“Ainda Estou Aqui”: a preservação da memória

Filme de Walter Salles aborda com sutileza e sem sensacionalismos a dor da busca por familiares mortos pela ditadura militar

Por Vitória Regina e Maria Fernanda Figueiró

O aguardado “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, corresponde às expectativas. A narrativa tem início em 1970, em meio à repressão e perseguição da ditadura militar brasileira, e é baseada nas memórias de Marcelo Rubens Paiva sobre sua mãe, Eunice Paiva (Fernanda Torres). Eunice, mãe de cinco filhos, vê-se desafiada a se reinventar como mulher e ativista após o desaparecimento de seu marido, Rubens Paiva (Selton Mello), sequestrado e assassinado pelas mãos do aparato repressivo do Estado.

Rubens Paiva, que era deputado federal quando ocorreu o golpe de 1º de abril de 1964, convocou o povo a não ceder ao autoritarismo imposto. Sua cassação, rápida e implacável, marcou o início de uma perseguição brutal a dezenas de parlamentares opositores. O filme escapa, contudo, das narrativas tradicionais ao evitar heróis romantizados ou cenas escancaradas de tortura física.

Em vez disso, explora a silenciosa e dilacerante tortura psicológica do desaparecimento, conduzindo o espectador por uma cerimônia fúnebre e angustiante, onde a dor se constrói no vazio, na ausência e na incerteza. É uma experiência de luto compartilhado e uma crítica ao desamparo que deixou a memória desses desaparecidos sem a reparação do Estado.

O filme se desenha pelo olhar de Fernanda Torres, que encarna as dores de uma família marcada pela violência do Estado e pela ausência do marido. A falta de Rubens se faz uma presença constante, seja nas perguntas inocentes dos filhos sobre quando o pai voltará, ou nos momentos silenciosos em que a família se reúne para folhear os álbuns de fotos.

Uma das cenas mais emblemáticas do filme é o instante em que a família decide deixar o Rio de Janeiro. Antes da partida, Eunice e os filhos recebem a visita de um jornalista para uma matéria sobre o desaparecimento de Rubens. O fotógrafo, atento ao desejo do editor, sugere que se posicionem de forma séria, sem sorrisos. Eunice, porém, se recusa. Ela entende que aquela imagem poderia ser manipulada pelos militares e pela mídia, transformando os Paiva em símbolos de derrota. Assim, guiada por um sentimento de esperança, Eunice se volta para seus filhos e diz: “vamos sorrir.”

No ato final, Fernanda Montenegro entrega uma atuação avassaladora e silenciosa. Como Eunice, já tomada pelo Alzheimer, Montenegro emociona-se ao ouvir o nome de Rubens na Comissão Nacional da Verdade de 2014. A morte de Rubens só foi oficialmente reconhecida em 1996, mais de duas décadas após seu assassinato. 

E foi por meio dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade – composta por sete membros nomeados pela presidente Dilma Rousseff e assistida por uma equipe de pesquisadores e consultores – que vieram à tona as circunstâncias de suas torturas e a identidade dos responsáveis. Mesmo assim, nenhum dos agentes envolvidos em crimes de Estado foi julgado ou responsabilizado.

A obra traz elementos estéticos que reforçam a singularidade da narrativa. Desde o enfoque dado a objetos que capturam o presente de cada época até a trilha sonora cuidadosamente selecionada, a direção constrói uma atmosfera onde a memória ocupa lugar central em cada cena. O filme também brinca com a temporalidade, atravessando a década de 1970, os anos 2000 e o ano de 2014. Entre esses lapsos temporais, os objetos que capturam a memória atuam como signos que costuram a narrativa. Da filmadora e câmera analógica aos modernos iPhones, o diretor utiliza esses elementos de maneira sensível para evidenciar a urgência de capturar o presente, em um recado que diz: “não esquecemos, ainda estamos aqui.

A trilha sonora do filme é composta por clássicos brasileiros das décadas de 1960 e 1970, período em que muitos artistas foram perseguidos e suas produções censuradas pela ditadura militar. A música-tema, “É Preciso Dar um Jeito, Meu Amigo”, de Erasmo Carlos em parceria com Roberto Carlos, reflete o tom da narrativa. Lançada no álbum “Carlos, Erasmo” (1971), onde aparece como terceira faixa, a canção carrega uma melodia robusta e oferece uma metáfora para o ambiente opressivo e hostil da época. 

A letra dialoga com a narrativa proposta pelo diretor, onde o espaço para o não dito se manifesta em olhares e gestos — como o olhar agônico da protagonista no pôster do filme. Em meio aos obstáculos e dores de uma longa jornada, a história lembra da importância de dizer e de não se esquecer o que foi vivido, cumprindo, nas palavras de Castoriadis, nossa obrigação com as gerações futuras e com a memória daqueles que vieram antes de nós.

“Ainda Estou Aqui” demonstra que não se constrói um futuro ignorando o passado. É, sobretudo, uma obra dedicada à preservação da memória e um convite a nunca esquecer, tampouco perdoar.

 

 

Vitória Regina

Vitória Regina

Marxista e psicóloga. Debate política, psicologia e cultura.

Maria Fernanda Figueiró

Maria Fernanda Figueiró

Acadêmica de Psicologia pela UFMS, atua há mais de 16 anos na área da dança e atualmente é intérprete criadora das companhias de dança Cia do Mato e Ginga.

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