Quando o racismo entra na guerra
- 12 de março de 2022
Conflito entre Ucrânia e Rússia explicita interesses coloniais opostos, enquanto análises escancaram discurso de supremacia branca
Por Vitória Regina e Norberto Liberator
Arte por Adrian Albuquerque e Guilherme Correia
O conflito militar travado entre a Rússia e a Ucrânia, que eclodiu no último dia 24 de fevereiro, não pode ser compreendido apenas se analisarmos as semanas que o antecederam. Para tentarmos entender o que está acontecendo no Leste Europeu, é necessário voltar, no mínimo, uma década. O presidente russo, Vladimir Putin, diante de um aceno entre a Ucrânia — país que compartilha 1.200 milhas (ca. 1.931 km) de fronteira com a Rússia — e as forças euro-atlânticas (EUA, Otan, UE), com seu poderio militar herdado da antiga União Soviética, demonstrou que a guerra nada mais é do que a continuação da política por outros meios. Putin, ao observar o poder político e bélico estadunidense se estendendo na Ucrânia — e no Leste —, afirmou que interviria militarmente no país caso as negociações de incorporação à Otan continuassem. O avanço da influência dos Estados Unidos na Ucrânia é uma ameaça direta à segurança da Rússia. O presidente russo exigiu uma postura neutra do país vizinho e que o mesmo abandonasse a ideia de se tornar membro da Otan.
Diferentemente do que narra a mídia ocidental pró-Estados Unidos, a Rússia e a Ucrânia não são nações rivais. Durante a Segunda Guerra Mundial, os dois países eram parte da União Soviética e perderam mais de 27 milhões de pessoas que lutaram e resistiram contra a invasão nazista em seus territórios. Em 1991, após o fim da URSS e a dissolução do bloco soviético, foi tensionada uma hostilidade entre os países que até outrora eram considerados irmãos. Posteriormente, com o que imaginávamos ser o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos dão início a uma tentativa de estabelecer alianças militares com ex-países da URSS.
No dia da invasão russa à Ucrânia, Putin declarou que não pretendia ocupar o território ucraniano, mas sim realizar uma ”desmilitarização” e ”desnazificação” do país. Essas colocações não devem ser o bastante para sair em defesa de Putin, considerando que há milícias neonazistas também do lado russo e que a política de Putin na Rússia é conservadora e reacionária. Neste sentido, não há possibilidade de ver no presidente russo uma figura anti-imperialista.
A propaganda de guerra que narra o conflito coloca, diante de nossos olhos, a obrigação de escolher um lado. No Ocidente, aqueles que ”prezam pela democracia e pela liberdade” — e ignoram a História — defendem a solidariedade à Ucrânia e o apoio às forças euro-atlânticas. Em contrapartida, há quem veja na figura do antissoviético Putin e na atual Rússia uma alternativa anti-imperialista. Todavia, o que acontece não é uma batalha entre uma potência imperialista contra uma anti-imperialista, mas sim um conflito interimperialista. É possível ser contrário à expansão da Otan e ver na Rússia uma potência econômica que almeja disputar o mercado internacional.
Contudo, a violência da guerra não se restringe somente à questão militar. Com o avanço das tropas russas, milhares de pessoas começaram a sair do território de conflito buscando segurança em outros países. No entanto, a comoção foi seletiva e a solidariedade não abarcou todas as pessoas. Inúmeras pessoas negras e não-brancas relataram dificuldades em sair da Ucrânia, expondo o racismo, a intolerância e a xenofobia.
Desde o início do conflito, vemos um show de horrores exibido em jornais ao redor do mundo. A comoção se limita às pessoas brancas, loiras e de olhos azuis, como disse — não em tom de crítica — o político ucraniano David Sakvarelidze. Além disso, os europeus estão vendo como barbárie o que acontece diariamente no Oriente Médio e África.
Racismo explícito na cobertura midiática
Desde os primeiros dias do conflito, veículos de imprensa — em reportagens sobre o conflito ou nas figuras de “analistas” convidados — têm abordado a guerra na Ucrânia a partir de uma solidariedade e comoção seletivas. Em alguns casos, a atitude se deu de forma explícita. Para além do fato de o Jornal Nacional dedicar todos os blocos de sua grade à cobertura da guerra no Leste Europeu, ou da postura anti-profissional de Jorge Pontual, que chegou a interromper e insultar o historiador Rodrigo Ianhez para defender sua torcida pelo lado ocidental do conflito, houve declarações sem o mínimo objetivo de implicitar o discurso de supremacia branca.
O jornalista Charlie D’Agata, correspondente da rede estadunidense CBS, afirmou que a situação é problemática por Kiev ser uma cidade “relativamente civilizada, relativamente europeia”, ao contrário de lugares como Iraque e Afeganistão, segundo suas palavras. A fala de D’Agata, além de demonstrar o desprezo por vidas não brancas, deixa subentendido também o histórico preconceito contra povos eslavos, tidos como “bárbaros” pela Europa ocidental desde o Império Romano. O racismo contra europeus orientais se seguiu durante a Idade Média, sobretudo pelo “racha” entre a Igreja Católica Romana e a Igreja Ortodoxa, a partir do chamado Cisma do Oriente, que separou a instituição entre o comando de Roma e o de Constantinopla. Ao dizer que ucranianos são “relativamente” civilizados e europeus, D’Agata reforça que aquela população é “menos inferior”, ainda que também o seja — visão compartilhada com Adolf Hitler, que também considerava a “raça eslava” menos evoluída do que a “raça ariana”.
O correspondente da CBS não está sozinho. Em entrevista à rede de televisão britânica BBC, o ex-procurador-geral ucraniano David Sakvarelidze afirmou que “é muito emotivo ver europeus de cabelos loiros e olhos azuis sendo mortos todos os dias com os mísseis de Putin, seus helicópteros e seus foguetes”.
O apresentador da versão em inglês da rede catariana Al Jazeera, Peter Dobbie, talvez tenha se esquecido da origem do próprio veículo em que trabalha e afirmou que o “mais tocante, ao ver o modo como se vestem, é que é uma gente bem de vida, de classe média, não são evidentemente aqueles refugiados tentando sair de áreas do Oriente Médio, numa grande guerra; não é gente tentando sair de áreas no norte da África” e que “eles se parecem com qualquer família europeia”.
O jornalista Phillipe Corbé, da emissora francesa BFM, também evocou o que considera ser o modo de vida europeu, demonstrando, além da xenofobia e do racismo, o desconhecimento amplo sobre a presença — por ação do próprio imperialismo — de multinacionais em países cujos povos ele considera menos dignos de viver: “não estamos falando de sírios fugindo das bombas do regime apoiado por Putin. Falamos de europeus saindo em carros que se parecem com os nossos para salvar suas vidas”.
A mesma ostentação da ignorância é compartilhada por Daniel Hannan, colunista do britânico The Telegraph, para quem o uso de redes sociais e de aplicativos de streaming são exclusividades ocidentais. “Eles se parecem tanto conosco. É o que mais torna isso tão chocante. A Ucrânia é um país europeu. Seu povo assiste Netflix e tem contas no Instagram, vota em eleições livres e lê jornais sem censura. A guerra não é mais vivenciada por populações empobrecidas e remotas”.
Um vídeo gravado e publicado pelo perfil oficial no Twitter da Guarda Nacional Ucraniana mostra soldados do Batalhão de Azov — grupo neonazista que foi incorporado ao Exército e mantém ligação com o Ministério do Interior da Ucrânia — besuntando balas em banha de porco. A filmagem choca porque o grupo que Azov (Азов) combatia era composto por chechenos — em maioria muçulmanos, que por questões religiosas não consomem essa categoria de alimento. Os neonazistas do Azov e os chechenos são inimigos declarados e devemos considerar que o vídeo não foi ao ar somente para escancarar a islamofobia, mas também em uma tentativa de desestabilizar psicologicamente o oponente. O vídeo não foi retirado do ar e o site colocou apenas uma mensagem dizendo que o tweet violou regras do Twitter sobre condutas de propagação de ódio.
A solidariedade euroconveniente
A comoção seletiva para com o povo ucraniano vai além do próprio racismo explícito. Ao tratar o caso como exclusividade, evocando a “identidade europeia” das vítimas e como se o continente não vivesse conflitos armados desde o fim da Segunda Guerra Mundial, setores da imprensa ignoram guerras que geraram centenas de milhares de pessoas mortas e fluxos migratórios massivos, como na Irlanda do Norte entre os anos 1960 e o final dos anos 1990; nos Bálcãs, da desintegração da Iugoslávia até os 2000; no Cáucaso em 2020 ou na própria Ucrânia, na região fronteiriça em disputa com a Rússia, a partir de 2014.
No caso da Irlanda do Norte, os conflitos conhecidos como Troubles (“Problemas” ou “Confusões”), motivados pelo desejo de parte da população local em ser independente do Reino Unido, arrastaram-se por toda a segunda metade do século XX e inspiraram obras reverenciadas na cultura pop, como o filme “Em Nome do Pai” (Jim Sheridan, 1993) ou as canções “Sunday Bloody Sunday” (U2, 1983) e “Zombie” (Cranberries, 1994).
Ainda assim, ao se falar de conflitos na Europa, a guerra civil na porção da ilha da Irlanda ocupada pelo Reino Unido é ignorada como se não existisse. O fato é que o agressor, que por décadas massacrou a resistência norte-irlandesa, era a maior potência imperialista da Europa. Os Troubles, na mídia hegemônica, costumavam ser tratados como ações de defesa do Império Britânico contra rebeldes do Exército Republicano Irlandês (IRA) em “ações terroristas”, não como uma guerra propriamente dita.
Na guerra iniciada após o desmembramento da Iugoslávia, houve mais de 100 mil pessoas mortas. Só na Bósnia, foram 10 mil mortos e 50 mil feridos na capital Sarajevo, além dos cerca de 1,3 milhão de desalojados, 500 mil refugiados em países vizinhos e 700 mil na Europa ocidental. A Croácia teve cerca de 12 mil mortos, 35 mil feridos, 3 mil desaparecidos, 200 mil refugiados e 350 mil desalojados (Relatório do Acnur, 2002, p. 215).
Em 1999, Estados Unidos e Otan bombardearam a capital sérvia, Belgrado, por 11 semanas. O saldo, de acordo com autoridades sérvias, foi de cerca de 2.500 mortos, 12.500 feridos, além da destruição de 148 imóveis, 62 pontes, 300 escolas, 300 hospitais e 176 monumentos históricos. Bill Clinton, presidente dos Estados Unidos, não foi tratado como um déspota sedento de sangue pelos veículos ocidentais, tampouco aquela foi chamada de “guerra de Clinton”.
Nem mesmo a “identidade europeia” das vítimas de seus ataques foi evocada pela imprensa ocidental, ao menos não de forma relevante. Pelo contrário, críticos apontavam a tentativa do político em “limpar sua imagem”, manchada por um escândalo sexual após ter se relacionado com a estagiária Monica Lewinsky em seu gabinete. Sim, a forma de Clinton reconquistar apoio popular foi matar milhares de civis – incluindo crianças – e ferir mais milhares, além de destruir centenas de edifícios tendo como alvo até escolas e hospitais.
A solidariedade europeia também não chegou às populações da Armênia e do Azerbaijão, que desde o colapso da União Soviética estão envolvidas em vários conflitos pela região do Alto Carabaque, historicamente disputada pelos dois países do Cáucaso. A última tensão, em 2020, matou 143 civis; na guerra mais longa entre as duas ex-repúblicas da URSS, entre 1988 e 1994, foram cerca de 20 mil mortos.
A entrada da Ucrânia na Otan seria mais um passo dos Estados Unidos visando cercar militarmente a Rússia. Além disso, com o novo país-membro na Organização, os Estados Unidos e a União Europeia poderiam, finalmente, disputar e tentar obter o controle de recursos naturais da região. Essa disputa, no entanto, seria travada com a justificava de levar a democracia ao Leste.
A guerra entre a Ucrânia e Rússia — dois países com histórias que se entrelaçam — é, também, uma guerra dos Estados Unidos. O fortalecimento internacional entre Rússia e China é uma ameaça direta à supremacia e ao domínio absoluto estadunidense e o modo utilizado para tentar minar esse fortalecimento foi inflamar uma ação beligerante na região. O atual presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, caiu no canto da sereia ao considerar que os EUA comprariam de fato uma briga pelo país que preside.
Diante de um conflito interimperialista, quem perde é a classe trabalhadora. É evidente que as sanções aplicadas à Rússia — e à população — em nenhum momento foram cogitadas contra as invasões e crimes cometidos pelos EUA. A forma como a Rússia está sendo vilipendiada jamais aconteceria com os Estados Unidos da América. Como apontamos, não há como projetar na Rússia a imagem da União Soviética lutando ideologicamente. A Rússia, mesmo sofrendo diversas sanções desde o início da guerra, também busca consolidar sua influência global. É imprudente tentar mascarar os objetivos do Estado russo nesse conflito de aumentar a influência e competição no mercado mundial.
Por fim, é bom estar vigilante sobre as acusações de que a Rússia estaria levando ”a guerra de volta à Europa” e a comoção seletiva do sofrimento de pessoas brancas, loiras e de olhos azuis. As expressões do racismo e da xenofobia estão cada vez mais latentes e qualquer movimento que vise dar continuação a essa barbárie precisa ser combatido, bem como nenhum experimento colonial é aceitável.