O cinema brasileiro durante e depois da COVID-19

Por Igor Nolasco

Julho de 2020 marca o quarto mês da oficialização da pandemia do coronavírus no Brasil. Se a existência da COVID era alardeada desde o final de 2019 e em fevereiro já se falava em uso de máscaras cirúrgicas e em termos como “pandemia”, foi em março que comércios e praias fecharam, voos internacionais foram cancelados, o trânsito intermunicipal começou a ser fiscalizado e uma parcela da população passou a fazer uma quarentena auto-imposta enquanto outra parcela foi obrigada a permanecer saindo de casa regularmente por motivos de força maior: trabalho.

Alguns países já ensaiam uma retomada da vida social, do comércio e do trânsito pelas ruas de forma cautelosamente pensada e ainda muito restrita. Parte deles, após algumas tentativas, precisou voltar ao processo de quarentena por uma reincidência no aumento do número de infectados pela COVID-19. Outra parte, pequena, mas existente, vai bem, ao que parece. Esse cenário otimista, entretanto, permanece distante da realidade brasileira.

O Brasil é um país excepcionalmente grande, de proporções continentais, logo difícil de se controlar enquanto unidade. Além disso, também tem sua passagem pela pandemia dificultada por um poder público que, manifestado pelo governo federal e pelos governos estaduais e municipais, não apenas mostrou-se incapaz de lidar com essa situação de saúde pública com eficiência, como também parece estar ativamente trabalhando para que o número de infectados e de mortos continue crescendo indefinidamente, sob propósitos escusos.

Aliado ao poder público que assiste com aparente indiferença a situação dos milhares de brasileiros que são semanalmente infectados pela COVID-19 está uma classe empresarial que visa no lucro imediato e em um suposto “aquecimento da economia” uma necessidade de se forçar a reabertura do comércio. Na última semana, um shopping center em Botucatu (SP) reabriu as portas com seu espaço adaptado para que os clientes possam circular pelos corredores através de seus automóveis pessoais. No Rio de Janeiro, bares e restaurantes reabriram e foram entulhados por clientes que conscientemente desrespeitavam os protocolos de saúde e segurança, acobertados pela falta de fiscalização. A única saída para o Brasil parece estar no surgimento de uma medicação efetiva ou de uma vacina.

Paralisação e reinserção

 

Se em um primeiro momento o comércio foi paralisado, com o setor do cinema e do audiovisual não foi diferente. A Rede Globo, pela primeira vez, foi obrigada a pausar as gravações de suas tradicionais telenovelas. Programas da TV aberta e fechada passaram a ser rodados com equipe e elenco reduzidos e medidas rigorosas de higiene para evitar o contágio entre os poucos presentes. Com o fechamento das salas de cinema, filmes brasileiros que estavam com suas datas de lançamento marcadas tiveram que ser adiados indefinidamente. Um exemplo disso está no caso de duas produções que dramatizam a história real de Suzane von Richthofen, “A Menina Que Matou Os Pais” e “O Menino Que Matou Meus Pais” – ambos iriam entrar em cartaz em circuito comercial no dia 2 de abril. Também pode-se falar do tão esperado “Marighella”, dirigido por Wagner Moura e que, após transitar por festivais internacionais variados ao longo de 2019, mas ter a estreia em território nacional impedida e adiada diversas vezes por inúmeros fatores, finalmente chegaria ao público no dia 14 de maio.

Evidentemente, o cancelamento de estreias não se deu somente entre os filmes nacionais, se estendendo à produção estrangeira. Esta, mais especificamente no que se refere ao cinema hollywoodiano, ameaça inundar impiedosamente o parque de exibição brasileiro assim que as salas de cinema reabrirem, em um futuro que ainda parece indefinido. A produção nacional, que normalmente já encontra uma grave dificuldade de se inserir em um mercado exibidor que prioriza o conteúdo estadunidense visando maior arrecadação, tem nesse futuro uma já anunciada certeza de portas fechadas para os primeiros meses de exibição. Tais meses serão ocupados de ponta a ponta por um calendário bagunçado e inchado por filmes produzidos e distribuídos pela oligopólica indústria cultural estadunidense que tinham suas estreias agendadas para o começo, meio e fim de 2020.

Tendo em vista esse cenário, é difícil saber quando um filme como “Marighella” terá seu lugar ao sol diante do público caso insista na decisão de estrear em salas de cinema (em oposição a uma veiculação imediata a serviços de streaming ou video on demand), mesmo em meio aos cinemas que não priorizam os blockbusters hollywoodianos em sua programação.

Se produções que estavam em andamento tiveram que ter suas filmagens pausadas indefinidamente, isso não impediu que filmes fossem gravados dentro de uma lógica caseira e intimista por cineastas que estão em quarentena. Dentro dessas condições foi rodado o curta-metragem “República”, da atriz e cineasta Grace Passô, veiculado gratuitamente no site do Instituto Moreira Salles.

Cineastas amadores, igualmente em exercício do processo criativo em meio à quarentena, também seguem produzindo e disponibilizando seus filmes em curta, média e longa-metragem através de plataformas como o YouTube. Serviços de streaming brasileiros, como o SPCine Play, estão deixando o acesso à seus catálogos aberto ao público de graça enquanto a pandemia durar. Mostras e festivais de cinema que estavam com datas agendadas para o meio ou o final do ano decidiram se readaptar e realizar seus eventos através de edições on-line.

Quando a pandemia terminar e as produções em pausa retornarem com suas atividades, o cinema brasileiro estará pisando em terras desconhecidas. Na ocasião da gripe espanhola de 1918, as atividades cinematográficas brasileiras ainda estavam dando seus primeiros e desajeitados passos, iniciados ao final do século anterior. Em 1920, quando a situação do planeta começou a se normalizar, pode-se dizer que não houve mudança significativa na produção do cinema nacional porque, a rigor, a produção do cinema nacional existia de forma esparsa e embrionária, ainda mais no que se refere a filmes de ficção.

As condições atuais são bem diferentes. Mesmo tendo atravessado dificuldades hercúleas em todos os setores possíveis ao longo dos 100 anos que separam a pandemia da gripe espanhola da pandemia da COVID-19, o cinema brasileiro hoje existe enquanto indústria, amparado pelo Estado, regulamentado e financiado por capital público e privado. É um cinema que, ao menos dentro de sua esfera oficial, precisa cumprir com orçamentos e pagar contas. Pode levar meses ou até mesmo anos para que os filmes brasileiros que pretendiam estrear em 2020 consigam uma brecha no parque exibidor pós-pandêmico, mas caso eles queiram ter a sala de cinema como ambiente de estreia nesse cenário, os resta esperar e caçar uma data viável ou cair no limbo do esquecimento. Filmagens inconclusas serão terminadas, projetos esboçados antes de março serão concretizados.

O problema é que, caso todos esses filmes – os que estão prontos para serem lançados, os que precisam ser terminados e os que ainda não começaram a ser rodados – não sofram alterações estético-narrativas antes de chegarem ao público, o farão de forma amarga, estranha. Serão produtos de outra época, anacronismos audiovisuais enviados de um mundo pré-pandêmico para um mundo pós-pandêmico como uma mensagem na garrafa que chegou atrasada ao destinatário. De forma alguma isso faria uma produção como “Marighella” perder seu valor. O filme, no entanto, passaria a representar, de forma não intencional – e isso vai além das temáticas que aborda e de seu conteúdo como um todo – um mundo que não existe mais. Em contraponto com um cinema realizado durante a pandemia da COVID, como o “República” de Grace Passô, ou com um cinema pós-pandêmico que reconheça os efeitos devastadores do vírus sobre a realidade brasileira, será um cinema defasado. Isso, novamente, não é nenhum demérito, mas uma constatação de que não há retorno a um Brasil pré-coronavírus.

Sobre o que é possível especular acerca do cinema brasileiro dos primeiros anos da década de 2020 (e nenhuma especulação está isenta da possibilidade do erro), pode-se dizer que haverá uma “safra anacrônica”; filmes de 2019 e 2020 que chegarão ao público no mundo pós-COVID, e uma “safra autoconsciente”; filmes que não contornam as implicações práticas, narrativas e estéticas de se fazer cinema durante ou depois da pandemia, que por ora possui em “República” um de seus representantes mais evidentes. Possivelmente haverá uma “safra amnésica” de filmes realizados no pós-COVID que tentarão não abordar a questão da pandemia, em uma tentativa de relacionar a realidade fílmica ao mundo anterior a março de 2020.

Para além de evidentemente causar um constrangimento ao espectador que sabe que nada será como era antes, caso exista, essa “safra amnésica” sequer conseguirá enganar a si mesma. Por mais que não exista nada de errado em buscar no cinema um escapismo honesto, não existe, em qualquer tipo de arte, uma dissociação completa da realidade, ainda que algumas manifestações artísticas tomem a dissociação como proposta. Mesmo o mais inocente e bem intencionado cinema escapista não será capaz de esconder do espectador brasileiro os efeitos do coronavírus no país e na vida de cada um de seus cidadãos. As palavras apoteóticas entoadas por Grace Passô em seu curta-metragem quarentênico sintetizam a situação: “O seu Brasil acabou, o meu nunca existiu”.

Igor Nolasco

Colunista

Entusiasta do cinema brasileiro e formando em Cinema e Audiovisual pela ESPM Rio. Também interessado em literatura, música e história.

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