultura como apenas mero entretenimento, o que em muitas instâncias é verdade, mas quando debruçarmos um olhar mais crítico, sobre tais movimentos, questionamos, trazemos a dúvida, fazemos a pergunta adequada:
Quem de fato se beneficia com nostalgia, com a não renovação, com a não inovação?