A questão da fome na pandemia
- 28 de junho de 2020
Por Vitória Regina
Ilustração por Marina Duarte
A meu ver, enquanto houver um miserável, um homem com fome, o sonho socialista continua.
Ariano Suassuna
A pandemia causada pelo novo coronavírus tem apresentado de modo escancarado as mazelas e contradições do modo de produção vigente na sociedade em que estamos inseridos. David Beasley – responsável pelo programa de alimentação da ONU– em entrevista ao jornal inglês The Guardian, em abril de 2020, afirmou que as lideranças mundiais teriam pouco tempo para evitar uma epidemia de fome de dimensões bíblicas. De acordo com Beasley, a questão não seria somente lidar com pessoas indo dormir com fome, mas uma situação mais generalizada de condições extremas que deveriam ser enquadradas como estado de emergência. Durante uma reunião no Conselho de Segurança da ONU, David ressaltou a importância da ajuda prometida de U$ 2 bilhões para dar início ao combate à fome ao redor do mundo. Posteriormente, alegou a importância de mais U$ 350 milhões para distribuir suprimentos médicos e equipamentos de proteção individual (EPIs).
Segundo um relatório da ONU, é estimado que 265 milhões de pessoas passem fome até o fim deste ano – o que corresponderia a todas as populações de países como Brasil, Bolívia, Chile, Equador e Uruguai famintas. Este número pode ser dividido entre aqueles que precisam de um salário para conseguir se alimentar, os refugiados, como também pessoas em contexto de guerra e/ou crise econômica. Para exemplificar a tragédia, atualmente há 79,5 milhões de refugiados em todo mundo e 45 milhões de desempregados somente nos Estados Unidos. Pessoas que vivem em contexto de guerra – como no Iêmen, na Síria e na Palestina – também serão drasticamente atingidas, ora pelo vírus, ora pela fome.
Neste sentido, se a questão da fome continuar ignorada ou receber atenção e investimento baixos, após a pandemia lidaremos com a pior crise alimentar dos últimos 50 anos. Além disso, a pobreza global corre sérios riscos de aumentar pela primeira vez desde 1990, embora uma parcela minúscula da população continue a lucrar bilhões, como pontuei neste artigo publicado pela Badaró. Em um cenário catastrófico, 580 milhões de pessoas podem passar a viver em situação de pobreza em países do chamado terceiro mundo.
Os impactos da pandemia serão sentidos para além da economia e da alimentação. Um outro fator que preocupa é o risco de 80 milhões de bebês, espalhados por 68 países, não serem vacinados por conta da suspensão de serviços de vacinação durante o período de março a abril deste ano. Como reitera o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a ausência de vacinação pode aumentar os casos de sarampo, febre tifóide, febre amarela, poliomielite, cólera, HPV e rubéola.
Na América Latina e no Brasil, o cenário não será diferente. Antes do início da pandemia, o maior país da América do Sul já apresentava dados preocupantes. A Fundação Getúlio Vargas (FGV) divulgou um estudo mostrando que entre 2014 e 2018, aproximadamente 3,4 milhões de brasileiros passaram a viver na extrema pobreza. Este número aumentará em 2020, considerando que um dos impactos da pandemia será colocar mais 5,4 milhões de pessoas na extrema pobreza. Em números oficiais, tal situação significaria quase 19 milhões de brasileiros vivendo na miséria, ganhando entre R$ 145 e R$ 300 por mês.
Um rápido panorama sobre a fome no Brasil e na América Latina
As instabilidades econômica e alimentar estão longe de ser uma consequência direta e exclusiva da atual pandemia. Destacando o caráter cíclico das crises do capitalismo, não tínhamos nos recuperado da última grande crise de 2008 e o sistema econômico já trilhava caminhos para uma nova queda. Nesse sentido, a pandemia apenas acelerou o processo.
A crise sanitária também não foi a única responsável por milhões de pessoas famintas. No Brasil, o número de sujeitos integrando a pobreza e a extrema pobreza tem voltado a crescer. Como foi supracitado, antes da pandemia o Brasil já tinha 13,5 milhões de miseráveis. As políticas públicas orquestradas no país, guiadas por programas como o Fome Zero, Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), executados durante o primeiro mandato do governo Lula (2003-2006), tiveram importante participação na saída do Brasil do vergonhoso Mapa da Fome. Todavia, em 2019 fomos alertados que o país caminhava a largos passos para retornar ao Mapa, conforme indicou a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).
A extrema pobreza também ascende na América Latina e no Caribe desde 2015. De acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), 30,8% da população estava na linha da pobreza e 11,5% na extrema pobreza em 2019. Na Argentina, por exemplo, na gestão do liberal Mauricio Macri, a pobreza chegou a bater 35%, representando 15 milhões de pessoas e 3 milhões de argentinos foram considerados indigentes.
A forma mais adequada de se definir o capitalismo é pelo entendimento de que este é um sistema que tem como orientação principal o acúmulo do capital. O lucro importa mais do que a vida. Em 2016, 1,3 bilhão de toneladas de alimentos foram jogados no lixo – o que representa ⅓ de toda comida produzida naquele ano. Quando há oferta elevada, é comum que produtores queimem parte da safra, como tomate e batata, para que não desvalorizem.
A pobreza, a fome, o desemprego, o racismo estrutural e as diversas manifestações de violência são consequências do projeto de sociedade no qual estamos submetidos. Um modo de produção que só existe no antagonismo de classes produz suas contradições diariamente e precisa que milhões de pessoas vivam em situações indignas, pois dessa forma o lucro aumenta. Em concordância com a escritora Carolina de Jesus, ressalto que quem inventou a fome foram aqueles que se alimentam.