Nem tudo sobre Orson Welles no Brasil é verdade
- 13 de maio de 2021
O Brasil se encontra em uma situação dramática por causa da pandemia, e muitos fariam de tudo para sair do país. Enquanto isso, um cineasta estrangeiro quer voluntariamente adentrar o território brasileiro para procurar por rolos de filme perdidos, que teriam sido supostamente deixados por Orson Welles no Rio de Janeiro, na década de 40
Por Igor Nolasco
“It’s all true”
— Título de filme inacabado de Orson Welles, parcialmente rodado no Brasil.
“All is Brazil!”
— Orson Welles, em ocasião de seu desembarque no Rio de Janeiro.
“Tudo é Brasil”
— Título de filme de Rogério Sganzerla, lançado em 1997.
“Nem tudo é verdade”
— Título de filme de Rogério Sganzerla, lançado em 1986.
Falemos sobre uma das notícias recentes mais antigas do mundo do cinema (inter)nacional.
Durante a pandemia de COVID-19, um dos piores lugares do planeta onde se pode estar é o Brasil – disso, poucos discordarão. Brasileiros tentam fugir para qualquer lugar, na intenção de se vacinar e viver em um ambiente minimamente mais seguro, mas encontram as fronteiras fechadas em quase todos os países. Em contrapartida, por motivos que parecem inexplicáveis, alguns estrangeiros ainda colocam em risco a saúde que possuem ao decidir viajar para uma nação de escala continental que ainda não vacinou nem 20% de sua população, e está se tornando um verdadeiro viveiro de variantes da doença.
É o caso do cineasta Joshua Grossberg. O norte-americano pretende procurar, por aqui, rolos de filme perdidos do que seria a versão original do “Soberba” (“The Magnificent Ambersons”, no original), filme de Orson Welles lançado em 1942 que sofreu alterações significativas enquanto seu diretor estava no Brasil rodando um outro projeto, sob o título de “It’s All True”, que acabou nunca sendo concluído.
Segundo consta, durante sua hospedagem no Rio de Janeiro, Welles discutia recorrentemente com os engravatados da RKO, produtora responsável pelo “Soberba”, por telefone. O principal assunto das conversas seria o das instruções de montagem dadas para o filme pelo diretor, que eram sumariamente ignoradas pelo estúdio. Para deixar a história mais saborosa, no entanto, rolos de filme do “Soberba” teriam transitado entre as Américas durante esse período; e é aí que Grossberg entra, sua procura é pela versão inalterada do longa de Welles, que inclui minutos finais completamente diferentes, uma vez que o desfecho da versão existente da produção foi filmada e editada pela RKO durante a estadia de Orson Welles nos tristes trópicos.
A passagem do autor por trás de “Cidadão Kane” pelo Brasil é uma história longa, e já foi objeto de uma série de livros, filmes (com destaque para vários dirigidos pelo brasileiro Rogério Sganzerla), pesquisas e todo tipo de publicação. Eu mesmo já discorri longamente sobre o assunto em uma extensa entrevista que dei em 2020. Para resumir, é basicamente um consenso de que a suposta existência de rolos de filme do “Soberba” escondidos ou perdidos em terras brasileiras nunca passou de fábula; se tanto, de confabulação. Mas parece que Grossberg e sua equipe estão literalmente dispostos a arriscar suas vidas para desvendar se há realidade por trás do rumor. Não dá pra dizer que o cineasta não é uma pessoa aplicada, até porque aparentemente está nessa sina de viajar ao Brasil para procurar restos do filme de Welles desde 1994 e já pretendia retornar a nosso país ainda em 2020, tendo seus planos adiados, claro, por causa da pandemia. Ao que parece, Grossberg cansou de esperar.
Se o próprio Orson Welles dizia que nem tudo é verdade, a persistência do documentarista de se enveredar em meio a um dos maiores epicentros atuais da COVID para procurar pistas é, no mínimo, audaciosa. Mais audaciosa ainda é a esperança do sujeito, que provavelmente conhece superficialmente (isso se não desconhecer por completo) os problemas de preservação cinematográfica que são uma questão bem demarcada no Brasil basicamente desde que se começou a produzir cinema nas terras de Vera Cruz.
Muitos filmes de suma importância na cronologia da história do cinema brasileiro são, hoje, considerados completamente perdidos. Quem se dedicar ao estudo da nossa cinematografia aprenderá sobre determinados títulos apenas por lê-los em livros, sem jamais ter a chance de assisti-los. É o caso de “Moleque Tião”, de José Carlos Burle, filme que alçou ao estrelato um dos atores mais populares da história do Brasil, Grande Otelo. Ou mesmo “Favela dos Meus Amores”, longa do lendário Humberto Mauro tido como uma das primeiras produções a explorarem o cotidiano em uma favela. E isso porque estamos dissertando sobre filmes falados, feitos já com sonorização. No que se refere à produção silenciosa, a questão é ainda mais dramática: perdeu-se grande parte dos filmes mudos brasileiros, e esse quadro, na verdade, reflete o de outras cinematografias latino-americanas.
No caso brasileiro, diversos foram os fatores que causaram a perda de tantos filmes ao longo do século XX. Desde descarte por parte das próprias distribuidoras até perda da única cópia de certos títulos, passando por incontáveis incêndios e enchentes em depósitos de estúdios, cinematecas e arquivos, chegando até mesmo à destruição oficial de alguns filmes por parte do getulismo ou da ditadura militar de 64.
Além disso, mesmo as cinematecas brasileiras desde o começo lutam para ter as condições necessárias para a preservação cinematográfica, conforme já discutido nessa coluna em um texto anterior. Na época em que a cultura das cinematecas em nosso país ainda se encontrava em uma espécie de neolítico, roendo pedra nas cavernas, o Paulo Emílio Salles Gomes, patrono da Cinemateca Brasileira de São Paulo, travava batalhas muitas vezes perdidas em busca do levantamento de fundos para a instituição. Leitores dessa coluna com a memória mais bem azeitada se lembrarão de que já escrevi sobre a luta do Paulo Emílio aqui antes, no mesmo texto em que expus a situação atual da Cinemateca Brasileira e dos seus trabalhadores.
Peço desculpas por estar evocando sucessivamente a memória do leitor e referenciando colunas antigas. Sei que já falei sobre isso tudo antes nesse modesto espaço que me cabe. Sou um obsessivo, talvez esteja me repetindo. Mas fato é que essas informações são relevantes, são importantes para esse assunto de agora. Afinal, um país que sequer se interessa em preservar os seus próprios filmes jamais se importaria em preservar latas de uma fita do estrangeiro Orson Welles durante oitenta anos.
Ainda podemos ir além e fazer uma leitura a mais da situação. Não duvido, de maneira alguma, das mais legítimas intenções de Grossberg em recuperar esse material perdido do “Soberba” de Orson Welles: seria ótimo, certamente, saber a visão legitimamente autoral por trás do longa – principalmente porque Welles foi um cineasta genial e notoriamente prejudicado pelo sistema dos estúdios que vigorava na velha Hollywood, que lhe tirou diversos projetos das mãos quando estes entraram em fase de montagem, de “A Dama de Xangai” a “Grilhões do Passado” (filmes excelentes, os dois, assim como o próprio “Soberba”, aliás). Mas há um paradigma no mínimo questionável em toda essa ideia de uma “expedição” (palavra que é usada indiscriminadamente pela matéria da IndieWire) para resgatar um “tesouro perdido” estadunidense na selvagem América do Sul. É de fazer os mais pragmáticos entre nós levantarem uma sobrancelha.
Aguardemos para ver se Grossberg e a equipe de seu documentário realmente adentrarão o Brasil pandêmico para procurar a fita de Orson Welles. Torçamos para que eles não compartilhem o triste destino que está acometendo milhares de brasileiros todos os dias. Quem sabe um dia não saímos desse pesadelo, ainda que com uma vacinação andando a passos lentos e ativamente prejudicada pelo Estado. E quem sabe um dia não tenhamos a resposta final sobre o que aconteceu com o corte original do “Soberba”.