‘Infelizmente a Covid chegou’, relata neto de indígena morto em aldeia de MS

Negligência do Estado brasileiro para com vidas de pessoas indígenas apenas evidencia aspecto histórico da situação de marginalidade e de descaso que esses grupos sofrem

Por Adrian Albuquerque e Guilherme Correia
Ilustrações por Marina Duarte
Colaborou Leopoldo Neto

“Que todos os povos indígenas, não só os Terena, os indígenas do nosso país, sejam valorizados através das memórias que construímos e guardamos dos nossos pais. Esse é um importante trabalho a ser feito para valorização daquilo que guardamos dos nossos ancestrais.”

Ageu Filho, em homenagem publicada no próprio perfil do Facebook

“Meu avô foi vítima de Covid. Infelizmente esse vírus chega nas comunidades indígenas” relata o agente de saúde Sandro Duarte, 24 anos, morador da Aldeia Água Azul, situada no município de Dois Irmãos do Buriti.

Sandro teve que lidar com uma semana difícil. Três dias após a morte de seu avô (3), na quinta-feira (6), o agente de saúde, junto a outros moradores, velou o corpo de mais três vítimas da covid-19 na aldeia indígena onde nasceu e se criou. No local, somam-se quatro mortes pela doença.

“Foi uma semana de pura tristeza”, lamenta Sandro quando chegou a noite e pôde descansar. Pela Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), Sandro atua na linha de frente do combate à disseminação da pandemia ao visitar e auxiliar outros indígenas, e dificilmente lê mensagens que enviam a ele no celular. 

Benedito Reginaldo Filho, avô de Sandro, 94 anos, foi a primeira morte por Covid-19 registrada no município de Dois Irmãos do Buriti. De acordo com informações divulgadas pela Secretaria Estadual de Saúde (SES), Benedito estava em acompanhamento há nove dias, enquanto a família cumpria isolamento social.

No sábado (1º), o paciente deu entrada no Hospital Cristo Rei. Ele apresentava dificuldades respiratórias e possuía exame positivo para Covid-19. No dia seguinte (2), ao apresentar complicações no quadro clínico, foi encaminhado em estado grave para o Hospital Regional de Mato Grosso do Sul, em Campo Grande, mas não resistiu.

Até a data de publicação desta reportagem, o município soma 114 casos confirmados do novo coronavírus, e já decretou estado de calamidade pública

Sandro e os outros moradores da aldeia “tiveram de enfrentar a realidade da situação”. Começaram a surgir pacientes internados, os quadros clínicos pioraram e algumas pessoas se inseriam em grupos de risco.

Grupos mais vulneráveis

 

A família entrou em choque quando descobriu que Reginaldo havia contraído coronavírus. “Não queriam acreditar, porque antes mesmo só viam nos jornais mostrando mortes de pessoas por Covid”.

Reginaldo e as outras três vítimas que deixaram suas famílias na aldeia compõem uma grave uma estatística a respeito das mortes por Covid-19, que evidencia o tratamento desigual dado aos diferentes grupos sociais no combate a uma pandemia que ultrapassa cem mil mortos.

Levantamento feito pela equipe da Badaró aponta que a Covid-19 é mais letal para populações indígenas em relação a outros grupos sociais de Mato Grosso do Sul – estado que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), detém a segunda maior população aldeada em todo o Brasil.

Até terça-feira (11), segundo dados da SES, 2,1% dos indígenas infectados pelo novo coronavírus morriam em Mato Grosso do Sul. A taxa é quase duas vezes maior do que entre os brancos (1,2%).

O alto índice de infecção entre povos indígenas, que surgiu, inicialmente, na região sul do estado, motivou até ódio contra as populações. O primeiro teste positivo foi de uma mulher indígena, 35 anos, funcionária de frigorífico da JBS em Dourados. Após confirmação do caso, demais funcionários foram testados e, na mesma unidade, se contabilizou cerca de 30 trabalhadores indígenas infectados que levaram o vírus para as próprias casas em aldeia. 

A médica infectologista Mariana Croda ressalta que havia uma preocupação acentuada com essas populações desde os primeiros casos – fato que motivou a criação de um plano de contingência da Secretaria Estadual que contemplasse ações diferenciadas. “Sabíamos que a disseminação seria rápida dadas as condições de vulnerabilidade que essas populações são expostas”.

Os indígenas de reservas em Dourados também enfrentam um problema estrutural, que evidencia a desigualdade nas condições materiais básicas de sanidade para enfrentamento da pandemia: na maior parte do tempo, por exemplo, não há água para lavar as mãos, procedimento fundamental para evitar o contágio da doença segundo recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS).

A explosão de casos de coronavírus no município, que chegou a ser o principal epicentro na região, estimulou reação do Ministério Público Federal (MPF) do estado. O órgão ingressou com ação civil pública e solicitou que a União comprasse e distribuísse equipamentos de proteção individual (EPIs) ao Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) de Mato Grosso do Sul. A Justiça Federal em Dourados negou urgência da liminar, e ainda vai decidir sobre o caso.

A infectologista diz que a atenção do serviço público se voltará para Aquidauana, Miranda e Sidrolândia – municípios que contemplam boa parte das aldeias do polo da região centro-norte do estado, de maioria da etnia Terena, segunda com maior presença populacional em Mato Grosso do Sul. Conforme a SES, quase 60% das mortes de aquidauanenses eram indígenas.

 

Mariana Croda salienta ainda que o acesso universal à saúde é obrigatório principalmente em razão do alto número de mortes indígenas pela doença. “A grande mortalidade dessas populações mostra que o acesso ao serviço de saúde é mandatório, e e isso que estamos buscando prover tanto com recursos recursos humanos e solicitando apoios de todos os entes, incluindo o governo Federal através da Sesai, que é o órgão competente para fazer esse tipo de coisa”.

A região do cone-sul de Mato Grosso do Sul foi o primeira a ser afetada no contexto pandêmico estadual após os primeiros casos, registrados em Campo Grande, no mês de março (14). “Os casos começaram em Campo Grande, e o avanço pelo interior se deu na forma de surtos epidêmicos geralmente ligado a algum evento”, explica Croda.

“O surto em Guia Lopes da Laguna foi ligado ao frigorífico, o surto em Brasilândia ligado a um evento social. Tivemos no sul do Estado o surto principalmente na atividade laboral, mas que rapidamente se tornou de transmissão comunitária, avançando para os 11 municípios da Microrregião de Dourados – que hoje de alguma forma hoje se encontra ‘sobre controle”.

Mesmo durante a explosão de casos, o comércio de Dourados funcionou normalmente. Em junho (13), o Ministério Público de Mato Grosso do Sul (MPMS) deu prazo de 48h para que houvesse maior restrição na cidade. O prefeito de Douradina, distante 46 km de Dourados, Jean Sérgio (PTN), em nota pública, pediu interdição temporária da indústria.

Durante coletiva de imprensa, o procurador do MPT Jeferson Pereira elogiou atuação da JBS, que está “sob constante vigília” e os protocolos estipulados nos planos de biossegurança, que seriam “efetivos”. O procurador, que defende “equacionar economia, saúde e sustento dos trabalhadores”, destacou doações feitas pela JBS a um hospital de Dourados e criticou a gestão da prefeitura douradense.

Os indígenas e as epidemias

 

Em março de 2019, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) denunciou em nota o Governo Federal e o então ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, por genocídio. Para eles, o fim do subsistema de saúde indígena e a sua municipalização da faziam parte do desmonte da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, de 2002.

Políticas públicas que negligenciam, omitem ou atentam contra a saúde indígena não são novidade. Na verdade, podem ser observadas desde o Brasil Colônia. O caso mais bem documentado de infecções propositais se passou no Maranhão, entre os séculos XVIII e XIX, em 1800.

Por volta de 1816, a tribo Kapiekrã, vitoriosos com ajuda do homem branco na batalha contra os Sakamekrã, foi levada ao seu extermínio. Isso se deu após uma trégua em uma guerra contra criadores de gado que invadiam terras indígenas.

Depois da vitória, os Kapiekrã deixaram suas terras para morar com os “civilizados”. Estes que aguardavam auxílio financeiro do governo para ajudar com o custo dos novos moradores – auxílio que nunca chegou.

Para evitar a revolta dos indígenas e evitar os custos adicionais, os proprietários do gado então, sob pretexto de uma guerra contra outra tribo, atraíram os Kapiekrã à vila de Caxias, na época acometida por uma epidemia de varíola. Na vila, os Kapiekrã, ao tentarem saciar a fome nas plantações locais, foram caçados a tiros. Os sobreviventes levaram consigo a varíola, que se disseminou entre as tribos da região. 

As transmissões intencionais de doenças, aos moldes das armas químicas, aos indígenas são comuns ao longo da história do Brasil. A obra Os Fuzis e as Flechas (2017), de Rubens Valente, se inicia desenhando o primeiro quadro de uma constante presente na história da busca pela ocupação de terras indígenas que se valeu do massacre de índios (neste primeiro caso, os Kararaô, do Pará) como resultado do despreparo das chamadas “frentes de atração”, que acabavam levando doenças para as terras nativas.

De acordo com a pesquisa documental de Valente, entre 1961 e 1982, morreram cerca de 600 índios de diversas etnias no Brasil. Os números não são exatos, pois em diversos casos não há documentação comprobatória das mortes – tendo em consideração o contexto ditatorial em que o país se inseria -, tendo como prova apenas relatos dos sertanistas do Serviço de Proteção ao Índio, órgão que existiu de 1961 a 1967.

A relação entre os métodos de extermínio, deliberados ou não, do passado com a negligência do Governo Federal presente não é tão aleatória e distante. Em 1972, o etnólogo francês Jean Chiappino conviveu com os indígenas da tribo Suruí Paiter por três meses. À época de sua chegada, cerca de 5 mil índios haviam sido reunidos pela Funais na região que hoje é o Parque Indígena Ariúanã.

Devido ao contato descuidado e sem qualquer assistência médica, os indígenas foram acometidos por uma epidemia de sarampo. Entre negligências e manobras propagandistas, Chiappino relatou que a doença atingira 60% da população total. 

O etnólogo então produziu um documento, ressaltado por Valente, sobre o problema da política indigenista brasileira, seus métodos e suas consequências. Denuncia Chiappino:

Esse trabalho de proteção é tão desagradável para certas pessoas ou significa uma política deliberada? O silêncio em que é mantido não revela que certas pessoas estão bem informadas sobre o que estão promovendo? E não temamos uma palavra: isso não é genocídio? (CHIAPPINO apud VALENTE, 2017, p. 82)

REFERÊNCIAS 

VALENTE, Rubens. Os Fuzis e as Flechas: História de sangue e resistência indígena na ditadura. 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
CHIAPPINO, Jean. The Brazilian Indigenous Problem and Policy: The Aripuanã Park. Amazind/IWGIA Document, n. 19, 1975.
MEC. Índios do Brasil 1. – reimpressão. Brasília, 2001.
RIBEIRO, Darcy. Os Índios e a Civilização: a integração dos indígenas no Brasil moderno. 1ª edição digital. Global Editora. São Paulo, 2017.

Adrian Albuquerque

Repórter e diretor de audiovisual

Jornalista, editor de vídeo, sucinto e entusiasta de alguns filmes. Interessado em artes, cultura e política. Diretor do documentário “Isto não é uma entrevista”.

Guilherme Correia

Repórter e Subdiretor de arte

Estudante de jornalismo. Entusiasta de muitas coisas, do futebol ao audiovisual. Interessado em educação, cultura e pautas sociais.

MARINA DUARTE

produtora-executiva

Ilustradora, acadêmica de psicopedagogia, estudou jornalismo. Militante feminista interessada na profunda transformação social.

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