O Brasil é uma máquina de moer gente
- 30 de maio de 2021
Ao contrário de narrativas que apontam que “não há presidente”, país tem sido governado. Seus comandantes optaram por ações que ceifaram centenas de milhares de vidas; seja por infecção, fome ou por tiro. Não é acidente, é projeto
Por Vitória Regina
Colaboraram Leopoldo Neto e Norberto Liberator
O primeiro caso de infecção registrado pelo novo coronavírus aconteceu no dia 1º de dezembro de 2019, em Wuhan, China. 30 dias depois, o país alertou a Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre uma possível epidemia. Desde então, foram registradas mais de três milhões de mortes no mundo, o que corresponde à metade do número – oficial – de judeus assassinados durante o genocídio nazista. Quando os primeiros casos foram registrados na Itália, o lado ocidental entrou em choque. Parecia o fim. O medo de viver um evento histórico – uma pandemia – aflorou o individualismo de nossa época e milhares de pessoas foram aos supermercados estocar comida, bebida e, claro, papel higiênico. Além disso, o preço de itens básicos de proteção – como álcool em gel e máscaras – explodiram, o que é esperado quando se vive em um modo de produção onde o lucro está acima da vida. Nesse sentido, embora a grande mídia tenha tentado vender a ideia de que estávamos todos no “mesmo barco”, a realidade fez questão de escancarar que não.
Em São Paulo, os bairros periféricos têm três vezes mais mortes do que as regiões ricas. Até março de 2021, a taxa de mortalidade por 100 mil habitantes em bairros como Jardim Paulista, Pinheiros e Perdizes não passava de 61; no entanto, Iguatemi, Brás e Guaianases, o número se aproximava de 193. Ademais, evidenciando novamente que não estávamos no mesmo barco, a taxa de infecção e de morte por covid-19 é superior em pessoas pretas, sendo 250 óbitos por covid-19 a cada 100 mil habitantes e 157 entre pessoas brancas. Todavia, o número de pessoas brancas vacinadas é duas vezes mais do que pessoas pretas.
No Brasil, o primeiro caso aconteceu em 26 de fevereiro de 2020 e desde então não paramos de enterrar pessoas. O excelentíssimo presidente da República, Jair Messias Bolsonaro (sem partido), que costumava dizer que ‘’sua especialidade era matar’’, provou a todos que estava certo. Desde o início, o chefe de Estado brasileiro ignorou a seriedade da doença e fez diferentes piadas, estas que custaram a vida de centenas de milhares de brasileiros. Bolsonaro, além de proferir atrocidades ao dizer que o vírus seria como uma ‘’gripezinha’’, também reproduziu um discurso eugenista ao dizer que o vírus só mataria ‘’fracos, doentes e idosos’’. Além disso, ele trabalhou contra a saúde pública ao promover aglomerações e incentivar a desconfiança da população no uso da vacina, ignorando que emergências mundiais costumam acelerar processos. O presidente também rechaçou a ideia de lockdown – por mais que a eficácia da medida seja comprovada, prometendo até utilizar as Forças Armadas contra a ‘’covardia do lockdown’’. Não à toa o Brasil é considerado o pior país no combate à pandemia
Em agosto, a empresa farmacêutica Pfizer ofereceu ao Brasil o número expressivo de 70 milhões de doses, contudo, o Governo Federal não respondeu à proposta. Durante a CPI da Covid, uma carta da empresa datada de 12 de setembro de 2020 foi divulgada e afirma que a equipe da empresa no Brasil:
[…] se reuniu com representantes de seus Ministérios da Saúde e da Economia, bem como com a Embaixada do Brasil nos Estados Unidos. Apresentamos uma proposta ao Ministério da Saúde do Brasil para fornecer nossa potencial vacina que poderia proteger milhões de brasileiros, mas até o momento não recebemos uma resposta. Sabendo que o tempo é essencial, minha equipe está interessada em acelerar as discussões sobre uma possível aquisição e pronta para se reunir com Vossa Excelência ou representantes do Governo Brasileiro o mais rápido possível.
A realidade é implacável e não absolverá Jair Bolsonaro e todos àqueles que não se movimentaram para evitar essa tragédia no país. É fato que haverá uma tentativa de falsificação da história, mas nada retirará a culpa e responsabilidade dos ombros do capitão reformado. Bolsonaro, em diferentes momentos, chamou a vacina de ”Vachina” – explicita alusão à China, criando conflito com maior parceiro comercial do Brasil e atrasando o envio de insumo para produção de vacina. No dia 21 de outubro de 2020, Jair Bolsonaro cancelou a compra de 46 milhões de doses da vacina produzida pelo Instituto Butantan. Doze horas após anunciar a compra, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello gravou um vídeo com Jair dizendo que ”um manda e o outro obedece”. Em 9 de novembro de 2020, a Anvisa interrompeu os estudos clínicos (fase três) da Coronavac. Bolsonaro, em sua conta no Twitter, comemorou. ‘’Morte, invalidez, anomalia… Esta é a vacina que o Dória queria obrigar a todos os paulistanos tomá-la. O presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha’’, escreveu o presidente.
Com a aprovação e incentivo de Bolsonaro, a parte da população foi relaxando e ignorando a gravidade da pandemia. Os números de infectados passaram a aumentar a partir de abril de 2020 e um ano depois o Brasil chegou a registrar, em 24 horas, mais de quatro mil mortes. Diante da administração, o país passou a preocupar o mundo e diferentes países proibiram a entrada de brasileiros. Em contraste, Bolsonaro e seus aliados sentem-se orgulhosos do trabalho realizado nos últimos meses. As reações do presidente à maior crise sanitária da história do país dão asco a qualquer pessoa que se preocupe com a vida. Jair afirmou que a pandemia não seria “tudo isso” e que a mídia seria a responsável por instalar o caos na sociedade, bem como afirmou que não era coveiro ao ser questionado sobre o número de mortes no país.
O presidente da 13ª potência econômica, além de não se preocupar com a gravidade da doença, também trabalhou para que a população não se preocupasse e apostou – muito influenciado por Donald Trump – em indicações de remédios e “kit Covid” que não tiveram sua eficácia comprovada, como no caso da cloroquina. O medicamento utilizado no tratamento da malária tornou-se a aposta de Jair Bolsonaro e trouxe diferentes problemas à saúde dos brasileiros que tentaram fazer uma espécie de tratamento precoce. No processo de negação da ciência administrado por Bolsonaro, travou-se uma disputa política com João Dória (PSDB), governador de São Paulo, a respeito da fabricação da vacina em solo brasileiro. Dória, que não é nenhum defensor das Universidade Públicas e do SUS, viu na corrida pela vacina um capital político a ser utilizado em 2022, caso se candidate à Presidência.
Diante da crise sanitária instaurada nacionalmente, as vísceras da desigualdade social ficaram expostas a todos que a ignoravam. O Brasil, que recentemente saiu do mapa da fome, foi alertado no primeiro semestre de 2020 que poderia enfrentar uma crise alimentar. A tentativa de minimizar a inópia entre as famílias pobres seria a aprovação de uma renda emergencial e a defesa dos direitos sociais. Em março de 2020, diante de uma demanda popular, o Governo Federal foi forçado a pensar no auxílio emergencial. Desde o início o presidente foi contra o auxílio de R$ 600, pois seria “muito para o Brasil”. No primeiro ano da pandemia, o auxílio foi entregue para 67,9 milhões de pessoas. Contudo, em 2021, mesmo com 117 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar e a taxa de desemprego girando em torno de 14,5%, o Governo Federal reduziu o valor pago e o número de pessoas que teriam acesso. O pagamento do novo auxílio emergencial será entregue para 45,9 milhões de pessoas e em valores que variam entre R$ 150, R$ 250 e R$ 375.
Em março de 2021, o Senado deu início à CPI da Covid-19, visando esclarecer algumas decisões do Governo Federal – como se mais de 400 mil mortes não fossem o suficiente – diante o enfrentamento da pior crise sanitária da história no país. Todos os ex-ministros da Saúde foram convocados a prestar depoimento sobre o período em que estiveram à frente do Ministério. Luiz Henrique Mandetta (DEM), o primeiro ministro de Bolsonaro, afirmou ter tido contato com um rascunho que visava incluir a Covid-19 na bula da cloroquina via decreto presidencial. O presidenciável Mandetta também alegou que Jair Bolsonaro não seguia orientações técnicas e que contava com uma assessoria paralela. Nelson Teich, segundo ministro da pasta, também afirmou ter saído do governo por insistência do presidente no uso da cloroquina.
O terceiro ministro, Eduardo Pazuello, também foi convocado a depor, mas no dia 4 de março comunicou ter tido contato com pessoas infectadas e, sendo assim, pediu adiamento. No dia 13 de maio, a Advocacia-Geral da União (AGU) protocolou um pedido ao Supremo Tribunal Federal (STF) a garantia que o aliado de Bolsonaro e ex-ministro tenha o direito de permanecer em silêncio durante seu depoimento à CPI, além de não poder ser preso, caso minta sobre as ações tomadas em exercício. Dois dias após protocolar o pedido, Ricardo Lewandowski, Ministro do STF, concedeu a Pazuello o direito de permanecer em silêncio. Todavia, o ex-ministro da Saúde tem como obrigação dizer a verdade sobre terceiros.
Até o momento, um dos depoimentos mais importantes foi o de Carlos Murillo, gerente-geral da Pfizer na América Latina. Murillo, diante dos senadores, afirmou que Jair Bolsonaro rejeitou três ofertadas de 70 milhões de doses da vacina. A primeira oferta foi feita em agosto de 2020 com previsão de entrega para até dezembro e o primeiro contrato só foi assinado em março de 2021. A farmacêutica visava utilizar o Brasil como vitrine de vacinação da Pfizer na América Latina, mas foi ignorada.
O diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, durante seu depoimento na CPI da Covid, afirmou que o Governo Federal ignorou por três meses as ofertas de doses da Coronavac. Em julho de 2020, o Instituto ofereceu ao Ministério da Saúde 60 milhões de doses para o último trimestre de 2020; 60 milhões – 45 milhões entregues ainda em 2020 – em 18 de agosto e 100 milhões de doses foram oferecidas em 7 de outubro do ano passado. Todas as ofertadas foram ignoradas. Ao mencionar o contrato fechado com os laboratórios produtores de vacina, o Diretor ressaltou que:
[…] quase 2 bilhões em uma vacina que ainda não estava aprovada pela Anvisa, mas não coloca um real porque era uma vacina chinesa, que, hoje, graças à Coronavac, milhões de brasileiros estão sendo vacinados.
A 13ª maior economia do mundo poderia ter sido o primeiro país a iniciar a vacinação, bem como servir de vitrine para América Latina. Todavia, por escolha do Governo Federal e de decisões políticas e ideológicas de Jair Bolsonaro, o país tornou-se pária. Se Bolsonaro tivesse se alinhado à ciência para enfrentar a pior pandemia do último século, não teríamos enterrado mais de 450 mil brasileiros; tampouco lidaríamos com uma crise alimentar tão séria e uma taxa de desemprego se aproximando de 15%. Atingimos a maior taxa de desemprego já registrada pelo IBGE. No fim, não salvamos nem vidas e nem a economia.
Durante a pandemia, o número de famintos no Brasil chegou a 19 milhões. A mídia burguesa, que tenta passar que a crise é a mesma para todos, assumiu um sadismo ao noticiar o tema. Quando mais 50% da população enfrenta uma crise alimentar, sem saber se conseguirá almoçar e jantar no dia seguinte, a mídia hegemônica ensina quando é seguro comer alimentos mofados e como cuidar crianças estando em situação de rua.
O Brasil é uma máquina de moer gente e nosso compromisso é registrar e enfrentar as ações dos nossos algozes, sem mascarar e/ou se alinhar com àqueles que operam esta máquina. A eleição de Jair Bolsonaro não abriu somente os porões do DOPS e assentou no governo os fantasmas da ditadura; também fortaleceu uma onda de negacionismo e fundamentalismo. Diante da realidade, nosso dever é derrotar o bolsonarismo e todo o seu projeto. O local a qual Bolsonaro e sua tropa de choque pertencem é a lata de lixo da história.
Comparando os números da pandemia com genocídios, conflitos e atentados
De janeiro de 2020 a maio de 2021, 155 milhões de pessoas foram infectadas pelo vírus – que tem sofrido mutações – e 3,25 milhões morreram. No Brasil, mais de 400 pessoas morreram e mais de 15 milhões foram contaminadas (1), desconsiderando a subnotificação e o fato do país não ter realizado uma testagem em massa. Ainda assim, a gravidade da doença parece ser ignorada e diante disso, resolvemos fazer uma comparação com o número de contaminados e mortos na pandemia com o número de mortos em guerras, conflitos e atentados.
O ataque às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001 ceifou a vida de 2.996 pessoas e o Brasil registrou 2.798 mortes em 24h no dia 16 de março de 2021. Entre 1973 e 1990, a ditadura chilena deixou mais de 3.000 mortos ou desaparecidos, o Brasil atingiu o mesmo número de mortes em 24h no dia 27 de abril de 2021. A Batalha de Stalingrado travada entre a Wehrmacht (forças armadas da Alemanha Nazista) e o Exército Vermelho (exército da União Soviética) foi a maior e mais sangrenta batalha da história com cerca de 2 milhões de mortos, o mundo superou este número na segunda semana de 2021. Durante a Guerra da Coreia, iniciada no início da década de 1950, mais de 2,5 milhões de mortes foram contabilizadas (leia sobre o conflito nesta entrevista publicada pela Badaró). Poderíamos listar diferentes conflitos ao longo da história para comparar com a gravidade da pandemia que vivenciamos! No país do fundamentalismo, onde se ignora a ciência, paga-se com a vida. O Brasil está sendo governado e seus comandantes optaram por ações que ceifaram centena de milhares de vidas, seja por contaminação, fome ou tiro. Não é acidente, é a boiada passando. É projeto.