Entre cruzes – A saúde no Brasil
- 15 de novembro de 2020
O conceito de saúde está historicamente atrelado à ausência de enfermidades, mas o bem-estar social também é um fator necessário para uma vida saudável
Por Carolina de Mendonça
Arte por Norberto Liberator
Saúde é um termo comumente colocado como sinônimo de bem-estar e antônimo de adoecimento. Contudo, seu significado é mais complexo do que o aplicado nas conversas cotidianas e felicitações. O conceito se modifica de acordo com o contexto histórico, social, geográfico, antropológico e político em que está inserido. A saúde, no fim das contas, é uma narrativa a ser disputada no campo político.
O conceito da Organização Mundial de Saúde (OMS) atualmente é a máxima vigente. Essa define saúde como: um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença ou enfermidades. O bem-estar previsto pela OMS não é encontrado por maioria absoluta da população mundial. Não é possível uma saúde física em um planeta poluído; saúde psíquica não se faz presente em um contexto de intensa produção e competitividade; o bem-estar social só se faz viável sem opressões sistemáticas ao sujeito.
Uma população adoecida serve ao capital. O mesmo sistema que cria uma massa enferma vende paliativos, alienando o sujeito de sua própria dor. Com a vulnerabilidade dos indivíduos a religião, enquanto instituição, entra no contexto reforçando a lógica capitalista. No Brasil, desde a colonização, o cristianismo se fez presente nos cuidados (ou falta deles) para com a saúde da população.
Os negros que foram trazidos ao território de forma forçada para trabalhar como escravos não eram vistos como humanos durante o período colonial. Doenças infecciosas eram comuns desde os navios negreiros que eram superlotados, sem higiene básica, alimentação ou acesso a água. Descaso para com a vida que persistia ao chegar no Brasil. Os africanos em diáspora eram obrigados a dormir em senzalas, trabalhar de forma forçada, torturados e aculturados. Realidade que ainda está presente no cotidiano da população negra brasileira, a mais submetida a trabalhos terceirizados e sem vínculos empregatícios, além de representar a maior parte dos detidos no sistema carcerário.
Vistos pelos cristãos como “almas infantis” a ser salvas, os indígenas que habitavam o Brasil antes da colonização também sofreram atentados com a chegada violenta dos europeus. A população foi escravizada, expulsa de sua terra, aculturada, além de ser obrigada a seguir as doutrinas cristãs para ser “salva” da “perdição eterna”. Além disso, houve o genocídio por assassinatos e por infecções como varíola e sarampo, trazidas pelos estrangeiros. O conflito por terras no Brasil ainda é constante, assim como a imposição da religião cristã. Ospovos originários também estão entre os mais vulneráveis à COVID-19 e com as taxas mais altas de suicídio no país.
Os colonizadores brancos, durante esse período, eram vistos como os únicos humanos por direito, mas mesmo a eles, o direito à saúde era negado por estarem em uma terra tida como inferior. Quando doentes, muitos recorriam aos indígenas da respectiva região em que estivessem estabelicidos para buscar formas de lidar com as patologias, mesmo que esse tipo de saber fosse considerado profano. Com poucos técnicos para desempenhar o cuidado para com a população, a Igreja Católica interferiu na salvação de seus fiéis. As enfermidades foram vistas como manifestações dos pecados e seria necessária a remissão desses para alcançar o céu na vida eterna.
Durante o século XIX, houve várias alterações na ordem política no Brasil, dentre as quais se destacam a vinda da família real portuguesa, elevando o território a Reino; independência, transformando-se em um império; e proclamação da República. As mudanças reforçaram o anseio dos diversos governantes em modernizar o Estado brasileiro, inclusive com a fundação de faculdades, dentre outros cursos, de medicina. Com a ascensão do iluminismo, a razão passou a ser vista como algo de grande valor. “Saúde” passou a ser definida como ausência de doença e em um discurso de higiene social passa a vigorar.
O discurso da razão, apesar de se afirmar neutro, foi utilizado como forma de dominação. Formalizaram-se decretos que visavam a promoção de saúde, mas não foi criada uma rede de atenção à saúde pública. Acesso a tratamentos ficaram restritos à elite que podia pagar por serviços médicos. Aos que não tinham condições de pagar por sua saúde, restavam apenas as unidades da Santa Casa de Misericórdia, instituição filantrópica vinculada à Igreja Católica.
Além disso, no século XIX faltavam outros fatores que contribuem para a saúde. O acesso à moradia era escasso e, com o grande aumento populacional nas cidades, iniciava-se o processo de favelização das classes mais baixas. Moradias precárias, onde passaram a viver várias pessoas com baixas condições de higiene, acabaram proliferando infecções entre essas classes.
O acesso à educação era extremamente restrito, limitando a ascensão social, fator que mantinha os que nasciam em classes menos favorecidas em posições de não pensantes. Qualquer tentativa dessa classe de se rebelar era duramente reprimida, os discursos invalidados e os sujeitos que incomodavam eram jogados em asilos, manicômios e prisões.
Enquanto as grandes cidades viviam a Belle Époque – movimento artístico importado da França que visava modernizar as cidades –, epidemias se multiplicavam no Brasil. No Rio de Janeiro, então capital do país, a situação era especialmente trágica. Durante o governo de Rodrigues Alves, houve a tentativa de modernizar a capital e diminuir a proliferação de doenças.
Sob gestão do engenheiro Pereira Passos como prefeito e do médico Oswaldo Cruz como diretor da Saúde Pública, na capital federal se iniciou um intenso processo de sacrifício das moradias populares. Diversos espaços em que vivia a população mais pobre foram derrubados e os aluguéis tiveram aumento significativo, contribuindo para a tomada dos morros enquanto morada desse grupo. Iniciou-se, assim, a favelização do Rio de Janeiro nos moldes conhecidos hoje.
Política implementadas através de imposição geraram forte sentimento de indignação entre a população. Em novembro de 1904, a população do Rio de Janeiro foi às ruas em oposição à vacinação obrigatória contra a varíola, episódio conhecido como Revolta da Vacina.
Diferentemente do que ocorre atualmente dentro de alguns setores conspiratórios, as pessoas se colocaram contra a vacinação por um desconhecimento do que seria essa preparação biológica. A população carioca que se rebelaram contra a vacinação era de maioria analfabeta e não foi devidamente explicada sobre a imunização — a qual foi por vezes feita de forma violenta — e indignada em relação ao destrato do governo para com a saúde.
A consequência da revolta foi a repressão. Centenas de pessoas foram presas ou deportadas por suspeita de participação no tumulto. Contudo, a situação da saúde no Brasil não foi repensada e o acesso à saúde continuou voltado às elites ou ficava ao cargo da Igreja Católica em sua filantropia, o que manteve instituições (como hospitais) centralizadas nas grandes cidades. A concepção de saúde permaneceu positivista, utilizando da lógica binária de “saúde e doença”, ignorando fatores que podem ser cruciais à saúde, como moradia e educação.
Durante o século XX, a política brasileira esteve especialmente fragilizada. Entre governos militares, golpes de Estado e ditaduras, os atores políticos criaram inimigos que eram desde pessoas públicas a grupos sociais marginalizados. O discurso em relação à saúde se fez presente nas perseguições políticas, por meio de diagnósticos que levavam pessoas “indesejáveis” aos hospícios.
Espalharam-se os hospitais para “loucos”, instituições colocadas como espaço de cuidado a pessoas que sofriam de psicopatologias, mas que em prática segregavam os que ali eram internados. Os sujeitos depositados nesses espaços eram em sua maioria de classes baixas e por algum motivo incomodaram o status quo. Muitas mulheres que perdiam a virgindade antes do casamento foram enviadas para esses hospitais, consideradas loucas por irem contra a moral vigente.
As problemáticas dos hospícios no Brasil atingiram grande apelo em 1979, final da ditadura civil-militar, ao se tornar pública a barbaridade que ocorria no Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, no episódio conhecido como Holocausto Brasileiro. Apesar de seu destaque por ser o maior hospício brasileiro, os horrores ocorridos nesse hospital eram comuns, em diferentes variações, a todo Brasil. O repúdio a tal forma de opressão potencializa o Movimento de Reforma Psiquiátrica no país.
A luta pela saúde no país desde a década de 1970 contava como o Movimento de Reforma Sanitária, o qual defendia um Estado democrático e uma saúde que se pautasse em sujeitos integrais. O direito à saúde foi incluído na Constituição Federal de 1988, artigo 196:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Um dos principais teóricos e líderes do movimento, Sérgio Arouca, afirmou na VIII Conferência Nacional de Saúde que deveria haver um novo olhar para a saúde: “Saúde não é simplesmente a ausência de doença. É muito mais que isso. É bem-estar físico, mental, social, político”. A partir desse momento, a saúde no Brasil passou a ser pensada de maneira ampliada e outros fatores, para além do biológico, passaram a ser levados em conta nas análises sobre adoecimento e bem-estar, como, por exemplo, inserção de profissionais de psicologia nos serviços de saúde pública.
Como forma de garantir esse direito à população, foi criado o Sistema Único de Saúde (SUS), pela Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, também chamada de Lei Orgânica de Saúde.. O SUS tem, entre seus princípios, a descentralização político-administrativa, participação da comunidade, universalidade do acesso, direito à informação e integralidade da assistência. Hoje o Sistema é responsável por procedimentos de alta complexidade como transplante de órgãos, além da vigilância sanitária e imunização da população.
Apesar de o SUS ser uma conquista extraordinária, há uma disputa setores da burguesia buscam o desmonte da saúde pública e gratuita. A mídia hegemônica, nesse conflito, é uma forte aliada da elite ao criar narrativas que reforçam o SUS como um sistema falido e como grande problema da saúde pública no Brasil.
O fato de o SUS estar distante da lógica neoliberal vigente faz com que diversos governos tendem ao desmonte dessa política. Na esfera federal, mesmo durante os governos petistas (2003 – 2016) houve desmonte do Sistema, atendendo ao apelo de setores da saúde privada, como planos de saúde e donos de grandes hospitais particulares. Durante o primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff, houve repasse de dinheiro público a comunidades terapêuticas – instituições com lógica similar aos hospícios, que visam o “tratamento” de pessoas com transtornos relacionados ao uso de substâncias.
Em governos mais à direita no espectro político, o desmonte do SUS se faz mais explícito, como é o caso da gestão do presidente Jair Messias Bolsonaro. Durante a gestão do médico ortopedista Luiz Henrique Mandetta como ministro da Saúde, houve um aumento vertiginoso no repasse de verbas para instituições privadas e até mesmo com forte viés religioso, como comunidades terapêuticas.
Mandetta, durante seu mandato de ministro, causou um desmonte na política de saúde brasileira. Todavia, com a chegada da pandemia de COVID-19 e a necessidade de fortalecimento das políticas de saúde – inclusive como estratégia populista – o ministro vestiu (literalmente) o colete do SUS, passando a discursar pela saúde pública e pela defesa da ciência nos cuidados em saúde. O presidente, negacionista da calamidade pública causada pela pandemia, transformou Mandetta em inimigo político, culminando em sua demissão.
Com um líder político conspiracionista e com acenos ao fundamentalismo cristão, grupos religiosos aplicam golpes nos quais vendem “curas” para a COVID-19, retornando a uma ideologia presente no Brasil Colônia, segundo a qual a saúde era uma questão de fé. Pessoas com medo são exploradas em sua vulnerabilidade, que em meio à tensão da situação atual se apega às promessas fáceis.
Entre a ciência e as instituições religiosas, a saúde pública no Brasil se organizou ao longo da história de forma complexa e segregativa. Apesar da imensa conquista da criação e implementação do SUS no país, nas últimas décadas tem sido preciso que a saúde sejam disputada no campo político.
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