Pouca linha e muita dor: história do adorável Arthur Bispo do Rosário

Por Carolina de Mendonça 
 

Há diversas inconsistências na biografia de Arthur Bispo do Rosário devido dos poucos registros e da negligência que ele sofreu em vida. Sua história é um labirinto. Dei preferência aos dados que se repetiam em mais referências ou caso houvesse somente em duas, preferi aqueles que estão no site do museu Bispo do Rosário – Arte Contemporânea. O fato de haver tantas fragilidades em sua memória torna ainda mais importante conhecer da história de Bispo. Seja em museus (quando reabertos), cordéis, sites, filmes, livros, músicas e o que mais houver, assim preservar sua memória.

Arthur Bispo do Rosário nasceu em Japaratura, pequena cidade sergipana, mas não há uma certeza da data exata, nos registros da Marinha (onde serviu entre 1925 e 1933) consta 14 de maio de 1909, porém na Light, empresa de fornecimento de energia onde trabalhou de 1933 a 1937, sua data de nascimento é 16 de março de 1911. “Um dia eu simplesmente apareci!” era o que o artista afirmava.

Alistado na marinha o jovem vai ao Rio de Janeiro a trabalho e não retorna a Sergipe. Na então capital brasileira faz boxe em paralelo com a vida militar. Após ser desligado das forças navais por indisciplina, passa a trabalhar na Light como limpador de bondes e continua sua vida no boxe.

Um acidente de trabalho causa um ferimento grave em seu pé que o impede de trabalhar enquanto limpador e continuar sua carreira no boxe. Após um ano sofre outro acidente e é demitido. Contrata um advogado, o qual após o processo contra a Light, Bispo se torna empregado do advogado que contrata, morando em aposentos cedidos pelo chefe por cerca de duas décadas.

Com aproximadamente 30 anos tem seu primeiro surto psicótico registrado – possível não ter sido o primeiro, pois em homens cisgênero a esquizofrenia comumente se manifesta até os 25 anos. Nas vésperas do natal saiu da casa onde morava e, em uma espécie de peregrinação, vai até a igreja da Candelária se apresentar. Com um discurso religioso tão intenso as pessoas em volta se assustam e consideram delírio. Bispo é levado para um hospital psiquiátrico, lá conta sonhos fantásticos e é diagnosticado como esquizofrênico paranoide. Mudando de hospitais, foge e por dez anos trabalha para seu antigo patrão. Contudo, em 1964 retorna a viver em asilo para loucos, sendo internado na Colônia Juliano Moreira. Morre depois de mais de 50 anos em manicômios – instituição a qual ele resistia criando sua arte.

É difícil falar de Bispo sem falar de mim e de como meu interesse por esse artista surge. Sou Carolina, estudo psicologia, moro em Sergipe há mais de duas décadas e sou entusiasta de museus. Enquanto moradora da capital sergipana não sei quando conheci Bispo do Rosário, mas sei que foi na segunda metade de 2018 que me dediquei a conhecê-lo mais. Uma das minhas professoras na faculdade – que além de psicóloga é designer de moda – entusiasta de sua obra e me despertou a curiosidade nesse artista.

Conheci um pouco mais de Bispo, na mesma época, frequentando o Museu da Gente Sergipana (Aracaju – SE), onde me relataram que ele é o artista sergipano mais conhecido mundo afora. Um mês depois fui a São Paulo e visitei o Museu de Arte de São Paulo (MASP), comecei minha trajetória do andar mais alto onde está o acervo do museu. Chegando ao segundo andar subterrâneo, na exposição Histórias Afro-Atlânticas, com a mente já um pouco cansada e entre pensar o fetiche na loucura, o que e onde eu almoçaria, horrores do capitalismo à brasileira com o Nordeste, o presente que comprei para um querido amigo.

Figura 1: “Eu Preciso Destas Palavras Escritas” – Arthur Bispo do Rosário (Acervo Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea)

A exposição era exuberante, mas não estava mais tão atenta. Ao olhar para o lado, atrás de uma escultura vi uma obra que mexeu comigo. Profundamente. Eu tremi toda, meus olhos marejaram de lágrimas, minha mente intensificou os questionamentos sobre os quais estava anteriormente. Se repetia o mesmo trecho de uma música que eu ouvi ao acordar “Há sempre um lado que pese e um outro lado que flutua”.  Eu via os dois lados ali na minha frente. Tudo era mais intenso que qualquer racionalização.

Em meio a todo o contexto, de buscar uma psicologia política, de conhecer mais o estado onde moro e um tanto embebida pelas artes do acervo do MASP, a obra “Eu Preciso Destas Palavras Escritas” se tornou um símbolo para mim. Depois disso, adentrei a estudar sobre capitalismo e sobre psicologia enquanto uma prática de mudança social, frequentei muito mais espaços culturais de Aracaju – município onde vivo. Principalmente prometi que nunca me permitiria ser a ser ativa ou negligente a práticas absurdas como as que fizeram com o Bispo do Rosário – e tantos outros milhares de sujeitos que passam por tais violências no Brasil.

Importante lembrar que hospícios não têm função social de cuidado, tem função de controle social daqueles que são indesejáveis. Bispo do Rosário era visto como indesejável, por isso rotulado como perigoso. Preto, nordestino, pobre e louco. Em sua primeira internação foi transferido para uma ala da Colônia Juliano Moreira para pacientes mais agressivos e “agitados”.

Arthur Bispo do Rosário foi diagnosticado com o tipo mais comum da patologia – esquizofrenia paranoide. O termo esquizofrenia vem do grego skhizein, que em tradução seria: separar, partir, fragmentar; e  phren: mente, cérebro. Os processos psicológicos (memória, sensopercepção, emoção) ficam afetados, se vê, ouve ou sente algo que não está ali para as outras pessoas presentes.  Como forma da mente lidar com tal fragmentação, a mente reorganiza seus pedaços em discursos que soam absurdos para outrem. Discursos estes que tendem a buscar por imagens mais primitivas da psique, religiosidade, memórias pessoais, situações grandiosas.

É muito positivo que pessoas com esquizofrenia sejam permitidas a produzir artisticamente. Estas costumam criar mandalas como forma de reorganizar o ego, fragilizado com a fragmentação e, quando alfabetizadas, se utilizar de palavras. A pessoa se sente desmembrada de si mesma, sua linguagem se desmonta. E isso doí, para isso busca unir a si em uma forma circular, busca do mais concreto em linguagem uma lógica que a reorganize. Arthur criou mandalas, inclusive com diversas palavras que ele precisava escritas, sua obra mais famosa, Manto da Apresentação, é uma bela e enorme mandala.

Figura 2: “Manto da Apresentação” (avesso) – Acervo Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea

 

Uma vez uma voz disse a Arthur Bispo que represente os materiais existentes na terra para uso do homem. E assim, usando de materiais que encontrava na rua, sucatas e de linhas azuis dos uniformes do hospital, Bispo iniciou sua criação. Sua obra tinha motivações póstumas, era para construção de um pós-vida. Tendo, acima de tudo, um sentido religioso, afinal, segundo o artista ele era o mandado a terra para julgar os bons e maus, se igualando a deus no juízo final.

Durante o tempo que passa no hospital, se apaixona de forma intensa por uma estagiária de psicologia do local, Rosângela Maria. A jovem ganhou a confiança de Arthur Bispo, o que permitiu a ela acesso as obras. Ele a via como uma mulher ideal e casta – arquétipo similar a Maria, mãe de Jesus no cristianismo. A jovem, por sua vez, aproveitava a proximidade para buscar trazer o interno a realidade. Durante o período com Rosângela, Bispo fez obras em sua homenagem, como “Cama de Romeu e Julieta”, na qual ele pretendia encenar junto a sua amada a peça Shakespeariana.

 
Figura 3: “Cama de Romeu e Julieta” – Acervo Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea

Além de referenciar a literatura tida como erudita, a obra de Bispo do Rosário traz fortes referências cristãs, indígenas e africanas. Os objetos “exóticos” nada mais eram que influências de sua infância e adolescência no Nordeste, onde cresceu em meio a uma riqueza folclórica. Os profissionais que os atendiam no Rio de Janeiro não compreenderam aquela riqueza, os críticos de arte logo viram. Mas tanto as ciências médicas quanto o mercado de arte são nefastos. Arthur continuava a ser diminuído enquanto sujeito autônomo.

No Rio de Janeiro na mesma época havia o cuidado com psicóticos e arte. Sem usar o saber das ciências médicas como forma de dominação e sem colocar a arte como uma especulação mercadológica, surgiram artistas como Fernando Diniz, Adelina Gomes e Carlos Pertuis, psicóticos como Arthur Bispo do Rosário. Estes artistas foram orientados pela psiquiatra Nise da Silveira e, por ela, foram deixados livres para criar. Com liberdade e afeto, se percebeu que tais agentes demonstraram lidar melhor com o próprio sofrimento e reorganizar suas fragmentações. Apesar de ter passado pelo hospital onde Nise da Silveira trabalhava, não há registros que Arthur tenha frequentado a seção de terapêutica ocupacional pela médica.

Na Colônia Juliano Moreira não havia seções como essa em grande escala, o artista não era orientado ou analisado por profissionais em sua criação. Bispo para criar em pleno surto se trancou em seu quarto e por lá passou anos. Os outros internos do local não deram por sua falta, estavam alienados em seu mundo interno de forma que não era possível perceber as mudanças externas. O artista também não deixava que qualquer um penetrasse em seu exilio, para entrar precisava dizer uma senha, a cor de sua áurea, a qual era azul – como o mar, como os uniformes do hospital.

Apesar de criar nesse espaço, o hospital permanecia insalubre. Por conta de denúncias feitas às práticas desumanas do local, a equipe do programa Fantástico (Rede Globo) gravou uma reportagem na Colônia Juliano Moreira em 1980. Na época, emerge um anseio popular contra os manicômios, com isso começam a ser expostos na mídia o horror dessas instituições. É a primeira aparição pública das obras de Bispo do Rosário, em um momento no qual ele era apenas mais um louco sofrendo com a sua própria fragilidade e as violências do hospital.

Pouco depois o fotógrafo e psicanalista Hugo Denizart resolve criar um curta-metragem naquele hospital, seu objetivo inicial era mostrar como os loucos criavam artisticamente para lidar com a própria dor da psicopatologia e com o sofrimento de se viver em manicômios. O prisioneiro de passagem (30 min, 1982, Hugo Denizart) se volta para Arthur Bispo do Rosário – outros naquele lugar também criavam, mas a arte do sergipano chamou a atenção do psicanalista por sua grandiosidade.

No mesmo ano da gravação do curta, Bispo tem algumas de suas peças expostas em um museu, mas ele se recusa a ir. Arthur não se considerava um artista, só fazia o que a voz o mandava, pois assim garantiria um mundo melhor depois do juízo final. As pessoas também não o tratavam como grande artista e ele permaneceu depositado no hospício. Em sua certidão de morte está escrito “Deixa bens? Ignorado”, mesmo tendo deixado obras artísticas de valor inestimável – comparado a Marcel Duchamp (1887 – 1968) e a José Leonilson (1957 – 1993), o segundo tendo exposições postumas em parceira.

O homem que, por décadas esteve esquecido dentro de uma instituição total, teve sua história transformada em filme. “O Senhor do Labirinto” (80 min/2014/Geraldo Motta Filho, Giselle Mello) conta história do “excêntrico” esquizofrênico sergipano. Se tornou enredo de escola de samba em 2019 pela “Unidos de Jucutuquara” (Vitória – Espírito Santo) com o tema “O Rosário do Bispo e seu delirante inventário do universo” levou quarto lugar no carnaval.

Sem posses em vida, hoje Bispo do Rosário tem um museu que guarda sua obra e leva seu nome. Localizado onde ficava a Colônia Juliano Moreira, o Museu Bispo do Rosário – Arte Contemporânea. O museu foi criado no ano de 1952 para expor obras criadas no ateliê de arteterapia da instituição. Inicialmente levou o nome do médico criador da lobotomia, o qual não irei referir o nome, sendo sim importante de se lembrar a técnica criada por ele, assim como manter a memória sobre o horror de tal cirurgia, mas não manter viva a memória de alguém responsável por uma atrocidade.

Apenas no final dos anos 1980 o museu ganha novo nome e passa a se chamar Nise da Silveira, psiquiatra que se opôs a lobotomia e deu voz aos pacientes esquizofrênicos com a arte. Em 2000, se resolve renomear o museu em homenagem ao artista com maior acervo no local. A grande psiquiatra não foi esquecida, tendo a alguns bairros de distância o museu criado por ela: Museu de Imagens do Inconsciente, o qual é popularmente conhecido como “Museu da Nise”.

Em 2004 os restos mortais de Bispo do Rosário foram transferidos à Japaratuba (SE) no, talvez, mais belo gesto por sua memória, antes enterrado no Cemitério do Pechincha no bairro do Jacarepaguá (Rio de Janeiro – RJ). Espaço destinado aos loucos da Colônia, os que não eram desejáveis a ninguém mais, nem para um enterro digno. No novo local foi cravada uma placa com os dizeres “Pisa forte neste chão. Arthur Bispo do Rosário está de volta”.

Em sua cidade natal também se encontra uma estátua, tamanho real, em sua homenagem. Nela, Bispo do Rosário veste seu Manto da Apresentação. Contudo, ao ser colocado o monumento chamou atenção aos moradores da pequena cidade sergipana, pois grande parte não sabia de quem era esse homem com vestes extravagantes. O nordestino com obras consideradas patrimônio artístico e cultural brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que já teve exposição em sua homenagem no Museu Gugenheim (Nova York – Estados Unidos) não é lembrado em suas terras, nem no site oficial da cidade, o qual não há nada sobre o japaratubano célebre.

Na capital sergipana, Bispo não tem seu nome lembrado nas ruas, praças, prédios públicos ou monumentos. Estes são em sua maior parte homenagem a políticos de grandes famílias do estado, todos brancos e com sangue nas mãos – de indígenas desapropriados de suas terras, de negros afogados na criação de porto para família real, de outros brancos ricos que na disputa política acabaram sendo assassinados. A maior homenagem ao artista em Aracaju talvez se dê dentro do Museu da Gente Sergipana, com uma obra feita por bordadeiras baseada em sua arte.

A problemática com artistas em Sergipe é maior que a desvalorização da memória de Bispo do Rosário. Com a pandemia – e com ela, impossibilidade de apresentações e exposições –, os artistas locais expuseram um atraso de meses do pagamento de cachê do maior festival do estado – Festival de Artes de São Cristóvão  (FASC). O público aplaudiu, dançou e se emocionou com os artistas locais tal como os de renome internacional, como o baiano Gilberto Gil e a caribenha Dezarie, porém o os organizadores do festival reforçaram que que artistas menores (em reconhecimento) devem trabalhar  por aplausos, reconhecimento póstumo, mas não precisam viver bem.

Arthur Bispo do Rosário tem hoje museu com seu nome, esteve mundo afora, eu o vi no MASP, é homenageado no Museu da Gente Sergipana. Em vida ele era só um louco que colecionava lixo e que não poderia entrar nos locais que hoje sua obra está. O artista usou de linhas para tentar sair de seu labirinto externo, contudo, essas não foram suficientes, em vida, para criar caminhos com os labirintos internos.

Que Bispo seja lembrado como o grande artista brasileiro que ele é, de seus incríveis sonhos que, mesmo com tantas violências, não foram esmagados. E que sua história seja importante para compreender como lidamos com pessoas marginalizadas, esses sendo apenas artistas com linguagens que se diferenciam da estética dominante. Que deixemos que estas pessoas falarem e terem suas vozes ouvidas. Aos loucos, que sejam dadas linhas (tinta, barro, lápis e o que mais quiserem) a fim de diminuir suas dores psíquicas.

 

Carolina de Mendonça

Colunista

Estudante de psicologia, amante de utopias e com grandes flertes com o cinema.

Guilherme Correia

Repórter e Subdiretor de arte

Estudante de jornalismo. Entusiasta de muitas coisas, do futebol ao audiovisual. Interessado em educação, cultura e pautas sociais.

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