Colagem: Vitória Regina

Dança e política: a origem da dança moderna e a Alemanha Nazista

Ascensão de movimento vanguardista está envolta em controvérsias ligadas a políticas do Terceiro Reich

Por Maria Fernanda Figueiró
Arte: Vitória Regina

A dança moderna surge na Alemanha do início do século XX, período marcado pelo surgimento de diversas bases para a dança contemporânea, tendo no nome de Rudolf Von Laban (1879-1958) a faísca de sua fomentação. A chamada dança moderna surge como uma forma de produzir dança como uma reação e enfrentamento a um tempo marcado pela “decadência da modernidade”.

O mundo começava a ser dominado por máquinas e já se pressentia os flagelos da barbárie da guerra, reagindo “contra a mecanização dos processos produtivos e das relações sociais. Isto levou os pioneiros da dança moderna a investigar a relação do homem com o próprio corpo e de seu corpo com o mundo.” (SILVEIRA, 2009, p. 4)

Além de Laban, é imprescindível citar outros dois nomes fundamentais para o desenvolvimento da dança moderna na Europa do século XX: Kurt Joss (1901-1979) e Mary Wigman (1886-1973). Esta, durante sete anos, foi assistente e colaboradora de Laban e, durante a I Guerra Mundial, mudou-se para Zurique e passaram a frequentar encontros com outros artistas de diversas áreas que expressavam suas consternações em relação aos horrores da guerra, alimentando-se das bases da construção do movimento dadaísta.

Tal momento histórico foi fundamental para Laban aprofundar e pesquisar seu estilo, promovendo o pensamento de uma dança que privilegiava a exploração criativa ao invés do virtuosismo de execução, como era predominante na dança até então desenvolvida.

O intuito das pesquisas de Laban e Wigman era desenvolver ferramentas para ensinar a dança agrupos amadores, de maneira a reintegrar a prática da dança à vida das pessoas comuns (OLIVEIRA, 2020).

Tal concepção foi muito utilizada na dança moderna norte-americana como uma prática política com enorme capacidade de “despertar a consciência de classe em crianças e treinar adultos para o movimento coletivo organizado, necessário para a luta por direitos sociais” (OLIVEIRA, 2020, p.39).

Com o fim da I Guerra Mundial, Mary Wigman monta, em 1920, sua escola de dança expressionista denominada Dresden Central School ou Mary Wigman-Schule. Ela obteve um grande sucesso na Alemanha e em outros países por ser uma das primeiras coreógrafas a trabalhar com músicos em suas composições, tendo um efeito profundo na maneira pela qual os artistas passaram a encarar a dança.

A coreógrafa alemã acreditava no rompimento do bailarino com a tradição clássica de forma que este pudesse expressar-se mais livremente e compor com sua individualidade. Convergiu suas pesquisas aos princípios da Dança de Expressão (Ausdruckstanz) que tinha no individualismo de cada bailarino a base subjetiva para a criação.

Segundo Franco (2007), foi implicitamente atribuída à Ausdruckstanz uma aproximação estética e ideológica com o movimento expressionista, entretanto, contrariamente deste movimento, que foi considerado revolucionário pela história e banido do regime nazista, a Ausdruckstanz continuou a florescer durante o regime tendo inclusive seu suporte. O interesse do regime nazista em fomentar a Ausdruckstanz se deu pelo fato desta ser definida como a “dança alemã”,  no intuito de marcar a distinção com a dança moderna americana, de forma que a dança alemã obtivesse um caráter nacionalista e racista – uma vez que a política cultural deste regime negava qualquer tipo de liberdade (Franco, 2007).  

É relevante ressaltar que, durante o governo de Adolf Hitler, Laban e Wigman obtiveram investimento em seus trabalhos pelo Ministério da Propaganda de Joseph Goebbels, tendo sido ambos convidados para a realização dos preparativos para o Festival de Dança da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Berlim de 1936. Entretanto, em 1935, Mary Wigman recusa o convite de Laban para participar da abertura.

As  consequências de seu possível envolvimento não deixaram de chocar a comunidade artística, principalmente os alunos da Mary Wigman School, localizada em Nova York,  que era composta em sua maioria por alunos da esquerda militante, tendo grandes nomes da chamada dança revolucionária que eram formados em sua maioria por mulheres judias.

Laban, por sua vez, teve um importante papel no projeto político nazista através das chamadas danças-corais, que tinham como intuito promover a disseminação da prática da dança para amadores interessados em estabelecer uma conexão com o coletivo. As danças corais tinham como intuito unir amadores e profissionais da dança de forma a aproximar o sujeito comum da arte, produzindo uma linguagem acessível que intuía que o fazer artístico poderia pertencer a qualquer um.

Tal fenômeno era estabelecido através de um conjunto de pessoas que se movimentavam em consonância, seguindo os passos coreográficos de um líder que organizava o grupo em simultaneidade. Este formato coreográfico foi rapidamente cooptado pelo regime nazista e denominada como a Gemeinschaftstanz (dança comunitária) do povo alemão, inferindo um senso de comunidade estrategicamente utilizado pela ideologia nazista para a consolidação de seu projeto identitário da raça ariana, onde a pregação de uma identidade única e homogênea afirmasse seus ideais higienistas e de exclusão.  

Laban ainda exerceu o cargo de direção do Deutschen Tanzbühne após um convite de Joseph Goebbels. Este cargo de alta posição  o encarregava de “organizar apresentações de trabalhos artísticos de dança, coreografa-los quando necessário, e promover jovens bailarinos alemães, principalmente aqueles que estavam sem trabalho por causa da recessão” (PRESTON-DUNLOP, 1998, p. 186).

Ainda no cargo de direção do Deutschen Tanzbühne, Laban constantemente apresentava sua dança à disposição do regime: “Nós queremos colocar nossos meios de expressão e a linguagem de nossa arte em seu nível mais intenso a serviço das grandes tarefas que nosso povo deve realizar e às quais nosso Führer apontou o caminho com implacável clareza de visão.” (LABAN apud KARINA; KANT, 2003, p. 17).

Colagem: Vitória Regina

Quando ainda responsável pelos Teatros Estatais de Berlim, Laban baniu alunos lidos como não-arianos das turmas infantis de ballet e utilizou em suas coreografias símbolos significantes à ideologia nazista, afirmando em um Congresso de Dança de 1930 que sua dança-coral era uma: “nova dança folclórica da raça branca da qual ele diferenciava das danças sociais da moda que mostram uma invasão dos movimentos raciais estrangeiros” (LABAN apud KEW,1999, p. 78). Em 1937, o termo danças-corais foi oficialmente abandonado pelo regime nazista (KEW, 1999) dando lugar aos desfiles militares como uma representação da força alemã. 

Assim como Wigman, Kurt Joss conheceu Laban e o posicionou como um importante mestre que o orientou e o introduziu no mundo da dança, tornando-se um dos seus principais bailarinos da chamada Tanzbühne Laban.

Ao passar dos anos, traçou seu próprio caminho e formalizou seus próprios métodos artísticos e de trabalho, tendo em Laban uma eterna referência, tornando-se um dos fundadores da Folkwang Hochschule em 1927. Segundo Cypriano (2005) a dança-teatro de Joss conversava com o movimento composto por diversos artistas denominado Nova Objetividade, que tinha como intuito inserir em suas obras temas sobre o horror da guerra e críticas à ascensão do nazismo, tendo na vida material sua fonte de análise e inspiração.

Em 1937 com a ascensão do nazismo, muitos dos artistas que compunham esse movimento tiveram seus trabalhos confiscados e expostos ao ridículo na exposição promovida pelos nazistas intitulada “Arte Degenerada” (DEMPSEY, 2003).

Joss obteve problemas com o regime nazista uma vez que, contrariamente a Laban e Wigman, fazia oposição aos mandos do regime que ordenava a demissão de todos os funcionários judeus que trabalhavam com ele, levando-o então a migrar com toda sua companhia para a Inglaterra.

Em 1949, após o fim  II Guerra Mundial, Joss retorna a Essen e volta a dirigir a Folkwang Hochschule trabalhando, com um método pedagógico e estético que promovia a integração de  todas as artes.

A dança, assim como as demais áreas do mundo artístico, tem seu percurso e desenvolvimento marcado pela história e por isso se faz reflexo de seu tempo histórico à medida em que responde a ele a sua maneira, seja subjugando-se ou opondo-se a eles.

Aqui foram apresentados alguns exemplos deste período na história da dança, que contempla desde a construção de grupos que apreenderam a dança como uma ferramenta de conexão com a classe trabalhadora, a grupos que se renderam aos mandos de regimes opressores.

O presente texto tem como intuito acenar acerca do potente papel revolucionário que a dança exerce. Entretanto, esse papel só pode ser executado se a dança e seus fazedores voltarem a se conectar com a classe trabalhadora e assumir “ novamente a responsabilidade de incentivar e organizar o movimento coletivo através da experiência sensível compartilhada.”  (OLIVEIRA, 2020, p. 158).

O legado técnico de Laban e Wigman para a dança contemporânea e dança-teatro é vasto e expressivo. Contudo, não devemos ignorar as contradições da história da dança e nem mesmo deixar de escrevê-las para que seus produtores nunca se esqueçam que o fazer artístico é sempre um fazer político, e que toda obra possui seu tempo histórico, basta o artista desvelar seu tempo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CYPRIANO, F. Pina Bausch. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

DEMPSEY, A. Estilos, escolas e movimentos. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

FRANCO, S; NORDERA, M. Dance discourses: keywords for dance research. New York: Routledge, 2007.

KARINA, L; KANT, M. Hitler’s dancers: german modern dance and the Third Reich. New York: Berghahn Books, 2003.

KEW, C. From Weimar movement choir to nazi community dance: the rise and fall of Rudolf Laban’s Festkultur. Dance Research: The Journal of the Society for Dance Research, v. 17, n. 2, p. 73-96, 1999.

OLIVEIRA, J. Martha Graham e a dança moderna na linha de frente do movimento progressista. 2020. Dissertação (Mestrado em Artes) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009. Orientador: Marcos César de Paula Soares.

RESTON-DUNLOP, V. Rudolf Laban: an extraordinary life. London: Dance Books, 1998.

SILVEIRA, J. Dramaturgia na dança-teatro de Pina Bausch. 2009. Dissertação (Mestrado em Artes) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.

 

Maria Fernanda Figueiró

Acadêmica de Psicologia pela UFMS, atua há mais de 16 anos na área da dança e atualmente é intérprete criadora das companhias de dança Cia do Mato e Ginga.

Vitória Regina

Marxista e psicóloga. Debate política, psicologia e cultura.

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