‘Me verás volver’: o time do Papa vence a ditadura

San Lorenzo está de volta à sua histórica casa, retirada do clube pelo regime do ditador Rafael Videla, cuja instauração completa 45 anos nesta quarta-feira (24)

Por Gabriel Neri

O Club Atlético San Lorenzo de Almagro (Casla) é considerado uma das cinco grandes equipes quando falamos de futebol argentino. Junto a ele, estão Boca Juniors, River Plate, Independiente e Racing. É uma instituição situada ao sul da Cidade de Buenos Aires. Sua atual sede administrativa é no bairro de Boedo, e o Estádio Pedro Bidegain, conhecido como Nuevo Gasómetro, fica em Bajo Flores.

Apesar do nome “de Almagro”, a alma dos Corvos, apelido do San Lorenzo, pertence ao bairro de Boedo. A região de classe média é conhecida pelas festas, pela forte presença do tango e, como exaltado em músicas da torcida, pelo carnaval.

É característica dos clubes argentinos esse pertencimento a um bairro. O Boca Juniors, como diz o próprio nome, é de La Boca. O River Plate é de Núñez e por isso seu estádio é chamado de “Monumental de Núñez”. O Huracán, rival máximo do San Lorenzo, fica situado no Parque Patrícios, também ao sul. Independiente e Racing fazem o clássico de Avellaneda e seus estádios têm apenas uma rua que os divide.

A maioria desses clubes citados acima não teve de mudar de local. História diferente com o Ciclón, apelido sanlorencista, que teve, de forma praticamente compulsória, que sair de seu estádio em Boedo na época da ditadura de Rafael Videla (1976-1981). O terreno foi vendido à rede de supermercados Carrefour. O golpe militar que tirou o governo de María Estela Martínez de Perón a Isabelita Perón do poder completa 45 anos neste 24 de março. Na Argentina, a data é de homenagem pela memória e justiça das vítimas da ditadura. 

San Lorenzo e a perseguição dos militares

A história da união entre o clube e a região começa no nascimento da equipe. O Casla nasceu no dia 1º de abril de 1908 e teve um papel importantíssimo do padre salesiano Lorenzo Bartolomé Massa. Segundo a história do clube, ele ajudava os jovens em situação de rua e deixava esses meninos jogarem futebol na igreja. A partir daí, veio a ideia da criação de uma associação. Em homenagem ao padre, o nome escolhido foi San Lorenzo. 

Com a crescente da equipe nos primórdios do futebol platino, foi necessário ter um campo para jogar. Em 1916, o clube através do presidente Pedro Bidegain começou sua história na Avenida La Plata, 1,7 mil no Estádio Gasômetro. O nome se dava por conta da semelhança do formato do estádio aos cilindros de gás localizados na região. 

O Viejo Gasómetro foi um dos grandes estádios argentinos enquanto esteve de pé. Por sua grandeza de mais de 70 mil lugares, foi até chamado de “Wembley argentino” em referência ao estádio de Londres. Também pela estrutura, foi casa da Seleção Argentina por muito tempo. Mas os ventos começaram a mudar na década de 1970.

O bairro de Boedo era uma região de classe média de cunho progressista de Buenos Aires. Assim, o clube se tornou representativo na oposição às ditaduras, especialmente a chamada de “Última Ditadura Argentina” (1976-1983). Tanto que até a associação das Mães da Praça de Maio fez o primeiro evento público no dia 20 de junho de 1977 no estádio do CASLA. Essa associação, formada por mulheres, protestava em busca de seus filhos assassinados ou desaparecidos durante o regime militar, além de pressionar para localizar os cerca de 500 bebês que foram tirados de seus pais e entregues a famílias ligadas ao regime.

Com isso, os militares sempre observaram com muita atenção o que acontecia pelas bandas de Boedo. Inclusive, o local chegou a ser classificado como “antro de delinquentes”. Foram propostas algumas ações, como o projeto de construção de uma avenida que passava pelo meio do Gasômetro e um único estádio para Huracán, Veléz e San Lorenzo, mas não passaram adiante. Em 1978, a Argentina sediou a Copa do Mundo, onde levantou seu primeiro título mundial. Seis estádios foram usados como sede e o gigante Gasômetro ficou de fora. Na capital federal, o Monumental, do River, e o José Amalfitani, do Vélez, foram os escolhidos. 

A prefeitura de Buenos Aires, sob o comando do Brigadeiro Osvaldo Cacciatore, tinha como um dos objetivos acabar com o estádio. Mesmo com tudo isso, o San Lorenzo conseguia se manter. No entanto, uma crise financeira começou a assolar o clube no final dos anos 70. Foi o momento ideal para os militares forçarem o Ciclón a vender o terreno na Avenida La Plata. O valor da venda foi de 900 mil dólares. Assim, o estádio deixava de ser propriedade do San Lorenzo.

A despedida da cancha foi no dia 2 de dezembro de 1979 com um empate em 0 a 0 diante do Boca Juniors. Só que o drama não parou por aí. Mergulhado em crise, a equipe caiu para segunda divisão em 1981 com uma derrota para o Argentino Juniors na última rodada. 

Sem divisão, sem dinheiro e sem estádio. Só que o clube tinha a torcida. O time começou sua peregrinação pelos estádios portenhos, sempre lotados para receber o Casla. A equipe conseguiu voltar à primeira em 1982. Porém, a alegria da volta contrastou com a perda de sua casa. O projeto de demolição do Gasômetro para construção de prédios comerciais havia sido aprovado. Em 1985, a rede Carrefour comprou o terreno e construiu o primeiro hipermercado da cidade. Em seis anos, o San Lorenzo passou de ter um dos melhores estádios do mundo à segunda divisão e viu sua casa ser demolida.

Nuevo Gasómetro e o retorno a Boedo

Ao longo da década de 80, a peregrinação seguia pelos estádios. Só que finalmente em 1993, após cerca de um ano de construção com apoio da torcida que nunca abandonou, o Estádio Pedro Bidegain foi inaugurado. O nome é em homenagem a um dos mais importantes presidentes da história do Ciclón. 

Foi nesta nova casa, localizada no bairro de Bajo Flores a 3km de Boedo, que o torcedor sanlorencista voltou a sorrir. A primeira partida foi um amistoso internacional com a Universidad de Chile, vencido por 2 a 1 pelos locais. A nova casa que carregava o nome da antiga fez parte de sete campanhas de títulos da equipe argentina: quatro Campeonatos Argentinos (Clausura 1995, Clausura 2001, Clausura 2007 e Apertura 2013), Copa Mercosul 2001, Copa Sul-Americana de 2002 e a Copa Libertadores 2014. 

Como diz uma das principais músicas da torcida organizada do clube, La Gloriosa Buttleter, “sabemos que vamos voltar a Boedo”. Para além dos títulos, o retorno ao bairro de origem é uma obsessão. E essa história ganha capítulos finais em 2021. 

O primeiro passo para o retorno à “Terra Santa” foi dado em 2006 quando tornou-se lei o Projeto de Reparação Histórica, que devolveu uma parte do terreno tomado na ditadura. Na década de 2010, a caminhada seguiu. Um dos mais emblemáticos foi a manifestação na Praça de Maio, em frente à Casa Rosada (sede do Governo Argentino) para aprovação da lei de Restituição Histórica. Foram 50 votos a favor e nenhum contra. Com isso, o Carrefour era obrigado a vender a área de 27 mil m² para o verdadeiro dono. A proposta foi de 150 milhões de pesos argentinos (cerca de 27 milhões de dólares).

Aí, novamente a torcida entrou com amor e dinheiro para ajudar o clube. 94 milhões foram pagos pelo Casla e 27 mil fanáticos compraram metros quadrados simbólicos ao preço de 450 dólares para completar o valor final. Assim, o terreno da Avenida La Plata finalmente voltou a ser dos Corvos. A posse oficial veio nos findes de 2016 com o acordo de pagamento. A utopia virou luta e a batalha contra a rede de hipermercados francesa terminou em 5 de maio de 2019, com o fechamento da unidade de Boedo. Dia de festa para o San Lorenzo.

Em 2020 e 2021, começaram os trâmites para a autorização para a construção do novo estádio a partir da Lei de Rezoneamento, que já teve sua audiência pública com mais de 92% pela constituição da nova casa no velho terreno. A lei trata de várias mudanças no bairro de Boedo, como a construção do Estádio Papa Francisco (futura casa do San Lorenzo com 42 mil lugares), prédios comerciais, áreas verdes, entre outros itens de urbanização. No momento, resta apenas a votação final por parte da Câmara de Buenos Aires para a validação do Projeto para enfim a volta eterna do povo sanlorencista de onde nunca deveriam ter saído. 

Gabriel Neri

Gabriel Neri

Repórter

Estudante de jornalismo, amante de futebol sul-americano e da América Latina.

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