Re-Pa é resistência
- 6 de fevereiro de 2020
Por Norberto Liberator
“Se meu pai visse minha tatuagem, ele arrancava na faca”, diz o motorista de aplicativo. Marcos, o passageiro, não entende muito bem. “Ele não gosta de tatuagem?”, questiona, alheio ao problema. “Rapaz… ele é Remo”, responde o condutor, erguendo o antebraço para deixar visível o escudo do Paysandu, que adorna sua pele.
O diálogo é contado a mim pelo próprio Marcos. Paulistas do interior, torcedores de clubes da capital – ele, do Corinthians e eu, do São Paulo – e radicados em Campo Grande, comentamos a relação entre os belenenses e o futebol, muito diferente da nossa. Na maior cidade sul-mato-grossense, a ligação com os clubes locais é pequena, embora haja um vago saudosismo.
Sabe-se que o Operário já figurou entre os principais do Brasil e que o clássico “Comerário”, junto ao Comercial, chegava a atingir a capacidade de 45 mil torcedores do Pedro Pedrossian, o “Morenão”, maior estádio universitário da América Latina. Hoje, quando muito, os jogos somam cerca de 1000 espectadores. Dos poucos guerreiros que comparecem e apoiam os clubes, nunca conheci um de torcida única.
As pessoas são “Flamengo e, aqui, Operário”; “Vasco e, aqui, Comercial”, ou sequer têm os locais como segundo time. No interior paulista, a lógica se repete. Torce-se para clubes da capital e alguns são torcedores mistos. Massivamente, a única exceção é Campinas – pero no mucho: a Ponte já fica atrás do Corinthians em popularidade e o Guarani é o quarto, atrás também do São Paulo. Em Piracicaba, o XV é folclórico e pouco além disso.
O clássico do povo
De repente, estou em Belém, alojado no Instituto Federal do Pará (IFPA) por uma semana. No muro, um grafite alusivo ao Paysandu. No interior, alunos passam com o uniforme da instituição. Com a limitação de se usar a roupa padrão do local, pouca brecha há para camisas de futebol, o que não me impede de ver a alvi-celeste do Papão e a azul-marinho do Leão ali mesmo, no IFPA, em uma e outra ocasião.
Cruzo o viaduto para chegar ao ponto de ônibus. Deste lado da rua, um grafite homenageia o Remo. No ônibus, algumas pessoas com uniformes – do Remo. No trajeto, com o olhar fixo na janela, vejo um muro; lá está ele pintado: o escudo do Remo. Mais adiante, uma bandeira do Paysandu tremula sobre outra casa. Até descobrir que estou no trajeto oposto ao meu destino, ainda não vi uma única alusão a clubes de fora. Mas noto, gravada em um muro, a inscrição: Tuna Luso-Brasileira. Trata-se do Francisco Vasques, o “Souza”, estádio do terceiro clube da cidade.
Ao saber do equívoco na escolha do ônibus, permaneço nele, para refazer todo o trajeto pelo sentido oposto e, então, chegar aonde devo ir: à Universidade Federal do Pará (UFPA). O trajeto passa pelos estádios de Paysandu e Remo – uma avenida separa os dois –, e noto a proximidade de “meu” alojamento a ambos. No dia seguinte, antes da ida diária à UFPA, passo pela Curuzu (Paysandu) e pelo Baenão (Remo). Tiro algumas fotos.
O motorista que me leva à Universidade explica que a Tuna Luso, “que já não era essas coisas”, tem raros torcedores, afinal “só sobraram os velhinhos mesmo”. Ele me garante que “o forte entre o povão é Remo” e que está com o Leão para o que der e vier. A torcida do Papão, de acordo com o remista apaixonado que me apresenta à sua visão do futebol local, é composta por pessoas “modinhas” que gostam de “ir na onda”.
Apesar do clubismo, há embasamento: de acordo com relatório do Instituto do Grupo de Planejamento e Pesquisa (GPP) divulgado em 2014, o Remo representava à época 30,5% dos torcedores da zona metropolitana de Belém, e o Paysandu, 27,8%. No entanto, vencer a Copa dos Campeões em 2002 e consequentemente disputar a Libertadores de 2003, na qual venceu o Boca Juniors na Bombonera por 1 a 0, foram fatores decisivos para o Papão conquistar a geração que cresceu vendo a boa fase do clube. Na pesquisa do GPP, o Flamengo é o terceiro mais popular na Grande Belém, com 9,6%. Os dados mostram que cerca de 60% da população mantém a preferência pelos clubes locais.
Enquanto vou à feira procurar pelo açaí paraense, um bar está lotado de camisas alvi-celestes: são torcedores do Paysandu, que acompanharam o clube em sua última partida, recém-chegados em caravana. Mais tarde, na famosa Ver-O-Peso, camisas, shorts, canecas, cumbucas, ímãs de geladeira e pingentes com os escudos dos dois clubes. Menção honrosa: encontro até uma tigela da Tuna Luso!
Diante de gestões desastrosas e da desvantagem de equipes que não fazem parte do Clube dos 13, o Re-Pa respira. E Belém respira o Re-Pa. Não há possibilidade de análise antropológica, sociológica ou geopolítica que se proponha a compreender a cidade sem levar em conta o clássico. É como o Caprichoso x Garantido em Parintins. E, da mesma forma, se mantém popular diante da mercantilização. É a vendedora de tapioca que, ao comentar a eliminação para o rival na semifinal da Copa Verde de 2019, me explica o quanto o Remo a faz sofrer; é também o grupo de pessoas que, no bar, puxa o coro: “uma listra branca, outra listra azul, essas são as cores do Papão da Curuzu”.
Não tive ainda a oportunidade de assistir ao Re-Pa oficial, que, com mais de 750 edições, é provavelmente o clássico mais jogado do mundo. Mas o Re-Pa de facto é contínuo. Belém o vivencia diariamente. Um espetáculo cotidiano no qual o povo é o ator principal. A partida e seus resultados são a coroação, em que os coadjuvantes – os jogadores – definem quais dos protagonistas serão premiados. E no próximo domingo tem mais.