Salas fechadas, projetores parados
- 1 de abril de 2021
Em março de 2020, as salas de cinema de todo o Brasil fecharam as portas com o início da pandemia de COVID-19. Mais de um ano depois, uma reflexão sobre o atual estado das coisas no que envolve esse parque exibidor tradicional envolve tentativas de reabertura, lançamentos, plataformas de streaming e um futuro ainda incerto
Por Igor Nolasco
Ao início de julho de 2020 – portanto, quase quatro meses após o início da pandemia de COVID-19 – utilizei-me de meu espaço nesta coluna para tecer algumas especulações sobre o futuro do cinema brasileiro em um parque exibidor extremamente competitivo uma vez que as salas de cinema reabrissem com o fim da crise sanitária. Agora, já em 2021, é possível lançar um novo olhar sobre esse panorama.
Para começo de conversa, a pandemia, que completou um ano no último mês de março, está durando bem mais do que inicialmente esperado por boa parte da população. Os cinemas, como visto, não esperaram a poeira baixar para retomar suas atividades. Já em setembro de 2020, discutíamos nesta coluna os perigos de uma reabertura apressada e insegura que se anunciava para os próximos meses.
E de fato, o que se viu no Brasil, principalmente a partir de outubro, foi um grande número de salas retomando suas atividades ao redor do país. A essa altura do campeonato, não é mais possível ter uma visão unilateral das coisas. Principalmente no que se refere às salas de rua, independentes, ou às pequenas redes focadas no dito cinema “de arte” (detesto esse termo, mas emprego-o aqui por motivos de síntese), como a rede Estação, no Rio de Janeiro.
Sim, essas salas ainda existem, apesar de serem cada vez mais raras, como animais ameaçados de extinção. Na supracitada cidade do Rio, algumas dessas já escassas sobreviventes começaram a ir caindo como moscas, como o Cine Joia de Copacabana – bairro que, se até a década de 1970 era repleto de salas de cinema de rua, hoje já não possui quase mais nenhuma. Esse tipo de sala já vinha enfrentando uma situação difícil nas últimas décadas, que foi violentamente agravada pela pandemia. A reabertura era a única chance de sobrevivência que muitas delas tinham para se agarrar, e infelizmente se provou insuficiente em alguns casos.
Desde dezembro o que se vê no país é o agravamento massivo da situação sanitária. As estatísticas aumentam exponencialmente; nunca dão trégua, com seus números arrasadores. Agridem a mente da população, que é anestesiada por essa violência de tal modo que passa a ver seus semelhantes como isso, meramente uma estatística. Todo dia esses números aumentam. Todo dia é o pior dia desde o início da pandemia.
Dessa maneira, muitas salas que haviam reaberto de outubro pra cá se viram compelidas a fechar novamente as portas – se não meramente por esse estado de calamidade pública, também porque é evidente que salas de cinema, nesse momento, estão longe de angariar público suficiente para dar dinheiro. Dinheiro que precisa cobrir luz, ar-condicionado, funcionários. Ficar com as portas fechadas e os projetores desligados dá menos prejuízo do que manter tudo aberto convidando os poucos espectadores que arriscam encarar um cinema em meio à pandemia a assistirem filmes de ontem – como no “Festival De Volta Para o Cinema”, que pretendia permitir que as grandes redes multiplex nacionais e internacionais que operam no Brasil fechar o caixa de 2020 sem cair no vermelho através de exibições de blockbusters requentados dos anos 80, 90, 2000 e mesmo 2010. Mesmo as poucas estreias que começaram a pingar nas salas de exibição eram inexpressivas, filmes menores, porque as distribuidoras estão segurando seus longas mais ambiciosos na espera de lançá-los em um futuro no qual eles possam render bilheterias bilionárias. Esse futuro, no entanto, ainda está distante e parece cada vez mais inalcançável.
Assim está o atual cenário do parque exibidor tradicional no Brasil. Muitas salas de portas fechadas; algumas, em sua maioria pertencentes aos grandes complexos de multiplex que operam nos shopping centers, oferecendo ao espectador essa supracitada programação morna. As plataformas digitais se firmaram, ao longo do último ano, como a principal forma de acesso a filmes e séries por parte do grande público. Aí entram dois problemas.
O primeiro é que essas plataformas estão cada vez mais numerosas; uma vez por semana um novo serviço de streaming é anunciado por propagandas gigantes penduradas em fachadas de prédios ou estampadas em pontos de ônibus. Mal tendo dinheiro para pôr comida na mesa, o povo brasileiro não tem capital sobrando para bancar essas dezenas de plataformas. Acaba tendo que optar pela mais afinada a seus gostos – ou pela mais barata.
O segundo é que a produção e a veiculação de tudo o que entra nessas plataformas é mediada pelos infames algoritmos. Se o cineasta Martin Scorsese deu, outro dia, uma declaração dizendo que tudo o que é feito por esses serviços de streaming é mais “conteúdo” do que “cinema” propriamente dito, é porque essas produções são fabricadas sob medida para atender determinadas demandas espectatoriais que são geradas por esses próprios serviços.
Por bem ou por mal, essas plataformas, hoje, são a maneira mais eficiente e segura de se assistir a uma novidade. Apenas quando a pandemia acabar (e “quando a pandemia acabar” está a cada dia mais soando como o proverbial “estou me guardando para quando o carnaval chegar“, de Chico Buarque) as salas de cinema deixarão de ser vistas com desconfiança, como o risco que efetivamente representam para o público nesse momento.
Mesmo assim, esses serviços não parecem compreender completamente a condição do povo. Dia desses saiu um filme de super-herói, e para alugá-lo legalmente pelas plataformas de video on demand, o sujeito precisava desembolsar cinquenta reais. Pedir para o brasileiro desembolsar cinquenta reais para ver um filme em casa, pela televisão, no sofá da sala, é de uma esculhambação completa, é um negócio que não tem condição. Com cinemas fechados e preços abusivos para se alugar (ainda tem isso: não é nem comprar, depois de uns dias, você perde acesso ao longa) um filme, o sujeito é praticamente pastoreado a recorrer à pirataria. E não dá para culpá-lo. Já escrevi nesta coluna, em outra oportunidade, sobre como as plataformas digitais surgiram sendo anunciadas como “o fim da pirataria” e hoje acabam estimulando-a. Esta tarifa de cinquenta reais para se ver um filme de super-herói (no sofá de casa, frisemos) só faz reforçar esse ponto que eu fiz lá atrás, em julho de 2020.
Recentemente, foi anunciado que o filme biográfico sobre o Carlos Marighella estava com estreia marcada para esse mês, abril de 2021. Às pressas, nos últimos dias de março, adiaram mais uma vez. Nas artes de divulgação, abaixo do título, sempre a inabalável, inescapável frase, grifada em negrito: “somente nos cinemas”. Ora, isso é um negócio completamente descabido.
É fato que “Marighella” não estreou no Brasil em 2019 porque os responsáveis pelo filme preferiram dar prioridade ao circuito de festivais da Europa, da América do Norte, da Oceania antes do longa estrear em seu país de origem. Isso por si só já diz muito: um filme sobre um personagem histórico brasileiro, sobre um momento da história do Brasil, já rodou o mundo inteiro, mas não foi exibido por aqui. O mundo inteiro já viu o nosso Marighella, menos nós. Mas certo, tudo bem.
O filme, ao que parece, enfrentou alguns problemas com a Agência Nacional do Cinema. O diretor Wagner Moura chegou a dar uma entrevista para o Leonardo Sakamoto falando que a Ancine teria censurado “Marighella”. A data de estreia para o filme já foi remarcada uma série de vezes, e quando finalmente ele ia sair, entrou a pandemia. “Marighella” era um filme antecipado pelo público, esperado com entusiasmo, mas por causa dessa demora, o clima esfriou.
Guardadas as devidas proporções, está correndo o risco de ser lembrado como um novo “Chatô”. Estreando unicamente em salas de cinema, seja nesse ano ou talvez até mesmo no ano que vem, o longa certamente será assistido por poucos espectadores. O que os distribuidores de “Marighella” esperam com isso? Acham que vão fazer algum dinheiro, mantém essa estreia exclusiva nas salas por alguma obrigação contratual ou pelo mero prestígio de ter uma estreia na tela grande? Ora, faria mais sentido a Paris Filmes abrir mão desse negócio e lançar o filme direto pela plataforma de streaming da Globo, a Globoplay. Faria muito mais barulho e seria visto por muito mais gente.
Queiram ou não queiram, é assim que vai ser até a pandemia acabar no Brasil – e pelo andar da carruagem, com esse ritmo de vacinação, infelizmente parece que não vai acabar tão cedo.