Badaró convida: Bruno Torturra

Cofundador da Mídia Ninja, editor-chefe do extinto “Greg News”, coapresentador do “Calma Urgente” e criador do Estúdio Fluxo, jornalista é o primeiro convidado do novo quadro de entrevistas da Badaró*

Por Vitória Regina e Norberto Liberator

2013 foi um ano turbulento. Da Turquia ao Brasil, as ruas foram tomadas por gigantescas manifestações em boa parte do mundo. Os movimentos ocorriam dois anos após o “Occupy Wall Street”, quando uma juventude sem perspectivas realizou uma mobilização de massas até então nunca vista no centro do capitalismo global, e dois anos após o advento dos eventos conhecidos como “Primavera Árabe”.

Hoje, mais de uma década depois, é fácil apontar que nada disso acabou muito bem e que, em alguns casos, a situação piorou e muito. Mas para quem vivia o momento, a perspectiva era outra. No Brasil, os protestos contra o aumento na passagem em São Paulo se confundiram com movimentos contra a realização da Copa do Mundo e mais um emaranhado de reivindicações, nem todas justas.

Um ano antes, setores de esquerda e liberais progressistas haviam se esforçado para barrar a indicação do pastor Marco Feliciano à presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Em todos esses casos, havia uma esperança relacionada aos incipientes smartphones e à possibilidade de se mobilizar a partir das redes sociais.

Entre as balas de borracha e os sprays de pimenta na Avenida Paulista, alguns jovens repórteres se aventuravam a transmitir, em tempo real, as gigantescas manifestações de junho de 2013. Era a Mídia Ninja, que tinha Bruno Torturra como um de seus fundadores. A Badaró bateu um papo com o jornalista, hoje à frente do Estúdio Fluxo, sobre mídia, política e meio ambiente.

Badaró: A atuação do jornalismo nas redes sociais hoje é bem diferente do que era nos primórdios da Mídia Ninja, da qual você foi um dos idealizadores. Quais mudanças você destaca como positivas e negativas nesse processo?

Bruno: Você fala de 2013 para cá, assim, nos últimos 10 anos? Olha, não é uma resposta muito muito breve, eu vou tentar ser objetivo primeiro, eu acho.

A vantagem, ela é a face da mesma moeda da desvantagem, eu acho. São efeitos positivos e negativos que vêm do mesmo processo. Acho que essa é a contradição muitíssimo complicada que a gente passa no mundo no mundo digital, hoje. 

É uma intensificação de processos num espaço tão curto de tempo, que a gente não tem tempo de cultura, tempo psíquico para se adaptar a isso e interpretar isso antes da nossa reação. Então assim, o lado positivo é a diversificação absoluta de vozes de localidades e algo também que, no jornalismo brasileiro, especialmente, era um deserto midiático fora dos grandes centros urbanos e de algumas capitais e tal. 

Então, isso eu acho extremamente positivo não só pro jornalismo, mas para comunicação pública como um todo; acho que também tem uma outra vantagem e irmã disso, que é a nacionalização de pautas locais. Então quando algo muito escandaloso ou acontece no interior do país no meio da Amazônia ou do Mato Grosso do Sul, num bairro periférico que não era coberto pela imprensa, isso vira a pauta jornalística e as pessoas se informam dessa maneira. 

Agora, o lado da moeda que é negativo do mesmo processo, é que democratizou também a possibilidade de cada vez mais gente desonesta, gente má intencionada, gente de má-fé ter uma performance midiática e se fantasiar de jornalismo, porque o jornalismo dentro de rede social, por não ter a estrutura física e a impressão, por exemplo… vocês agora estão enfrentando o desafio de imprimir, vocês veem que é uma coisa completamente diferente de ter uma revista digital. 

Mil outros orçamentos, habilidades gráficas, técnicas, que não estavam na conta. Antes esse filtro era pouco democrático para todo mundo poder ser jornalista. Ele também era um filtro que tinha um certo lado positivo, filtrava a gente de má fé assim de entrar tão fácil no mercado. E é uma confusão que se gerou em cima disso, que é: se a pessoa se apresenta esteticamente, como jornalista, muito pouca gente consegue perceber que ela não necessariamente vai ter a ética jornalística, então é muito fácil você posar de jornalismo, você difundir vídeos, mensagens, informações com o jargão do jornalismo com a cara de âncora, com a cara de apresentador, com a cara de repórter e tá fazendo uma coisa profundamente antijornalística. 

Então essa é a democratização que na época da Mídia Ninja, por exemplo, tá na essência do nosso nome, que era uma sigla que somos Narrativas Independentes. “Narrativas Independentes” hoje chegaram num paroxismo, viraram realidades paralelas, né? 

Nem mais a narrativa independente a gente tá vivendo em mundos separados, mundos de compreensão completamente diferentes e inconectáveis cada vez mais, e que nasceram de narrativas independentes. Eles apareceram como uma construção midiática antes de uma construção política. 

E isso a gente está vivendo; e o outro efeito que também é muito parente desse e que é perigoso e muito negativo por outros motivos e que as redes sociais, sem a gente perceber, capitalizaram. Elas viraram as maiores empresas do mundo hoje, né? Você vê Zuckerberg, esses caras todos, são alguns dos homens mais ricos do mundo; são algumas das maiores empresas da história do capitalismo. 

Mais do que empresas de petróleo, pode ter uma ideia de qual o dinheiro que eles pegaram? Eles manipularam e eles monopolizaram o dinheiro que era distribuído no modelo de negócio no varejo da imprensa, principalmente do jornalismo, e a gente ficou sem modelo de negócio claro. 

E a quebra do modelo de negócio do jornalismo tem consequências muito graves, não só para a profissionalização de pessoas, para o nosso ganha pão como jornalista, mas tem um outro efeito que a gente discute menos na verdade, que é não só a incapacidade do jornalismo se estruturar, mas a incapacidade de a gente produzir redações.

Por exemplo, eu consegui de alguma maneira ter uma vida sustentável sendo jornalista digital independente. Eu não imprimo mais nada do que eu faço. Eu tenho o meu programa independente, eu faço freelancer, eu me viro. E a Badaró possivelmente vai conseguir se virar, ela já se vira, vocês podem crescer. Qual que é a dificuldade? A dificuldade é que a gente matou a equipe jornalística.

Que é uma coisa pouco discutida e a redação é um lugar muito precioso, porque ele é não só a verdadeira escola de jornalismo, muito mais importante do que uma faculdade na minha opinião, porque você aprende na massa. 

Mas ela é o lugar de conflito ideológico entre repórteres, diretores de arte, editores, gente mais experiente, gente mais jovem, isso costuma produzir muita discussão e muita síntese, que em rede social é impossível de se ter. 

Todas as nossas conversas midiáticas, elas acontecem em público, com grande visibilidade e esse espetáculo é muito contraproducente para o amadurecimento do jornalismo.

Agora para não falar só de desvantagem, outra vantagem, e eu acho que ela é em potencial, ela não tá realizada ainda, mas existe um potencial dessa mudança se colocada no mundo, que é se a gente conseguir recuperar um sentido original da web e não das redes sociais na hora de a gente criar ecossistemas midiáticos um pouco mais interessantes, e que passem inclusive pela facilitação de microfinanciamento, de envolvimento do público no financiamento. 

Que te confesso, lá na origem da Mídia Ninja, esse era o meu plano. O meu plano não era tão editorial assim, porque eu sabia que cobrir rua, ativismo, isso a gente sabia fazer. Isso é difícil, mas é a parte fácil; a parte difícil aqui, que não estava colocada, é que eu queria muito que a Mídia Ninja fosse um experimento de sustentabilidade de um novo tipo de redação e que envolvesse o público como parte muito orgânica disso, e a gente foi atropelado pelos acontecimentos de junho e virou uma outra coisa. 

E aí esse experimento, nunca consegui realmente colocar em pé, e hoje eu acho ele mais fácil de fazer do que em 2013. Hoje por exemplo tem Pix, que é uma coisa que não tinha naquela época, uma ferramenta extremamente simplificada, sem tarifa bancária, sem complicação, sem cartão de crédito, tudo isso. Eu acho que tem um caldo aí que a gente ainda pode ajudar muito o jornalismo.

Você estava falando que nos últimos anos a Ninja foi essa referência de busca de informação, principalmente entre setores à esquerda. Você poderia compartilhar mais sobre essa experiência e como ela impactou para você essa cobertura de assuntos políticos no Brasil, principalmente ali a partir de junho de 2013?

Na minha opinião, assim, é que eu saí da Mídia Ninja em 2013 ainda. Então eu não participei muito das outras fases que a Mídia Ninja teve e do momento que ela vive hoje, que é um veículo com muita presença em rede social, muito descentralizado, com cobertura de esquerda muito clara e alinhada com movimentos sociais e tal. 

Claro que a gente já tinha muito desse princípio ideológico, dessa simpatia, digamos – não é nem uma aliança, mas era uma simpatia mesmo, com os movimentos de rua e tal. A gente tava na rua também. Mas o que eu acho que pra mim foi o mais impactante, e acho que foi por isso que ela ganhou tanta atenção, não era nosso alinhamento ideológico.

Era na quebra estética, na quebra tecnológica e na quebra narrativa que a gente conseguiu produzir num curto espaço de tempo. A gente realizou em tempo muito curto algo que tava muito em potencial na hiperconectividade, na rede social, que era a quebra do monopólio narrativo dos grandes grupos de comunicação e o uso da tecnologia e da conexão das pessoas, sem a mediação de grandes veículos verticalizados. 

A gente conseguiu produzir um outro tipo de cobertura mesmo, que não era só ser progressista; era estar inserido dentro da manifestação de uma outra forma, por exemplo em 2011. Eu acredito que nunca ninguém me questionou nisso, eu não tenho prova, mas eu não consegui encontrar ninguém que fez uma live de manifestação de rua antes da minha, que eu fiz em 2011, uma coisa muito louca. 

Foi um acidente, mas eu acho que ninguém fez uma transmissão de manifestação de rua antes da minha. A gente entendeu o celular como um aplicativo de transmissão ao vivo, televisivo. Antes das lives do Instagram, antes de o YouTube fazer live, a gente descobriu os primeiros aplicativos de transmissão ao vivo com o celular que ninguém tava usando, que era um aplicativo coreano.

Então acho que foi muito mais enxergar o potencial. E em muito pouco tempo virou mídia mainstream, hoje é isso. Eu vou, eu tô na rua, os repórteres da Rede Globo estão fazendo transmissão pra TV com seus celulares sozinhos sem câmeras, o que eu acho uma péssima coisa, tá? Porque tá precarizando o nosso trabalho, não é pra Globo fazer isso. 

É pra Mídia Ninja isso, não porque a gente inventou, mas porque a gente é precário mesmo. A gente é independente. A gente não tem dinheiro, a gente era ativista junto, mas agora a gente virou um instrumento, inclusive de precarização e um instrumento ou inclusive de farsa. 

Que é como os bolsonaristas, por exemplo, criaram grandes canais muito parecidos de mídia, de transmissão ao vivo no celular, [dizendo] “aqui, a rede Globo não mostra isso que a gente mostra”. Então acho que foi uma quebra técnica, ética e narrativa que veio junto com um momento de extrema atenção pública para o momento político. 

Então foi uma tempestade, a coisa se catalisou e explodiu, porque se a gente tivesse tido a visão… a gente já tinha essa visão desde 2011, na verdade. A gente vinha fazendo esses experimentos, essas transmissões de rua. A gente transmitiu o carnaval, por exemplo em 2012, eu tinha um talk show na rua. 

Eu entrevistava gente que passava na rua com o sofá inflável que eu botava no meio da Rua Augusta, no Minhocão. É que ninguém via. Tinham 30 pessoas vendo, 100 pessoas vendo, mas a gente sabia fazer, a gente sabia que isso era o futuro. Mas o que aconteceu foi que chegou o momento político em que a gente era o único grupo capaz preparado e com experiência para fazer o que a gente fez aí.

Aí a história virou, mas não é que a gente inventou isso. Uma coisa muito importante de falar: a gente simplesmente percebeu isso no momento em que pouca gente tava se aventurando nesse universo midiático, há mais de 10 anos, hoje há 12 anos.

Mas sobre a esquerda, eu acho que não sei se eu te respondi, mas eu não acho que mudou necessariamente a maneira como a esquerda absorve informação. Especialmente essas pessoas que eram mais militantes de esquerda mesmo, que tinham ideologia, porque nos últimos 10 anos também as pessoas foram obrigadas a se posicionar muito mais, né? 

Antes, em 2010, meus amigos não falavam que eles eram de esquerda; só a turma que vivia uma vida política. Todo mundo tinha simpatia, era eleitor do Lula, votava no PT em São Paulo, mas ninguém era parte da identidade, afirmar sua ideologia política, especialmente as pessoas de direita. Ninguém se dizia de direita, era proibido, assim.

E tragicamente, eu acho que essa revolução midiática ajudou mais mais a direita do que a esquerda, no saldo. Ajudou muito a esquerda. Forneceu voz a minorias, grupos periféricos, vozes indígenas, vozes marginalizadas, vozes militantes; a CUT hoje tem seu canal de YouTube com milhares de pessoas que assistem, e por aí vai. 

MST é a mesma coisa. Soube usar muito bem as redes sociais para se divulgar de maneira interessante, mas eu acho que o território que realmente conseguiu entender e florescer, mesmo politicamente, ascender ao poder de algum dos maiores países do mundo graças a esse processo midiático, foi a direita, especialmente a extrema direita. 

Que entendeu essa multiplicidade de narrativa não como um território de construção de consciência, mas como um território de confusão, um território de caos e um território de construção de realidades alucinatórias que predam no preconceito e nas ansiedades das pessoas.

É isso que eu acho que é. Então não é uma criação da Mídia Ninja, mas se tiver que ver, se tiver que entender algum público que mudou realmente a sua relação midiática, não foi a esquerda; foi a direita a extrema, não é a velha direita. Aliás, foi a direita mais velha, né? A que parece muito mais com os anos 20 e 30 do que com os anos 80 e 90.

Você trouxe várias reflexões importantes, inclusive a própria eleição do Bolsonaro é um reflexo disso que você falou. Durante o Café Filosófico Expresso, você mencionou que a internet é um sonho que se realizou em forma de pesadelo. Dialoga bastante com isso e olhando para trás é possível imaginar um cenário que as coisas pudessem se desenvolver [de forma] diferente. Como nós poderíamos descentralizar a produção narrativa e reduzir a influência de teorias conspiratórias, como você mencionou, por exemplo?

É uma pergunta muito difícil de responder, porque ela antes de ser especulativa é uma resposta filosófica, assim, quase impossível. As coisas poderiam ser diferentes ou a gente vive numa história determinista? No fim das contas as coisas só poderiam acontecer da forma como elas aconteceram? Eu não sei. 

A gente não tem máquina do tempo, a gente não tem os simuladores que correm simultaneamente pra ter grupo de controle. A história pro bem ou para o mal é essa aqui em que a gente tá enfiado. Intuitivamente, eu acho que poderia ter sido muito diferente se a gente não tivesse entregado tão barato a nossa atenção, o nosso foco, para empresas que fecharam a internet em vez de abri-la.

A gente caiu na ilusão de centralização das redes sociais. Porque eles entregaram um conforto narcísico em troca e tiraram da gente a possibilidade de algo que a gente não queria muito fazer, que era o trabalho difícil de construir uma internet pelas nossas próprias mãos.

Se você for pegar o que que a blogosfera era, o que que WordPress era, ele ainda existe, mas a blogosfera – e eu achava uma coisa potencialmente maravilhosa mesmo – era uma rede social. Ela só não era entendida como tal porque não era uma empresa que tinha uma central, um algoritmo, um dono e as limitações das possibilidades do que você poderia fazer na sua página. 

Era uma plataforma de construção de espaços digitais próprios. Você tava construindo um perfil seu, mas muito mais complexo. Você tinha que indexar suas informações. Você era obrigado a se projetar como um perfil, porque inevitavelmente a gente é uma projeção digital, mas esse perfil era um fenômeno midiático muito mais rico e muito mais interessante, você tinha que se pensar como um editor mesmo, como um publisher mesmo, da sua expressão midiática, jornalística ou coletiva, que seja. 

O que as redes sociais fizeram numa época de extrema democratização do acesso, e a gente menospreza isso, mas veio junto com a difusão do próprio wi-fi, que também é decisivo para isso, que é transformar a internet numa experiência cada vez mais confortável e passiva. Né?

Você não tinha que sentar mais numa máquina, você podia ficar na sua cama, jogada no sofá e depois vem o smartphone para piorar tudo isso. E esse conforto que eles nos ofereceram não foi só técnico. Ele foi um um conforto cognitivo para eles ficarem oferecendo recompensas de vaidade e narcísicas muito simplificadas, em troca de potencialidades que foram castradas e transformadas em mercadoria. 

Então certamente a internet seria uma outra internet e a nossa capacidade de nos organizar e produzir quebra de narrativa. Poderia virar algo que para mim é muito mais importante do que a quebra midiática, que é a capacidade de reorganização da sociedade. 

Que é uma coisa que a internet prometia e a gente abandonou por conta de rede social, porque o que que a internet prometia, e é algo que a gente esquece, mas que é quando você altera profundamente a capacidade de comunicação das pessoas, certamente você vai afetar profundamente a capacidade política dessa pessoa, porque a política é uma propriedade que vem da nossa capacidade de comunicação. 

A mídia impressa revolucionou a política, o rádio revolucionou a política, o telégrafo revolucionou a política, e isso são momentos quase que revolucionários na política. Porque as pessoas começam a se organizar de uma outra forma. Porque não é só uma construção midiática, uma construção organizativa, e o que as redes sociais fizeram é transformar a nossa política em performance midiática e não em construção objetiva. 

Porque na rede social, o que é recompensado com capital político, que é o like, que é número de seguidores e o vício, francamente, que a gente desenvolve com essas com essas máquinas, é muito mais algo performático do que algo digamos relacional de verdade, então poderia ser diferente. Mas poderia mesmo? Será que a gente não é esse ser humano mesmo? 

Será que o ser humano não é essa criatura vulnerável, frágil psicologicamente e tem esses oportunistas mesmo? É triste pensar, porque o Brasil já esteve na vanguarda desse pensamento. Nos primeiros governos Lula, o gabinete digital era de pessoas realmente visionárias que sabiam muito o que tavam fazendo em relação ao software livre e tudo mais. 

É muito doido como essas mesmas pessoas às vezes também caíram no encanto da rede social e hoje estão fazendo live no Instagram, no YouTube, meio que perderam a guerra, então disputando narrativa – que é uma disputa superficial. Ela é super importante, mas ela é superficial, a gente não tá disputando mais a estrutura da comunicação. 

Agora se podia ser diferente ou não podia, assim, é aquela coisa, né? Tipo e se o Bush não tivesse roubado a eleição de 2000? O mundo seria outro mundo. E foi por causa de 300 votos, assim, tipo todo dia eu penso nessas coisas e é um pensamento que você não tem que fazer com ele, né? É o que é, o que foi, mas eu acho assim, olhando para trás, é bem fácil uma piada essa essa coisa trágica. 

Mas olhando para trás, também, quando a gente lembra do nosso entusiasmo quando entra nessas nessas redes, talvez fosse inevitável. Talvez a pessoa que levantasse esse alarme, talvez o visionário que levantasse a mão em 2008 falando assim: “Larga esse iPhone, não entra no Facebook, não faz isso” fosse tachado de chato, de desagradável, de ludita, de anacrônico, de doido, de rancoroso de esquerda, de antigo, de contra tecnologia e tudo mais. Hoje é fácil falar.

Sim, e aí pegando o gancho, atualmente tem esse fenômeno de que as redes sociais têm esse potencial de mudar a produção de conteúdo. Sendo ali em primeiro lugar pelo algoritmo das redes sociais e depois por essa lógica que dominou aparentemente todas as outras redes, a lógica do Tik Tok. Como continuar se expressando em um ambiente que praticamente requer esse conteúdo rápido, genérico, superficial, mastigado, onde tem que ter dancinha?

Então, o primeiro é reconhecer que isso não é imposto. Você se submete. Tem uma diferença entre se render e entre ser imposto. Não é imposto, ninguém tá te obrigando a fazer isso, o que você vai pagar é um preço por não fazer isso, você vai ter menos audiência, menos reconhecimento no curto prazo. 

Mas você provavelmente vai construir uma audiência muito mais interessante do que grande. E eu acho que a gente tem que ter essa clareza muito grande como pessoa, como indivíduo e depois, como jornalista, como personalidade, como comunicador público. É o seguinte: você quer ter muito ou você quer ter uma vida? Você quer ter uma vida muito rica ou você quer ter uma vida interessante?

Eu prefiro ter uma vida interessante. Você quer ter uma audiência grande ou você quer ter uma audiência que te entende? Eu prefiro ter essa que me entende. Eu prefiro porque a minha ambição não é falar com cinco milhões de pessoas, minha opção é falar com pessoas que compreendem o que eu tô falando, que podem me trazer coisas de volta, que vão me questionar de maneira justa, honesta, inteligente e eu vou dialogar com isso dentro de mim e junto com elas. 

E isso, acredito eu, vai gerar um público que vai me sustentar, não só financeiramente, mas me sustentar jornalisticamente. Sustentar das outras coisas fora dinheiro, então o Tik Tok, ele é um formato que foi colocado, mas eu acho que ele faz parte de algo mais importante que eu acho que está por trás da sua pergunta, eu acho.

A dancinha vai e vem, daqui a pouco não é mais dancinha, mas um processo que está em curso, eu acho é a infantilização do discurso adulto. As pessoas estão falando cada vez mais que nem bobo. 

A infantilização do homem, infantilização da estética, uma infantilização do discurso, é uma infantilização da cultura, dos festivais de música. Eu fico chocado nessa experiência de show; hoje uma experiência profundamente infantilizada, às vezes nostálgica, mas às vezes simplesmente adolescentizada pra gente de 40 anos, gente de 45 anos, gente mais velha. 

O Alan Moore fala que o fenômeno dos filmes de super-herói são um exemplo de infantilização, né?

É muito impressionante. Isso é uma das coisas que mais me irrita. É um tipo de preconceito meu e tal, mas ao mesmo tempo ele pega num lugar muito real. Eu ando na rua, eu vou andar, assim, eu fico vendo esses homens de 50 anos de idade com camisa do Homem-Aranha, do Capitão América assim, eu acho muito estranho, cara.

E não tem nada a ver com HQ, que é um formato maravilhoso de expressão artística e tal. Tem a ver com o tipo de mitologia individual que tá se criando com essas narrativas, mas eu acho que é uma infantilização colocada e uma superficialização em nome de uma audiência que francamente não tá lá.

Falar com um milhão de pessoas também é falar com ninguém, sabe? Tem alguma coisa aí muito importante que a gente precisa ter noção, então assim, eu gosto de acreditar, acho que eu consegui fazer isso, eu nunca me rendi às depressões algorítmicas na minha expressão pessoal.

E todos os veículos e os jornalistas e o comunicadores que eu mais gosto e consumo, respeito e admiro e me alimento deles, também não. São pessoas que estão construindo isso e sempre foi assim. Às vezes existem momentos raros e super importantes de gente de muita qualidade virar mídia de massa, isso existe na música, existe no cinema, existe na literatura.

Mas isso não é regra. Isso não é uma condenação da humanidade como um todo, é uma condenação da massa, não da maioria. É uma condição do pensamento de massa. Em geral, ele precisa ser comprimido intelectualmente para que ele consiga ser uma coisa medíocre mesmo, uma coisa mediana que todo mundo absorve sem muito esforço. 

E essa ideia do esforço é central, do mesmo jeito que eu acho que você fazer um esforço para construir uma internet melhor foi o que a gente não fez, a gente não se esforçou demais para fazer isso. E para você se formar como um comunicador, você também tem que fazer o esforço. O esforço não é fazer uma dancinha; isso eu acho que é uma rendição, se não for o que você quer da sua vida. 

Mas se você está tentando comunicar alguma outra coisa, uma necessidade de expressão artística, política e ideológica, de gênero, qualquer outra coisa, e você tá de olho no médio, no longo prazo, é melhor você colocar esforço e não rendição. E aí, assim, você vai ter menos audiência. 

Mas é isso, a minha carreira individual é solitariamente aqui no meu canal e tal, é vídeo de uma hora e meia, duas horas, três horas, live de não sei o quê, entrevista sem corte de uma hora e meia, não sei o quê. Quem quer ver, vê; quem não quer, não precisa também e tá ótimo.

Mas é isso, quando eu convoco a minha audiência, ela está comprometida comigo porque ela sabe que eu tô fazendo um trabalho, não tô me vendendo barato, eu não quero número. Eu quero relação. É uma comunidade, não é um modelo que vai funcionar para todo mundo também.

Entendeu? Eu acabei achando esse nicho, aprendi a falar em público, eu sou individual; eu não faço mais reportagem, que é uma coisa muito chata; quando eu faço reportagem ninguém assiste. As pessoas preferem muito mais me ver falando sozinho do que investigando ou escrevendo alguma coisa de mais fôlego, e tudo bem; é o meu lugar que eu achei aqui por enquanto.

Mas essa lógica vai funcionar de maneira diferente para a Badaró; diferente para a Agência Pública; diferente para a Eliane Brum; diferente pra Laerte; diferente para todo mundo que tá tentando achar um lugar ao sol no universo comunicativo. Mas o que eu acho é isso, assim, e se tiver que responder de forma bem curta a sua pergunta, Vitória, não é imposto.

É uma rendição a alguém que não pôs uma arma na sua cabeça, você não precisa fazer isso, não. Tem uma lei que te obriga a fazer isso? Você pode estar no Tik Tok. Eu nunca entrei no Tik Tok, eu falei: “não preciso de mais uma rede na minha vida”, mas eu sei que você pode fazer no Tik Tok outras coisas. A dança vai simplesmente ser o mais fácil.

Mas é essa questão do algoritmo, né? Por acaso apareceu uma vez uma dança. Você clicou, pronto, é o resto da semana a plataforma entregando aquilo.

O meu Reels é assim. Quando eu entro lá e por acaso clico em qualquer coisa, uma pessoa fazendo exercício, uma mulher linda que apareceu lá e eu quero ver, então ferrou. É isso que vai aparecer para sempre. Mas aí eu fico… aí vem a sua relação íntima com o aparelho, com o algoritmo, né?

 Você tem que chegar, olhar e falar: “eu vou usar menos” ou eu vou falar que eu não quero mais ver isso, e você vai negociando com o algoritmo, o que eu acho deprimente. Mas eu acho que aí tem uma diferença entre comunicador, que vai produzir, e entre espectador, que é o que você vai clicar. Coisas diferentes também e é isso, são coisas muito apelativas, né? 

Isso aqui funciona. Porque tem uma questão que é super importante que eu acho que também estava um pouco dentro da pergunta que você fez. Que como é que você rompe a barreira do excesso, né? Como é que você se destaca no meio de um maremoto de informação?

Eu comecei minha carreira, era repórter de revista. E ainda bem que tive uma carreira muito legal e fiquei muitos anos lá e tal, e fiz boas reportagens, mas se eu fosse simplesmente um repórter meia boca, eu ia ser lido. Porque tipo, tinha tão pouca revista, e tão poucas vagas, e tão pouca coisa produzida, que quem comprava aquela revista ia gastar o tempo lá na minha reportagem, pelo menos sabendo o meu nome. 

Era mais imposto, digamos assim. Era imposto: estes são os repórterers que estão publicando no Brasil. Eram muitos, mas eu era um deles. Hoje em dia é o contrário, você tem que achar um jeito de as pessoas entenderem que você não só existe, como que você vale a pena os cinco minutos da pessoa, um minuto e meio, duas horas da pessoa. 

E aí que tem a diferença muito delicada entre apelar para o clickbait, para o thumbnail escandaloso, para essas coisas, ou você confiar que apesar do algoritmo, apesar do ruído, quem tá procurando vai achar e vai chegar em você por outros caminhos que não necessariamente algorítmicos.

Mas caminhos da cultura mesmo, das recomendações, de alguém que te repostou, de uma entrevista muito boa que você fez, que reverbera nas pessoas e as pessoas fizeram questão de espalhar esse conteúdo e por aí vai. É como eu acho que é o melhor caminho, para tudo na verdade. Não só para não só para jornalismo, para cultura no geral, para a ciência, para uma vida melhor, que seja, do que anabolizado com outros interesses, né?

Bruno, mudando agora de assunto. A gente falando muito sobre internet jornalismo, né? Como fazer jornalismo na internet e tal, e um outro assunto que você também tem relação que é cultura, rock. Em uma faixa do álbum “Homem Inimigo do Homem”, o Ratos de Porão traz o refrão “O que será de nossos filhos? Testemunhas do Apocalipse”. Recentemente você foi pai pela primeira vez. Diante dessas catástrofes climáticas recentes, o que você acha dessa frase? Você acha que isso se aplica, acha que a geração do Xavier, seu filho, vem anunciar o “Boletim do Fim do Mundo” literal?

Eu acho que a geração do meu filho tá… tá mal. Assim, eles vão enfrentar algo inédito na história da nossa espécie. E um dos raríssimos eventos na história geológica do planeta, que é a sexta extinção em massa. Devido a uma mudança climática radical e a uma relação tão destrutiva com o meio ambiente que é equiparável a um asteroide que bateu, mesmo, assim. 

Isso vai acontecer, já tá em curso e vai acontecer dentro das nossas vidas. A esperança que eu tenho, talvez esperança seja a palavra errada para usar, mas o lugar onde eu me pego para não me desesperar e para seguir muito feliz de ter ele e uma vida muito renovada dentro de mim e tal, uma felicidade que eu nunca senti também – então eu ao mesmo tempo que eu tô com mais urgência de ajudar nesse problema, estranhamente eu tô com menos medo do que eu tinha quando eu tava sozinho – vem de um outro lugar. 

Não é bem esperança, é o fato de que ele a geração dele, a tomada de consciência dessa geração vai ser dentro do problema. Eles nunca vão se enganar como a nossa geração se enganou. Eles não vão ter dúvida de que isso é presente, de que isso é o futuro, eles não vão ficar discutindo um grau e meio, dois graus de degelo, Rio de Janeiro… é uma outra coisa. 

É intrínseco na formação da construção da realidade material dessa nova geração. Então, não é a esperança, mas o lugar onde eu me pego, assim, é que a compreensão e a capacidade de lidar com esses problemas vai ser tão distinta e a urgência vai vir de um lugar não conflitante, como com a gente. Nós fomos apresentados ao problema da mudança climática como uma batalha de renúncia: “temos que parar de comer carne”, “parar de pegar avião”, para o mundo deles vai ser outro.

Vai ser um mundo de construção de um mundo necessariamente diferente que envolve não só sobrevivência, mas uma capacidade de pensar o mundo de maneira diferente e muito profunda. Eles não vão ter o luxo de não imaginar um mundo diferente do capitalismo. 

Eles vão enfrentar isso de frente e a nossa função como mais velhos, pais, qualquer outra coisa, ajudar a proteger essa informação, fazer o possível para que os danos sejam os menores possíveis, para que esse enfrentamento seja possível. Depois, outra questão que me também me apazigua nisso tudo, e que aí é por outros motivos, mais psicodélicos e espirituais mesmo, eu sei que no longo prazo o projeto civilizatório é uma causa perdida.

Isso aqui não vai durar muito tempo [risos]. É uma pena que acabe neste século, uma grande pena, mas as coisas perecem, as coisas morrem, as coisas nascem, crescem, morrem, mudam e isso não é uma tragédia. Isso é o processo evolutivo em si. 

Concorda que é mais fácil imaginar o fim da humanidade que o fim do capitalismo? 

Não para mim [risos]. Mas para o capitalismo é. Pro sujeito capitalista, porque é o seguinte: se você entende que você está submetido a um sistema capitalista,

você consegue imaginar o mundo diferente, mas o problema do capitalismo é que ele se ele se fantasia de realidade. Ele parece que ele é a regra natural. Parece que o mundo é assim.

Não é que as pessoas imaginam o fim do mundo mais fácil do que o fim do capitalismo. As pessoas acham que o capitalismo é mais real do que a lei da gravidade. As pessoas acham que o capitalismo é uma coisa assim inexorável. Ele é imanente, ele é o deus de Espinosa, assim, ele é uma coisa maior que Jesus, porque ele não depende nem de fé, pois ele é a realidade.

E aí você vai confundindo, achando que o ser humano sempre vai ser assim, que as coisas sempre vão ser assim. Você vai explicar para uma pessoa que nunca pensou sobre capitalismo o que é lucro, que é um conceito extremamente básico, se você explicar para uma criança analfabeta, ela vai entender. Não entra na cabeça das pessoas que lucro vem de uma relação exploratória, necessariamente.

Isso é uma formação ética e moral que condiciona a nossa imaginação ao ponto da gente olhar uma floresta e falar: “puta, é inevitável que o progresso vai devastar tudo aí, minério… se tem ouro ali, ele vai ter vai vai ter que pegar, não tem como não pegar”. Então isso para mim, eu acho que o problema é exatamente esse, que é um problema marxista original.

Você precisa primeiro criar consciência de classe para depois a luta começar, porque sem você entender que você é submetido a um sistema econômico que te condicionou a ser quem você é, você não tem como imaginar algo diferente disso. Você é um sujeito econômico antes de ser um sujeito biológico, por exemplo.

E eu acho que a grande questão da geração do Xavier, por exemplo, se tem uma coisa que eu vou tentar educá-lo para isso, é para antes de qualquer coisa, ele se entender como um bicho. Como um dos muitos animais que existem no mundo.

Como uma das espécies que tem no mundo, depois como um como um menino na sala de aula, depois como um estudante, depois como eleitor, depois como um profissional, depois como um pai, talvez, mas assim, a questão para mim é: enquanto a gente não colocar primeiro a construção simbólica nossa ser a construção do ser humano como um bicho, vai ser sempre mais fácil imaginar o fim do mundo mais fácil do que o fim do capitalismo, porque o capitalismo é a realidade primeira.

Você começa a levar a criança para um shopping antes de levar ela para uma trilha, você começa a mostrar para ela produtos antes de mostrar coisas vivas, ensina para ele carro antes de ensinar como é que um passarinho voa. Vou dizer que parece muito besta, mas eu acho que realmente isso define o problema que a gente tá passando. Então é mais fácil imaginar quase qualquer coisa do que o fim do capitalismo.

Olha que loucura! É mais fácil para as pessoas imaginarem se mudar para Marte do que acabar com o capitalismo. Olha que loucura, olha que loucura, sendo que no século XX, ilhas acabaram com o capitalismo. Assim, países continentais, ilhas, várias vezes fizeram isso no século XX e então o problema é bem profundo, eu acho, mas eu consigo imaginar e acho que vocês também, provavelmente com algum esforço. 

Mas a questão é essa, volto à pergunta anterior: a nossa principal incapacidade, eu acho, tá na organização. Como é que a gente se junta para fazer isso é o que tá mais difícil de imaginar; e isso eu não tenho resposta, porque a ideia de construção coletiva nossa tá muito muito abalada, muita abalada nos últimos 10, 15 anos. Isso se aprofundou muito, muito.

Nossa última pergunta, que elaboramos, é se você acredita que tenha havido comodismo por setores da esquerda em relação à gestão Lula, se faltam mobilizações para pressionar o presidente e balancear o poder de negociação do governo.

Sem dúvida. Sem dúvida eu acho isso, eu acho que não sou o poder de negociação, eu não acho necessariamente. Depende da pressão, mas eu não acho que necessariamente a nossa pressão vai dar capital político para o Lula negociar melhor com o Arthur Lira.

Por um problema. Por uma questão simples: o Arthur Lira não é um um jogador político de boa fé; e a má fé estraga tudo quando você põe atores de má fé com tanto poder no Brasil, que é o que a gente fez. Assim, a pressão não vai funcionar em cima do Lula nem na Avenida Paulista.

É em Alagoas. A população de Alagoas precisa se revoltar com ele. Aí ele vai se preocupar. Pode garantir. Mas ele foi o mais votado de Alagoas, e lá ele tá produzindo resultados, ele entrega o que as pessoas estão esperando que ele entregue e é isso aí, entendeu? 

Até porque ele emenda o orçamento secreto, do relator, o cara entrega mais do que o Lula pessoalmente para a população alagoana. E por aí vai e assim, o Pastor Isidoro é assim, um Feliciano é assim, todo mundo. 

Agora, independentemente do resultado político que você vai ter no Congresso Nacional, que é outra discussão,eu prefiro que o Lula perca as batalhas políticas que ele vai perder de qualquer jeito, mas pelo menos dentro de uma lógica de produção de consciência pública e de um debate e de afirmação de valores de esquerda morais. Não tô falando de valor assim de princípio de esquerda, tô falando em valores éticos que eu acredito que sejam majoritários.

Quando essa luta é abandonada antes da produção do conflito, se produz uma síntese péssima na política brasileira, que é: o Lula não só é o melhor candidato, porque ele é, mas que ele é o melhor possível, que é o que ele não é. E o problema da esquerda é que a esquerda confunde as duas coisas. Achar que o melhor candidato que nós temos é o melhor possível. E essas coisas não são verdade. 

A gente precisa pressionar não só para que o Lula faça o que a gente quer que ele faça, que não é isso o sentido da nossa pressão, mas é da produção de consciência pública, da emergência de novas lideranças, de produção de uma coalizão de esquerda que consiga penetrar esse discurso com autoridade dentro de camadas da população, para que em duas, três, quatro eleições, a gente consiga ter um Congresso um pouco diferente, que a gente consiga substituir o Lula. 

O Lula não tem 50 anos, gente. A gente vai votar nele de novo em 2026? Talvez a gente tenha que. Ele está trabalhando para que a gente não tenha outra alternativa. E é verdade, mas não conta comigo para não fazer essa crítica com medo de o Bolsonaro voltar. 

Porque assim, em grande parte, a ascensão do Bolsonaro teve a ver com o sonho baixo de uma esquerda brasileira que começou a se conformar com o resultados de índices econômicos, pura e simplesmente. Que são super importantes, necessários, mas que formaram uma sociedade muito conformada, politicamente muito conformada com, por exemplo, o poder evangélico, que tem que ser combatido sim. Tem que ser combatido e não tem jeito.

Como poder evangélico não tô falando dos evangélicos. Os evangélicos fazem o que eles quiserem fazer. O poder evangélico tem que ser combatido. Não precisa nem ser tão velho assim. É que eu sou velho de me lembrar da eleição do Jânio Quadros nos anos 80 em São Paulo, mas assim, é que eu era criança louca por política, sempre fui, mas as pessoas esquecem.

Em 2010 a Dilma subiu no palanque com Eduardo Cunha em igreja evangélica e o João Santana fez o slogan, botou a Dilma para dizer com a fonte do PT, com a estrelinha do PT no fundo, que é “feliz a nação cujo Deus é o Senhor”. E candidata à Presidência da República em 2010. 

Eu acompanhei discussões dentro de comunicadores do PT, na época em que eu era repórter na revista Trip e, preocupado com a eleição em São Paulo, fui militar e fui para reuniões para ajudar voluntariamente. Eu vi dirigentes de comunicação do PT que, hoje, um tá num ministério e outros têm canais influentes de esquerda, que entrevistam o Lula e tal, falando, defendendo que tinha que dar dinheiro para o Edir Macedo na Rede Record, tinha que anunciar mais neles, que era o único canal de TV que conseguia fazer frente à Rede Globo. Entendeu?

Tipo assim, precisa enfrentar a Rede Globo? Ô, se precisa! Até hoje precisa. Mas assim… a gente precisa combater Estados Unidos? Precisa. O Putin vai ser seu aliado? Melhor não. Cê vai se aliar com a Al Qaeda? Melhor não! Então assim, esse tipo de erro o PT comete e vai continuar cometendo. E é nosso trabalho, e a vantagem que tem uma comunicação dessa forma é que a gente é livre para fazer isso, eu não sou pago por ninguém.

Não sou marqueteiro político, mas eu acho que assim, o problema novamente, é profundamente muito paradoxal. É que nem a vantagem e a desvantagem de ter a internet para o jornalismo: o problema e a solução é a mesma moeda, você fica com ele na mão e não sabe para que lado vira, que é que se não fosse o Lula, o Bolsonaro tava reeleito.

Ponto. Se não fosse o Lula o Bolsonaro não tinha sido eleito. Também é verdade, então assim, ele tirou o Bolsonaro heroicamente, uma jornada do herói mesmo, mas o Lula também é um problema político brasileiro. Ele também é um monolito, que ao mesmo tempo em que abre caminho, fecha muito caminho. 

Ele fecha caminho para a emergência de novas lideranças, ele fecha a caminho para uma renovação política de verdade. Fecha a caminho na cabeça de muita gente que, de forma iludida ou não, tem ele como uma figura intocável e é nosso trabalho não só pressionar ele, que eu acho que eles lidam às vezes bem, mas na maioria das vezes mal, mas o que mais incomoda o PT e o próprio Lula é quando a esquerda tenta criar algo ao lado do PT.

Isso para eles é muito pior do que pressionar para ter uma ministra negra no STF, é muito pior do que cobrar ação na Amazônia, muito pior do que reclamar do ministério que só tem homem quase, entendeu? Eu acho que o que eles realmente não aceitam é que exista um caminho que não passe pelo centro do PT e pela burocracia do partido. 

E isso aconteceu, isso acontece com todos os movimentos sociais, com todo mundo assim, e esse é um desafio nosso como geração, como campo político e tal. Não aceita e eu vou te falar: o lançamento do Boulos com apoio do PT, que vai acontecer, eu acho que vai acontecer e acho muito difícil que eles voltem atrás, aliás quase impossível de fazer isso, primeiro é algo assim impensável, tipo, é uma uma concessão colossal para o PT fazer um negócio desses. 

Mas eles só estão fazendo isso porque eles sabem que eles não têm ninguém que ganha, que possa ganhar, ele sabe que o Tatto vai tomar um pau do Boulos de novo. Por isso que eles não correm de novo. Vão tentar emplacar o vice, vão tentar estar na base. Vão tentar emplacar todos os secretariados, tentar criar o próximo prefeito depois do Boulos, vão fazer o diabo, mas isso é porque o Boulos também é o mais petista dos psolistas, né?

O Boulos, para muita gente do Psol, cabe mais do PT do que no Psol. Eu sei porque eu conheço bem o Boulos. É um camarada meu e a gente conversa, não vou fofocar muito porque não faz muito sentido, porque são coisas que ele me falou privadamente, mas assim, ele toma fogo dentro do pessoal por gente que acha ele de centro, entendeu? 

Então assim, o Boulos também tem estrela própria e não só foi um grande aliado político do Lula de verdade, mas o Boulos produziu algo que o PT nunca conseguiu produzir, que é alguém de esquerda com base social no segundo turno de uma eleição de Prefeitura na cidade de São Paulo.

A Erundina não tinha essa base?

A Erundina tinha, mas tô falando fora do PT. Uma liderança não petista, que fez uma coisa que só o PT conseguiu fazer. O Boulos se provou antes de o PT falar: “tá, então a gente vai te apoiar”; mas eles não apoiaram o Boulos na última eleição, eles disputaram com o Boulos e disputaram duro.

Eles não queriam que o Boulos fosse para o segundo turno, tentaram botar o Tatto. Mas ganhou, então assim, isso vai acontecer, mas novamente: só vai acontecer porque eles não têm o plano B. Porque o Haddad é ministro da Economia e já perdeu duas, então assim, vamos deixar quieto. E por aí vai; eles não produziram uma liderança paulista, não conseguiram produzir.

Tem alguma consideração final, um recado que você queira deixar?

Não, já falei tanto, né? Não é à toa que não faço dança no Tik Tok. Se eu dançasse no Tik Tok seria balé contemporâneo, ninguém ia aguentar.

Beleza, gente? Depois vocês me mandem o resultado, tô super curioso.

Anúncio - Governo de MS

Norberto Liberator

Jornalista, ilustrador e quadrinista. Interessado em política, meio ambiente, artes e esportes.

Vitória Regina

Marxista e psicóloga. Debate política, psicologia e cultura.

*Entrevista realizada no final do ano de 2023

Compartilhe:

Relacionadas

Leave a Reply