Terceiro Reich na América do Sul e nazistas a serviço da CIA

Por Vitória Regina 
Arte por Marina Duarte
 

O Terceiro Reich começou a se desmanchar após a derrota da bloco nazista para a União Soviética na Batalha de Stalingrado (1942-1943). Em abril de 1945, a URSS iniciou a Operação Ofensiva que ficou conhecida como Cerco de Berlim – ou Queda de Berlim. A vitória do Exército Vermelho nessas duas batalhas significou o fim do Terceiro Reich e o término da Segunda Guerra, pelo menos na Europa. (1)

Após o fim da guerra, os Aliados – grupo formado pela União Soviética, Estados Unidos e Inglaterra para derrotar militarmente o nazifascismo – criaram um Tribunal com o intuito de julgar crimes de guerras e crimes contra a humanidade cometidos por pessoas que estiveram, de alguma forma, ligadas à barbárie do período nazista, especialmente entre 1939 a 1945.

Neste sentido, foi montado o Tribunal de Nuremberg, localizado na cidade homônima ao norte da Alemanha. Os julgamentos aconteceram entre 20 de novembro de 1945 a 1 de outubro de 1946. Posteriormente, o Tribunal Penal Internacional também foi criado. Entre os anos de 1946 a 1949, foram julgados os crimes de guerra cometidos por líderes nazistas, aproximadamente 117 acusações foram feitas contra eles.

A vitória dos Aliados no conflito mais sangrento do século XX e um dos episódios mais nefasto da História, significou o vencimento bélico da ideologia nazifascista. Embora o líder máximo do III Reich, Adolf Hitler, tenha se matado, nem todos seguiram o mesmo caminho. E alguns tiveram uma vida plena e outros foram julgados por seus crimes contra a humanidade somente 40 anos depois, como foi o caso de Klaus Barbie.

Em 1947, inicia-se outro episódio de extrema importância na compreensão do século XX: a Guerra Fria. A ameaça de um novo conflito – agora nuclear – entre Estados Unidos e União Soviética manteve o mundo sob pressão. Com o crescimento econômico e bélico da URSS, bem como movimentos de libertação nacional explodindo na América do Sul, Caribe, em África e Ásia, os Estados Unidos entrou em pânico ao cogitar ter os tentáculos imperialistas cortados e passou a incorporar nazistas em seu governo para atuarem como espiões. Para lutar contra o Kremlin e movimentos de esquerda, quanto mais genocida, melhor.

Os espiões nazistas que se alinharam ao governo norte-americano já residiam na América do Sul há algum tempo. Conforme aponta Meinerz (2014), houve um forte laço entre Argentina e Alemanha, majoritariamente estabelecido por Juan Carlos Goyeneche, líder dos nacionalistas católicos da Argentina. Goyeneche esteve diversas vezes na Alemanha e costumava se encontrar com figuras como Joachim Von Ribbentrop – ministro de Relações Exteriores; Heinrich Luitpold Himmler – líder da Schutzstaffel (SS); além de ter se encontrado com Benito Mussolini, Francisco Franco, António Salazar e Papa Pio XII.

Uma comissão criada em 1997 e que ganharia o nome de Comisión para el Esclarecimiento de las Actividades del Nazismo en Argentina, dedicou-se a investigar os estreitos laços entre o governo argentino – na época comandado por Juan Domingo Perón – com a Alemanha nazista. A Argentina facilitava a entrada e permanência na América do Sul.

O governo argentino organizava e pagava todo o processo de migração dessas pessoas. Organização que envolvia várias entidades: a Igreja Católica oferecia alojamento, coordenação e transporte; a Cruz Vermelha procurava a documentação e os consulados argentinos concediam o visto após uma entrevista com as autoridades da imigração em Buenos Aires (MEINERZ, 2014, p. 45 apud MEDING, 1998, p. 18).

Além de toda ajuda financeira, migratória e de moradia, a Comisión para el Esclarecimiento de las Actividades del Nazismo en Argentina afirma que semanas antes do término da guerra

[…] o governo Perón entregou a embaixada alemã oito mil passaportes argentinos e cem mil cartões de identidade devidamente assinados e carimbados, sem fotos ou impressões digitais (MEINERZ, 2014, p. 46).

Os nazistas que na Argentina residiam foram utilizados em diferentes ocasiões. Alguns foram trabalhar em fábricas militares, outros se adentraram no âmbito nuclear, também foram torturadores e especialistas em propaganda política.

Ainda em relação a Perón, o historiador Uki Goñi (2004) afirma que o argentino nutria intensa admiração pelas ideias do nazifascismo, além de ter sido um crítico ferrenho do Julgamento de Nuremberg, chegando até a defini-lo como uma ”infâmia”. Juan Perón trabalhou para resgatar o maior número de alemães de Nuremberg. E foi bem sucedido.

Em 1944, meses antes do término da guerra, Perón enviou um telegrama à Chancelaria do Reich dizendo que acreditava na vitória do Eixo. Todavia, os militares argentinos descartavam a possibilidade de uma vitória nazista. A esperança, na realidade, era que o Hitler pudesse dar fim à guerra e obter uma paz separada com os Estados Unidos e Grã-Bretanha e, desta forma, continuar a guerra somente com a União Soviética (2).

Para Uki Goñi (2004), os contatos estabelecidos pelo Terceiro Reich com países da América do Sul não era uma tentativa de expandir território, mas sim para exercer influência sobre uma área dominada ideologicamente pelos EUA. Além disso, existia a intenção de expandir o apoio político ao Reich fora da Europa.

Visualizando a futura derrota, os alemães começaram a preparar rotas de fuga, sendo as duas principais intituladas Rota dos Conventos e a Conexão Suíça. A rota mais utilizada, conforme explica Uki Goñi, foi a do Conventos. Esta rota contava com a ajuda do Vaticano, que estava disposto a fazer qualquer coisa para impedir o avanço do pensamento e do movimento comunista na Europa. Neste sentido, sacerdote como José Clemente Silva tinha o dever de elaborar e organizar o embarque de pelo menos quatro milhões de europeus à Argentina.

José Clemente ainda recebeu outro encargo: ocupar-se do transporte de personalidades especiais, carentes de documentação. Essa tarefa o pôs em contato, na Itália, com o ex-espião Reinhard Kops e com o bispo Alois Hudal, reitor da igreja alemã Santa Maria dell’Anima, em Roma, que integravam a rede. O bispo Hudal conseguiu por meio da rota dos conventos, trazer centenas de criminosos que deveriam ser julgados por atos cometidos durante o regime nazista e encaminhá-los à Argentina. O esquema era relativamente simples: Kops trabalhava em sintonia com o consulado argentino em Gênova por intermédio de tirolês, Franz Ruffinengo, engajado como secretário da Comissão Argentina de Imigração pelo fato de falar alemão e facilitar os trâmites burocráticos (MEINERZ, 2014, p. 48).

Entres as personalidades especiais que José Clemente Silva tinha a missão de garantir a segurança e o transporte, estava Nikolaus Klaus Barbie, o famoso açougueiro de Lyon. Klaus Barbie entrou para Schutzstaffel (SS) em setembro de 1935 e por uma década foi leal à Alemanha Nazista. A partir de 1940, Klaus passou a ser responsável pela captura e tortura de inimigos políticos e o do povo judeu. Posteriormente, em 1942, Klaus é enviado para Lyon (França) e assume a direção da Gestapo. À frente da Gestapo, Klaus Barbie foi responsável por capturar e torturar um dos nomes mais conhecidos da Resistência Francesa: Jean Moulin. No início de julho de 1943, Moulin foi brutalmente torturado pelo açougueiro de Lyon e não resistiu aos ferimentos, morrendo uma semana depois.

Como todo nazista, Klaus era completamente sádico e cruel. As torturas realizadas pelo chefe da Gestapo na França consistiam em amputação de membros, chicoteadas, mordidas de cães, fome, sede e afogamentos. Esses afogamentos eram chamados de ‘’banhos’’, onde a pessoa que estivesse sendo torturada era mantida debaixo d’água até desmaiar.

Após o fim guerra e a derrota alemã, enquanto alguns líderes nazistas eram julgados por seus crimes, Klaus conseguiu fugir e recebeu apoio financeiro dos Estados Unidos. Mesmo sendo responsável por mais de 10 mil judeus deportados para Auschwitz e diversas outras mortes, a ‘’maior democracia do mundo’’ e a terra liberdade contratou Klaus para o serviço secreto norte-americano. Além disso, o mesmo conseguiu exílio durante a ditadura boliviana.

Anticomunista ferrenho, Klaus passou a servir os Estados Unidos a partir de 1947. Em um dossiê sobre Klaus produzido pelo Exército dos Estados Unidos, o açougueiro de Lyon é descrito como uma pessoa honesta e ”fortemente anticomunista”. Os EUA esconderam o paradeiro de Klaus por anos, mesmo quando a França pediu para que os Estados Unidos extraditassem o nazista.

Klaus Barbie é tido como uma das pessoas que ajudaram a CIA a rastrear e assassinar Ernesto ‘Che’ Guevara na Bolívia –  um dos líderes da Revolução Cubana que libertou a ilha dos domínios dos Estados Unidos foi rastreado pelo governo boliviano, capturado, torturado e assassinado em 9 de outubro de 1967.

A partir da década de 1980, com a pressão de Israel e o término da ditadura boliviana (1964-1982), defender e proteger Klaus não era mais compensatório. Desta maneira, em 1983 ele foi extraditado para França e quatro anos depois, em julho de 1987, iniciou-se seu julgamento. É possível ver um trecho do julgamento e dos relatos daqueles que foram torturados por Klaus neste vídeo.

Durante o julgamento, Klaus esbravejou que deveria ser inocentado pois livrou a França de um regime socialista. Além disso, afirmou que só combateu a Resistência Francesa porque ”era guerra e a guerra acabou”. Klaus foi condenado à prisão perpétua por seus inúmeros crimes contra a humanidade e morreu na prisão de Lyon em setembro de 1991.

NOTAS:

(1) O término da Segunda Guerra Mundial é datado em setembro de 1945.

(2) Para aprofundar a leitura desse episódio, ver GOÑI, Uki. A verdadeira odessa. Rio de Janeiro: Record, 2004.

REFERÊNCIAS:

GOÑI, U. A verdadeira odessa. Rio de Janeiro: Record, 2004.

Gunterman, M. Nazistas entre nós. A trajetória dos oficiais de Hitler depois da Guerra. São Paulo: Contexto, 2016

MEINERZ, M. Operação Odessa: a fugra dos criminosos de guerra nazistas para a América Latina após a Segunda Guerra Mundial e os caçadores de nazistas. Mediações, Londrina, V. 19 N. 1, p. 41-60, 2014.

Vitória Regina

Marxista e psicóloga. Debate política, psicologia e cultura.

MARINA DUARTE

Ilustradora e quadrinista pantaneira. Feminista antiproibicionista interessada pela profunda mudança social.

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