300 dias sem ela

Sem receber salário há 11 meses, trabalhadores protestam por mais de 300 dias sem repasse anual do Governo Federal para Cinemateca Brasileira

Por Igor Nolasco
Colaboraram Fabio Faria e Leopoldo Neto 

Na terça-feira, 27 de outubro, foi comemorado o Dia Mundial do Patrimônio Audiovisual. Talvez “comemoração”, na verdade, não seja o termo mais condizente. No Brasil, em um momento no qual a memória da preservação fílmica do país corre considerável risco, pouco foi dito sobre a ocasião, mesmo entre os profissionais da área. Alguns emitiram notas ou breves publicações em redes sociais. O Centro Técnico Audiovisual (CTAv) do Rio de Janeiro promoveu, em alusão à data, uma mostra virtual com duração de uma semana, disponibilizando uma seleção de filmes média-metragem de Humberto Mauro, um dos pais fundadores do moderno cinema brasileiro. No entanto, se tratou um evento organizado em São Paulo que fez com que o Dia Mundial do Patrimônio Audiovisual deixasse de passar quase que em branco no maior país da América Latina.

Às 17h daquele dia, pessoas se agrupavam em frente a uma imponente construção de tijolos no largo Senador Raul Cardoso, no bairro da Vila Mariana. Em decorrência da pandemia de COVID-19, trajavam máscaras e mantinham distanciamento social, como recomendam os protocolos já amplamente conhecidos que redefiniram o padrão das relações sociais no ano de 2020. O prédio em frente ao qual o protesto estava acontecendo era nada menos do que a Cinemateca Brasileira, idealizada pelo professor e escritor Paulo Emílio Sales Gomes e materializada tendo como base o preexistente Clube de Cinema de São Paulo. A instituição, que a princípio funcionara em convênio com o Museu de Arte Moderna paulistano, está em seu atual endereço desde 1992. Anteriormente, a construção que agora abriga um colossal acervo de filmes e documentos fora um matadouro, estabelecido na Vila Mariana no final do século XIX.

Desde seus primórdios, a Cinemateca Brasileira passou por diversas mudanças de gestão e afiliações a órgãos governamentais nas esferas municipal e federal. Uma constante ao longo de sua existência, ademais, foram os momentos de dificuldades financeiras. Já no final dos anos 1950, Paulo Emílio, que escrevia semanalmente para o Suplemento Literário do jornal O Estado de São Paulo, relatava os duros percalços que a instituição percorria, em textos dedicados parcial ou integralmente a discorrer sobre a Cinemateca Brasileira. Tais dificuldades, por exemplo, fizeram com que ela dependesse do auxílio de terceiros para se recuperar de um incêndio que consumiu uma parte considerável de seu acervo em fevereiro de 1957 (e três outros incêndios a atingiriam desde então, o mais recente sendo em 2016; além de enchentes, como a que ocorreu em fevereiro de 2020), e falhasse em concretizar o planejamento de uma retrospectiva fílmica em comemoração aos 60 anos do pioneiro russo Sergei M. Eisenstein em janeiro de 1958.

Um desses cíclicos períodos de dificuldade foi intensificado pela chegada ao poder do presidente Jair Messias Bolsonaro (atualmente sem partido). Entre mandos e desmandos do capitão reformado do exército, que parecia oblíquo às reais funções do órgão, o orçamento anual destinado ao mesmo não foi entregue em janeiro de 2020, conforme estava previsto. Em novembro, ainda não chegou, não dando sinais de chegar tão cedo. O repasse é tido como essencial não apenas para manter o prédio nas condições ideais para a preservação dos documentos e rolos de filme ali armazenados (o que inclui uma refrigeração constante do ambiente), como para pagar o corpo técnico especializado em cuidar desse material. Nesse sentido, além de ter sido marcado para o Dia Mundial do Patrimônio Audiovisual, o protesto no largo Senador Raul Cardoso também ocorreu sob o signo de outra data: 300 dias exatos de abandono da Cinemateca por parte do Governo Federal. 81 dias antes, o mesmo tomara as chaves do prédio da Associação Roquette Pinto, então responsável pela presidência da instituição. A construção na Vila Mariana permanece fechada ao público desde então.

Foram justamente os trabalhadores da Cinemateca Brasileira, que estão há tanto tempo nesse compasso de espera, sem receber seus salários e sem saber como serão os próximos meses, que organizaram a manifestação do dia 27, que chegou a reunir aproximadamente 200 pessoas. Tudo convocado pelas redes sociais, através de perfis coletivos criados em nome dos trabalhadores da Cinemateca que estão em atividade desde junho, tendo sido criados justamente para denunciar e expor publicamente a situação de abandono e descaso na qual o órgão se encontra, desrespeitando os profissionais que ali trabalhavam e pondo em risco o maior acervo fílmico da América Latina. A carta de convocação ao ato na Vila Mariana, veiculada ao perfil da iniciativa Cine Limite nas redes, alegava que, em meio ao protesto, seriam realizadas exibições de filmes e leituras de manifestos de entidades nacionais e internacionais, com microfone aberto para todos que desejassem falar.

200 pessoas se reuniram para protestar contra os 300 dias de abandono da Cinemateca. A repercussão do agrupamento em frente ao prédio de tijolos na mídia tradicional foi mínima. Os grandes veículos, em verdade, desde o início não deram à crise do órgão a atenção que ela merece. Talvez o momento em que ela tenha ganhado mais destaque este ano tenha sido em meio à efêmera passagem de Regina Duarte pela Secretaria Especial da Cultura, repleta de declarações que reverberaram negativamente. Na intenção de afastá-la do cargo o mais rápido possível, Bolsonaro prometeu para a ex-atriz um cargo diretorial inexistente em frente à Cinemateca Brasileira.

Não se sabe se alguém eventualmente esclareceu ao presidente que não era possível escalar diretamente uma pessoa nomeada pelo Governo Federal para um cargo inexistente em uma instituição. Fato é que os caminhos de Duarte e da Cinemateca se partiram antes mesmo de terem se encontrado, e o interesse dos grandes conglomerados de notícias pelo maior arquivo cinematográfico do continente cessou com a mesma rapidez com a qual havia começado.

Na ausência de um suporte midiático à sua causa, os trabalhadores de Cinemateca estão largados à própria sorte, bem como a instituição propriamente dita. Entoam sua voz própria através dos perfis coletivos nas redes e de entrevistas dadas a quem quiser ouvi-los, como a supracitada entidade Cine Limite. Mais de 300 dias já se passaram e nem um centavo do orçamento anual destinado ao órgão foi repassado.

Com a destituição da Associação Roquette Pinto de sua presidência, quem está no comando agora é o Governo Federal. Sua atitude em relação à Cinemateca é a de uma total e absoluta inércia. Se não joga abruptamente uma última pá de cal sobre o legado de Paulo Emílio, como também não faz nada para assegurar sua existência. Ao longo dos últimos meses, diversos enviados de Brasília desembarcaram em São Paulo para visitar a construção no largo Senador Raul Cardoso, incluindo Mário Frias, atual Secretário Especial da Cultura. No fim das contas, nada é feito. A Cinemateca Brasileira segue no aguardo de algo que, ao que parece, nunca virá, como a aflita dupla na peça “Esperando Godot” de Samuel Beckett. Nem Frias, que segundo uma matéria da revista Piauí teria achado o local “apaixonante”, “uma escola”, uma “Disneylândia”, foi o Godot que os trabalhadores do órgão esperavam. Partiu pouco depois de chegar, deixando o corpo técnico que está a onze meses sem receber salários a ver navios. Oficialmente falando, foram demitidos. Mas se recusam a deixar de trabalhar e de se definirem enquanto trabalhadores da Cinemateca – não apenas na esperança de serem ressarcidos no que lhes é devido, mas também porque demandam que o patrimônio valiosíssimo que lhes foi confiado durante a gestão Roquette Pinto (ou até mesmo antes dela, no caso dos mais antigos na casa) seja tratado da maneira adequada.

Que o apelo dos trabalhadores, a duras penas chegando a ouvidos nacionais e internacionais, eventualmente consiga fazer com que a situação de seu local de trabalho seja resolvida assim que possível, para que os salários pendentes sejam pagos e o prédio na Vila Mariana possa ser mantido nas condições irremediáveis para a conservação do material que ainda sobrevive em seu interior, mesmo após sucessivos incêndios e demais acidentes aos longo da história. Nem toda destruição de patrimônio se dá através de um incêndio, por mais que o risco para um esteja sempre ali – afinal, o nitrato que compõe as películas 35 mm é um material altamente inflamável, e sem um corpo técnico especializado e vigilante presente, as chances de uma tragédia aumentam consideravelmente. Ainda assim, vez ou outra a destruição se dá por meio do abandono. Sem a refrigeração nos depósitos, os rolos de filme vão gradualmente se degradando, apodrecendo. E com eles apodrece parte da história do Brasil.

Em “Vinte Milhões de Cruzeiros”, texto publicado n’O Estado de S. Paulo em 2 de fevereiro de 1957, Paulo Emílio escreve sobre a importância da instituição, alegando que:

“Se há mais de 450 anos já existisse o cinema, a viagem de Pedro Álvares Cabral poderia ter sido objeto de um documentário de grande interesse para nós, porém seria pouco provável que a partir de 1530 ainda existisse alguma cópia conservada do filme. Não sei que interesse terão para os brasileiros do ano 2357 a imagem e a voz de Getúlio Vargas prestando juramentos a constituições, as passeatas de Plínio Salgado, os comícios de Luís Carlos Prestes, as vistas do Rio, de São Paulo ou da Central do Brasil, o ‘Cangaceiro’ de Lima Barreto. Mas a perspectiva para quem se ocupa da conservação de filmes é assegurar sua preservação para a posteridade”.

Driblando todas as barreiras possíveis e inimagináveis, Paulo Emílio cumpriu com sua missão até falecer, em 1977. Como ele, tantos dedicaram sua vida profissional à preservação do patrimônio audiovisual brasileiro para a posteridade. Hoje, mesmo destituídos de seus direitos, os trabalhadores da Cinemateca Brasileira seguem lutando. Em sua combatividade, se recusam a esperar em silêncio por um Godot que nunca vem. São mais de 300 dias sem remuneração e sem que o órgão funcione com as condições necessárias. Não se sabe até quando essa situação perdurará. Fato é que o Brasil tem a sorte de ainda contar com um grupo de pessoas que se importam com o legado fílmico de sua história. Será graças a eles, caso eventualmente consigam voltar a trabalhar em um cenário adequado, que os brasileiros do ano 2357 poderão ter contato com um passado distante, registrado através do nitrato da película e trazido a vida pelo ruído característico do projetor.

Igor Nolasco

Colunista

Entusiasta do cinema brasileiro e formando em Cinema e Audiovisual pela ESPM Rio. Também interessado em literatura, música e história.

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