Quando o jornalismo expõe vítimas e reproduz a violência de gênero

Publicizar nomes de vítimas e detalhes sobre suas denúncias revitimiza e pode colocá-las em risco

Por Tainá Jara
Arte: Norberto Liberator

É papel do jornalismo reproduzir violência de gênero? Revitimizar mulheres já feridas no seu íntimo é jornalismo? Podem parecer questionamentos sem cabimento e de respostas óbvias, mas a prática de expor vítimas de feminicídios, estupros, assédios e importunações sexuais é quase naturalizada mesmo em veículos de comunicação em que atuam profissionais com formação na área. 

Acompanhamos, desde o mês de setembro, denúncias de assédio moral e sexual contra o então ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, exonerado do cargo à época. Durante o mês de outubro, houve duas novas denúncias. Entre as vítimas, anônimas, o nome de uma ministra de Estado foi revelado pela imprensa. Do lado de lá, silêncio. O que se passa na cabeça da vítima quando uma violência que sofreu é exposta sem seu consentimento? Medo, vergonha, prejuízos físicos, psicológicos e financeiros… 

Nome, foto e cargo, além de detalhes íntimos, infelizmente servem de chamariz para cliques. Ao fazer isso, o jornalismo revitimiza, culpabiliza e reproduz a  atmosfera de desconfiança que costuma permear esse tipo de denúncia. Como se colocar tais detalhes ao escrutínio público fossem imprescindíveis para provar o crime. 

A Lei Maria da Penha, a Lei do Feminicídio e tantas outras que vieram depois, ajudaram a repensar muita coisa. São instrumentos importantes de combate à violência. O jornalismo foi/é fundamental na divulgação dessas leis. Mas, há um pé no sensacionalismo e um apego aos valores fundantes da profissão, carentes de serem revistos a partir de uma ótica plural, que nos impedem de ir além, na verdade, de fazer até mesmo o mínimo estabelecido no Código de Ética da profissão, em que o combate às opressões é um compromisso. 

O grande desafio talvez seja noticiar sem expor vítimas contra a sua vontade, sem revitimizá-las, sem potencializar violências detalhando-as e contribuindo para satisfazer misóginos e fascistas, infelizmente tão comuns nos dias de hoje. Acabamos fazendo tudo isso, disfarçando a reprodução de violências sob o manto do interesse público. 

Prolongamos tais violências quando as compartilhamos em qualquer formato. Nos tornamos criminosos a depender do teor desse compartilhamento.

Deixar de informar certamente não é uma opção. Mas saber informar isso de forma realmente útil, com um olhar amplo sobre a sociedade atual e o contexto vigente, ciente ao menos dos impactos mínimos de tal produção, inclusive na vida das envolvidas, é o mais importante.

Sabemos que quando se trata de uma mulher, não é necessariamente o criminoso quem vai pagar pela exposição de um caso. Não será ele a “puta”! Não será ele “a que procurou por aquilo”. Sendo um homem na mesma situação, iremos publicar, iremos abordar da mesma forma?

As jornalistas Márcia Veiga da Silva e Fabiana Moraes, ao falarem sobre a contribuição do jornalismo para a manutenção do racismo, trazem ao debate crítica que cabe à discriminação de gênero. “A questão é que, blindado por uma suposta neutralidade e uma mal disfarçada posição de superioridade epistêmica, o jornalismo resiste a pensar a si mesmo como difusor e reprodutor de uma lógica racista. O estrago é imenso”.

Então, eu me pergunto: a quem o jornalismo quer e deve servir? De que forma o jornalismo pode agir nessa disparidade de forças? Certamente não é expondo vítimas, colocando em xeque o caráter delas ou as culpabilizando.

Vivemos tempos muito diferentes de 20 anos atrás em relação ao debate da questão de gênero. O jornalismo tem a obrigação de acompanhar essas mudanças e problematizá-las de forma qualificada. Hoje temos bancos de dados ao alcance das mãos, temos pesquisadoras de renome que estudam o tema de forma aprofundada e podem servir de fontes valiosas, canais de denúncias esperando para serem divulgados.

Convido, mais uma vez, com toda disposição ao diálogo, os colegas jornalistas a repensarem tais coberturas. Especialmente as/os reincidentes. Não só porque essas questões podem atingir qualquer mulher pessoalmente, mas, para fazermos valer tantos esforços para avançar nesse debate nos últimos anos, mesmo sob ameaças de retrocesso. O jornalismo vive uma crise de credibilidade e não podemos nós, os próprios profissionais, sermos os responsáveis por terminar de sufocá-lo, junto ao pedido de socorro de inúmeras mulheres.

 

Referências:

VEIGA, Márcia.; MORAES, Fabiana. “Onde está Ruanda no mapa? Decolonialidade, subjetividade e o racismo epistêmico no jornalismo. Pesquisa em Comunicação: Jornalismo, Raça e Gênero. Rio Branco: Nepan Editora, 2021, p. 94-109.

Tainá Jara

Jornalista e pesquisadora em Comunicação. Interessada em mídia, estudos de gênero e direitos humanos. Na horas vagas vai de cinema, música e, sim, política.

Norberto Liberator

Jornalista, ilustrador e quadrinista. Interessado em política, meio ambiente, artes e esportes.

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