Entre mitos, arte e revoluções

Por Carolina de Mendonça 
Ilustração por Marina Duarte

Nascida em 15 de fevereiro 1905 em Maceió, capital alagoana, Nise cresceu em meio à arte. Filha de uma pianista e de um importante jornalista, desde cedo Nise se encantou com a literatura e o conhecimento. Apoiada pelos seus pais, que falsificam sua data de nascimento em sua documentação, se muda para Salvador e ingressa na Universidade Federal da Bahia (UFBA) no curso de Medicina.  É a única mulher de 157 alunos da turma 1921-1926 e uma das primeiras médicas do Brasil.

Nise casa-se, apesar de descontentamento da família, com seu primo Mário Magalhães da Silveira, também médico, com quem vive até a morte do esposo. Em acordo comum, o casal opta por não ter filhos para se dedicar às carreiras na saúde e na pesquisa científica. Viveram com muitos (muitíssimos) gatos que eram um prazer do casal.

Após a morte de seu pai, Faustino Magalhães da Silveira, Nise se muda com seu marido para o Rio de Janeiro, onde realiza sua especialização em psiquiatria. Nesse momento surgem os primeiros incômodos da médica com o modelo de psiquiatria implementada na época – uma ciência que negava a humanidade e a profundidade dos indivíduos enfermos.

É difícil para quem acredita em utopias aceitar a barbárie. E Nise não a aceitou. Enquanto intelectual se aproximou de grupos comunistas, o que era considerado ilegal no Governo Vargas. Denunciada por uma enfermeira do hospital, a psiquiatra é presa, acusada de possuir livros comunistas e por possível envolvimento com o Partido Comunista Brasileiro (PCB).

A médica passou 18 meses encarcerada na cadeia Frei Caneca, junto a ela estavam alguns militantes e estudiosos do comunismo – entre alguns de destaque estava lá Olga Benário (militante alemã) e Graciliano Ramos (escritor alagoano), o conterrâneo da psiquiatra cria uma personagem inspirada em Nise em seu livro Memórias do Cárcere (1953). Pelo medo de ser presa novamente viaja pelo Brasil com o esposo durante quase uma década, nesse tempo se aprofunda na leitura de Espinosa, filosofo que era de muito agrado a estudiosa.

Em 1944 volta a trabalhar como psiquiatra no Hospital Psiquiátrico Nacional Pedro II (Engenho de Dentro), dessa vez ainda mais crítica e radical à psiquiatria vigente na época. Nise afirmava que o tempo presa a deixou viciada em liberdade. A prática médica estava ainda mais violenta do na época de sua residência, menos de 10 anos antes.

Uma das novas técnicas usadas era o eletroconvulsoterapia, popularmente conhecida como eletrochoque, que consiste na sedação do indivíduo enfermo para passagem de uma forte corrente elétrica causando alterações na atividade cerebral. Ao ser apresentada ao instrumento, Nise é convidada realizar o procedimento, mas se nega. Apesar de simples, sua contestação teve um forte poder revolucionário e ecoa até hoje naqueles que buscam uma prática humanizada.

Por tal episódio Nise se torna, para seus admiradores e seguidores, um mito, porém para os profissionais de Engenho de Dentro ela era uma rebelde insensata, por isso é transferida para o setor de terapêutica ocupacional, tido na época como inferior no tratamento dos pacientes. Tal setor era responsável por readaptar os pacientes “incapazes” a serviços domésticos, mesmo sem validação cientifica de melhora por essa espécie de laborterapia.

Uma vez nesse setor, a alagoana opta por maneiras pouco ortodoxas para a medicina de cuidados da época. Ela cria ateliês de arte, assim acessando os inconscientes – importante lembrar que há mais de um inconsciente na psicologia analítica – dos que ela atendia, visando uma compreensão da linguagem dos esquizofrênicos e um cuidado através de afeto. Apesar de encontrar extrema recusa por parte do hospital em enviar recursos ao seu setor, que por vezes negavam papeis para utilização dessa terapêutica, Nise em dois anos funda a seção Terapêutica Ocupacional.

Muito dedicada às leituras e à pesquisa, Nise se debruça a conhecer sobre a Psicologia Analítica e suas teorias, que envolvem mitos, imagens e inconscientes. Começou a se corresponder por cartas com o criador da teoria o também psiquiatra Carl Gustav Jung, criando um forte laço de admiração. Por diversas vezes Nise viaja para Zurique para visitar Jung. O médico, por seu turno, deixa sua assessora como uma mentora de Nise – uma aprendiz muito dedicada.

Pioneira em tal abordagem no Brasil, Nise é uma das maiores referências em Psicologia Analítica. Escreveu livros como Jung: Vida e Obra (1968, Paz e Terra) e Imagens do Inconsciente (1981, Alhambra). O segundo título inspirou série documental com o diretor Leon Hirszman, lançada em 1987.

No setor, até então tido como inferior pelos médicos, Nise funda o “Museu do Inconsciente”. O museu contém obras feitas pelos clientes atendidos – Nise não gostava do termo “paciente” por considerá-lo passivo, preferia o termo “cliente”, pois se coloca a serviço daquele sujeito. O espaço também é usado para pesquisas e eventos culturais como teatro, aulas de expressões artísticas e palestras. Ciência e cultura se entrelaçam e se mesclam com a psiquiatra.

O museu dá a muitos dos seus clientes autoestima e perspectiva de futuro, com o reconhecimento artístico deles, muitas obras são especuladas para vendas em altos preços, mas Nise recusa. O arsenal artístico ali presente não pode ser vendido, é patrimônio da humanidade. As obras do Museu são em parte tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), além da UNESCO ter guarda da biblioteca e arquivo pessoal da fundadora. Para Nise, o espaço traz um mergulho na linguagem inconsciente daqueles que pintavam, esculpiam, dançavam e criavam livremente. A psiquiatra não observava tais manifestações de longe, se mantinha próxima aos clientes e buscava compreender seu lado mais profundo.

Muitos dos clientes que iam ao ateliê e tinham suas obras expostas e conservadas no museu possuíam em seus laudos sintoma de embotamento afetivo – enorme dificuldade de demonstrar emoções, aspecto comum em estados avançados de esquizofrenia. Contudo, os que se expressavam artisticamente demonstravam significativa melhora nos afetos e na imagem de si. Suas obras levantavam temas relacionados às experiências traumáticas, até mesmo chegando à resolução dessas ao longo de sua dedicação artística.

A partir da arte, pacientes com patologias psíquicas conseguiram encontrar formas mais humanizadas de tratamento. (Paciente/artista: Emydgio de Barros. 1948. Óleo sobre tela. Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente Rio de Janeiro)

Nise afirma que o embotamento afetivo não era uma consequência da patologia sofrida, mas do contexto hospitalar, do ambiente desagradável, das técnicas desumanizadoras e do excesso de psicotrópicos. Tudo isso afastava os clientes de sua própria vida psíquica, diminuindo também sua energia para o que é de mais humano – emoções, afetos, sentimentos e dor.

Para auxiliar os internos de Engenho de Dentro foram levados coterapeutas ao hospital com capacidade de amor incondicional – bichos de estimação, gatos e cachorros. A estabilidade emocional e incapacidade de guardar rancor dos animais se mostrou muito positivo para o tratamento dos clientes, que por vezes, tinham perdido por completo seus vínculos afetivos.

Para a reinserção social dos que ficavam internados, foi criada a Casa das Palmeiras. Uma clínica pioneira no regime externato, pois foi percebido a dificuldade de muitos saírem do internamento e os poucos que saiam costumavam reincidir. A proposta de cuidado em liberdade é muito similar ao que hoje se tem nas residências terapêuticas e Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), modelos substitutivos aos antigos hospitais psiquiátricos.

Nise estudou mitos e se tornou um mito. De tão humana para os que a conheceram, de tão extraordinária aos que conhecem sua história. Com suas armas singelas (papel, tinta, barro, pincel) fez uma revolução no modo de cuidar da loucura. Nise da Silveira tem uma história que merece e necessita ser ecoada para além da saúde mental, Nise é uma figura que inspira resistência e revoluções através do afeto.

Carolina de Mendonça

Colunista

Estudante de psicologia, amante de utopias e com grandes flertes com o cinema.

MARINA DUARTE

produtora-executiva

Ilustradora, acadêmica de psicopedagogia, estudou jornalismo. Militante feminista interessada na profunda transformação social.

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