Suicídio: um problema de existências negadas
- 13 de setembro de 2020
O suicídio afeta a todos, porém, algumas classes têm maiores índices como consequência de negações de existências durante a vida
Por Carolina de Mendonça
Colaborou Leopoldo Neto
Ilustração e gráficos por Guilherme Correia
Em caso de sofrimento psíquico, é importante buscar por profissionais de saúde mental. Pelo SUS, há os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) que são serviços com portas abertas, que oferecem cuidados a saúde mental. Em casos de situação de vulnerabilidade, é importante buscar o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), que conta com equipe multiprofissional para trabalhar com diversas demandas. Em casos de emergência a Organização não governamental CVV oferece acolhimento gratuito com voluntários treinados através do número 188 (ligação gratuita), no site também oferece acolhimento por e-mail e chat.
“João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.”
(Poema Tirado De Uma Notícia De Jornal – Manuel Bandeira, 1925)
João Gostoso era um ninguém para a sociedade. Não tinha sobrenome, morava em um barraco sem identificação e tinha um emprego visto como inferior. Em uma noite sem data, João bebe, canta e dança. Depois se atira na lagoa e vira apenas uma notícia. Não se sabe se foi suicídio, se ele não sabia nadar, ou mesmo, se foi falta de sinalizações na lagoa para impedir o banho. E não importa. Socialmente sua existência não era válida.
Similar à história do poema de Manuel Bandeira, a composição Construção, de Chico Buarque traz a vida de um homem proletário que morre de forma trágica. Talvez um suicídio, talvez um acidente. A música encadeia narrativas cada vez mais impessoais e dolorosas sobre a morte do sujeito no passeio público, que se torna um peso aos que passavam.
As obras citadas são do século passado e mostram um descaso para com as vidas – e mortes – de pessoas desafortunadas. Não se sabe ao certo se cometem suicídio, contudo sabe-se que o baixo status socioeconômico é associado às maiores taxas de lesões autoprovocadas. Pobreza é um fator de risco para o sofrimento psíquico e suicídio. No Brasil, as maiores taxas de tentativas de suicídio se dão entre pessoas com menor escolaridade.
Assim como no poema de Bandeira, o suicida por vezes se torna apenas uma notícia de jornal, apesar da complexidade de se noticiar sobre o tema – havendo um manual para profissionais da mídia. A divulgação do tema pela mídia é fundamental para a compreensão massiva do suicídio, pois amplia a luta por políticas públicas. Contudo, por vezes os veículos de imprensa reforçam violências contra suicidas, como casos de tentativas públicas em que se noticia o impacto negativo aos que passavam, em situações semelhantes à canção de Chico Buarque.
Em 2018, no dia 10 de setembro – Dia Mundial De Prevenção Ao Suicídio – houve em Vitória (Espírito Santo) um caso emblemático de tentativa de suicídio. A Terceira Ponte, cartão postal da cidade, foi cenário de uma situação repulsiva. Um homem passou oito horas negociando o resgate no início da ponte, próxima a um bairro nobre da capital capixaba. Incomodados com o trânsito parado, moradores da região buscaram fazer barulhos para assustar a pessoa que estava sendo resgatada. Era investida a possibilidade de sacrificar uma vida para se chegar mais cedo em casa. Ao final, o senhor foi resgatado com vida. Por ser uma pessoa em situação de rua e com relação patológica com drogas, era considerado morto socialmente.
O caso descrito acima foi representativo, mas não único. O cartão postal da cidade de Vitória também carrega o peso de ser um local com alto índice de tentativas de suicídios. Por conta disso, durante muito tempo entidades de saúde mental do Espírito Santo pautaram a instalação de grades no local. O debate perdurou por anos, e muitas tragédias, até que se fosse aceita a instalação das barreiras. Um dos motivos contra a inserção de tal proteção era o receio de parte da população de haver aumento do pedágio cobrado na ponte. O incômodo de pagar alguns centavos a mais ao passar na ponte era maior do que o das constantes mortes ocorridas no local.
O suicídio é absolutamente complexo. É uma questão existencial, uma decisão (racional ou impulsiva) perante a própria existência. Neste aspecto, é preciso cuidado para com relações autênticas em suas redes de apoio. Família, amigos, trabalho, espaço de estudos, coletivos políticos e todos espaços de convivência devem ser acolhedores aos que sofrem. Como acolher, não é possível explicar em um texto, pois se trata de uma atividade complexa que demanda tempo, disposição e constante aprendizagem. Acima de tudo, exige empatia pelo outro.
Tal ato pode ser realizado a qualquer momento, por qualquer pessoa. Contudo, há algumas que apresentam fatores de risco, para os quais é importante se atentar e proteger. É comum que mortes por lesões autoprovocadas ocorram em pessoas com histórico prévio de tentativas. É preciso compreender o que leva cada sujeito à tentativa e intervir nesses aspectos, a fim de ampliar as possibilidades de escolha do indivíduo perante sua existência.
É predominante, entre sujeitos com tentativa de suicídio, a presença de transtorno mental. Aproximadamente 90% dos casos. Os transtornos mais comuns são os de humor (como depressão), psicóticos (como esquizofrenia) e relacionados a abuso de substâncias (como alcoolismo). A presença de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) no município representa um fator de proteção ao suicídio, reduzindo.
O atual governo, durante a gestão de Luiz Henrique Mandetta no Ministério da Saúde, modificou as políticas de tratamento da dependência química. A prática da Redução de Danos – que respeita a singularidade e busca a saúde integral do sujeito – foi substituída por um modelo de abstinência e internação compulsória. Para reforçar tal medida, o então ministro sucateou os CAPS, retirando investimentos do SUS destinados a estes, passando a responsabilidade a iniciativas privadas vinculadas a grupos religiosos.
Um problema de existência se torna um problema de justiça. E assim se assassinam subjetividades no Brasil. Nega-se a ciência, a individualidade, a vida. Tudo por um projeto neoliberal que visa aniquilamento de todos que atrapalham tal lógica. Sejam os que estão nas ruas, diminuindo a especulação imobiliária, ou presos em seu próprio sofrimento sem conseguir produzir. Em diversas formas a atual política de saúde mental é genocida.
Contexto familiar de suicídio prévio na família tende a aumentar riscos de tentativa. O acolhimento a enlutados se faz essencial para elaboração da situação também como forma de pósvenção¹. Características de personalidade também podem aumentar o risco, como pensamentos dicotômicos – tudo ou nada. Tal maneira de enxergar o mundo é incentivada pelo sistema capitalista, que estimula a competição e retira dos perdedores quaisquer virtudes, enfraquecendo sistematicamente a psique dos sujeitos.
Há uma prevalência nas tentativas de suicídio entre mulheres. Dentre os motivos do alto índice, o machismo se faz presente. O sistema de opressão de gênero violenta todas pessoas que desviam do padrão do homem cisgênero. Entre as diversas formas de abuso, estão o assédio sexual e o estupro. Histórico de violência sexual é fator de risco para desenvolvimento de comportamento suicida. O trauma provocado por tal violência reverbera em contextos da existência, agravando-se porque na maior parte das vezes o abusador é alguém próximo.
Apesar de mais tentativas de mulheres, há mais mortes entre homens. Isso também é um reflexo do machismo. Homens cisgênero tendem a buscar formas de autolesão mais letais, em comparação a mulheres cisgênero. A socialização masculina reforça comportamentos violentos, em situações nas quais a violência se volta contra si tende a ser de forma extremamente agressiva.
O suicídio é presente em todas as idades, contudo, é possível visualizar um predomínio entre idosos com mais de 70 anos. O ser idoso é complexo, costumando vir associado a diversas perdas. A aposentadoria traz uma perda da função social, há uma mudança corporal significativa por conta do envelhecimento e é comum viver lutos relativos à perda de pessoas próximas, por vezes adoecimentos ligados a velhice geram conflitos para o sujeito idoso pela dependência nessa fase.
Mesmo com o aumento da população idosa no Brasil, as cidades não são projetadas para receber essa população, tornando deslocamento complicado. Há falhas em implementação extensa de políticas públicas de lazer e esporte voltadas a essa população, que por vezes tem como rotina ir a consultas médicas e postos de saúde. Também há problemáticas no cuidado da saúde desse idoso, comumente precisa de remédios de uso contínuo para doenças crônicas – como hipertensão e diabetes. O atual ministro da Economia, Paulo Guedes, propôs o fim da Farmácia Popular, que oferece remédios de uso contínuo com grandes descontos ou gratuitamente. Mesmo com pesquisas indicando que a Farmácia Popular é uma forma de evitar internações e diminuir os investimentos em Saúde, como também melhorar qualidade de vida da população, ela é alvo de ataques do atual governo federal.
Idosos no Brasil são as maiores vítimas da Covid-19. Com os hospitais lotados, a preferência é dada ao sujeito enfermo com maiores chances de sobreviver – na maioria das vezes, o mais jovem. A pandemia evidencia um projeto de país que nega existência de idosos.
A Covid-19 também escancarou um genocídio contra a população negra. A desigualdade social atinge brutalmente tal população, que historicamente foi negada de humanidade e relegada à negligência. Durante a pandemia, a letalidade policial bateu recorde em São Paulo, estado onde o atual governador, João Dória, se elegeu repetindo que a polícia iria atirar para matar. Os alvos da polícia são muito similares – jovens, negros, de classe baixa. Não há ansiolítico que diminua a ansiedade de ser, o tempo inteiro, alvo.
O processo histórico de desigualdade traz para o momento atual uma lógica escravista – mais de 100 anos após o fim oficial da escravidão no Brasil. A lógica de submissão de uma classe pela cor se faz presente nos espaços onde se rejeitam pretos que estudem, busquem se divertir ou simplesmente passem. A mídia reforça estereótipos de pretos submissos a patrões – remetendo à ideia da “ama de leite” – e de criminosos perigosos. É reforçado um não lugar para essa população. Nega-se a ancestralidade de um povo que construiu o país, mas não pode saber de onde veio. Persegue-se grupos religiosos de matriz africana – como candomblé e umbanda – por uma ideia racista de que esses pratiquem maldades. Em episódio recente, o Quilombo Campo Grande, em Minas Gerais, sofreu um incêndio após demonstrar resistência ao despejo. Uma repetição de uma longa história de sangue e opressão com a qual o Brasil finge não precisar lidar.
O racismo também se manifesta de forma cotidiana, com violências simbólicas que afetam a saúde mental. É estrutural que negros sejam vistos como menos bonitos, menos inteligentes e até mesmo menos dignos de ser amados. Contudo, em discursos, inclusive entre profissionais de saúde mental, tal problemática é individualizada e não vista como um sistema de opressão que, para funcionar, faz com que pessoas negras destinem ódio a si mesmas e não a compreender a estrutura de poder, que das mais diversas formas desumaniza e aniquila os pretos.
Também constantes vítimas de racismo, entre indígenas há altas taxas de mortalidade por suicídio. Conflitos e aculturação são problemáticas que se ligam intimamente ao aumento de tal índice e constantes na vida de indígenas no Brasil, desde o início do processo colonizador. Por mais de 500 anos, a população nativa do país sofre com o genocídio em curso, no momento, intensificado pela Covid-19. Pelo fato de as principais vítimas serem anciões, em vários povos, línguas inteiras correm risco de extinção, além da perda de uma imensa sabedoria ancestral a cada vida perdida.
Para se compreender o suicídio entre indígenas, precisa-se antes descolonizar a visão de saúde. Para essa população, a relação com a terra vai além da subsistência, tratando-se de um entendimento da natureza (sejam animais, vegetais ou outros humanos) integrada à cultura e com papel para a morfologia social. Muitos territórios indígenas são locais de conflito devido à expansão do agronegócio, a especulações imobiliárias e ao extrativismo predatório, formas de lidar com a terra que são opostas ao bem-viver dessa população. Ao aniquilar o espaço natural, queima-se a existência dos povos tradicionais.
Parcela dessa população é obrigada a se adaptar ao modo de vida ocidental. O conflito entre as diversas culturas tradicionais indígenas e a cultura colonial é devastadora, em especial para os mais jovens – estes com maiores índices de suicídio. Aos que moram em centros urbanos, é constante a presença de violências que negam os traços indígenas, coíbe suas manifestações culturais, negando a identidade cultural do sujeito indígena.
Dentre os dados oficiais não há recorte de sexualidade, apesar de LGB serem negados em diversos espaços por sua sexualidade. A população LGBT é recorrente alvo de ataques do atual governo, o qual o próprio presidente já afirmou em entrevista para a revista playboy que preferiria um filho morto a um filho gay. O discurso de ódio do político valida agressões sofridas por essas pessoas nos diversos ambientes vividos, inclusive doméstico. De ofensas desde a infância, a estupros corretivos e assassinatos, não performar a heterossexualidade é um risco no Brasil.
Pessoas trans também tendem a ser preteridas de relações afetivas, sendo por muitas vezes objetificadas neste contexto, ou seja, relegadas a apenas sexo e escondido. Essa população tem baixos índices de escolaridade, pois espaços educacionais não são aptos a conviver com diferenças. Há poucas empresas que contratam pessoas trans, pois são vistas como atentados à família. A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, reforça a lógica binária na qual meninas vestem rosa e meninos azul. A família tradicional não suporta o diferente e busca sua aniquilação.
Uma problemática complexa, infelizmente, não será resolvida de forma simples. É comum que pessoas antes de tentar suicídio relatem suas queixas a profissionais de saúde, porém esses, quando não trabalham diretamente com saúde mental, tendem a não compreender dores existenciais, limitando aos possíveis problemas físicos. É necessária uma formação continuada, para que esses profissionais compreendam o sujeito de forma ampla, para suas demandas que transcendem aspectos biológicos.
Além de profissionais de saúde como um todo, é preciso que os diversos setores sociais busquem compreender as problemáticas que interferem no suicídio. O suicídio afeta a todos, porém algumas classes têm maiores índices como consequência de negações de existências durante a vida. Assim, é necessário que se organize, em conjunto, a construção de uma nova lógica social. Uma luta por emancipação de todas vidas humanas. Que nenhum sujeito seja resumido uma notícia de jornal com informações imprecisas sobre sua vida ou um obstáculo em um momento de sofrimento.
¹Pósvenção: cuidado oferecido aos enlutados por suicídio. Como suicídio de uma pessoa próxima é fator de risco a tentativa, a pósvenção se faz essencial para evitação do comportamento.