Todos perdemos quando a esquerda normaliza Prestes

Tratar assassinato de garota de 14 anos como mero erro político vai na contramão da reivindicação dos direitos das mulheres e proteção à infância

Por Norberto Liberator

Luís Carlos Prestes (também grafado “Luiz”) costuma ser lembrado como um dos principais líderes da esquerda brasileira. A data de sua morte, na véspera do Dia Internacional da Mulher, costuma render homenagens. É o mês de aniversário de 35 anos da morte de Prestes, também o mês da mulher e da tragédia que será narrada adiante, que escolho para discorrer sobre um assunto espinhoso.

Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que a reivindicação a Prestes é justificável. Não é difícil se empolgar com a trajetória digna de romances de cavalaria na coluna que, posteriormente, passou a ser chamada por seu sobrenome, embora jamais tenha sido um movimento de esquerda. Sua opção tardia pelo marxismo e posterior liderança no Partido Comunista do Brasil (PCB, mais tarde “Partido Comunista Brasileiro”) acabou por levar o tenentista a uma jornada do herói, sendo admirado inclusive por adversários.

Dito isto, vamos aos fatos. As homenagens a Prestes – como o Memorial Luiz Carlos Prestes, inaugurado em 2017 em Porto Alegre, onde nasceu – não devem ser evitadas apenas por seus erros políticos, como a desastrada tentativa de golpe conhecida como “Intentona Comunista”, junto à Aliança Nacional Libertadora (ANL) em 1935.

O motivo para que não reivindiquemos Prestes tem a ver, como citei anteriormente, com a luta das mulheres. Ora, se uma de nossas pautas mais urgentes é a justiça em casos de violência contra a mulher, por que deveríamos exaltar um sujeito que ordenou, conscientemente, o assassinato brutal de uma adolescente? E pior, por que motivo relativizaríamos um ato tão bárbaro?

O caso Elza

Calculo que nem todos os leitores tenham ciência dos fatos relacionados à jovem Elvira Cupello Calonio, conhecida pelo pseudônimo “Elza Fernandes” (era comum que militantes comunistas alterassem seus nomes). Elvira, ou Elza, era irmã de Luiz Cupello Calonio, membro do PCB. Envolvida na militância por meio do irmão, Elvira passou a namorar Antônio Maciel Bonfim, o “Miranda”, cerca de 15 anos mais velho.

Após a tentativa fracassada da ANL (formada por amplos setores de esquerda) de tomar o poder em 1935, alguns dos militantes comunistas foram presos e outros passaram a viver na clandestinidade. Em janeiro de 1936, a polícia prendeu Elza e seu companheiro, Miranda. A historiadora Ângela Mendes de Almeida classifica a detenção como “a primeira prisão importante entre os comunistas brasileiros”. Duas semanas depois, Elza foi liberada e obteve permissão para visitar Miranda na cadeia.

A “Garota”, como era referida, levou alguns bilhetes e cartas do namorado aos membros do partido. Com outras prisões de militantes comunistas, o ir e vir de Elza gerou desconfiança. Embora não houvesse convicção sobre se tratar de uma informante – e a soltura se desse pelo fato de ser uma menor de idade –, a paranoia tomou o dirigente nacional. Luís Carlos Prestes trocava cartas com a direção do PCB a partir de sua residência no bairro carioca do Méier, onde vivia com Olga Gutmann Benario. Prestes chegou a dizer que, embora a caligrafia nas cartas parecesse a mesma de Miranda, haveria “inclinações em algumas letras” que, segundo ele, indicavam falsificação.

Com a justificativa de “proteção”, a adolescente foi sequestrada da residência de Francisco Furtado de Meirelles (posteriormente referência em estudos indigenistas, não envolvido no crime), onde vivia, e levada para a casa de Adelino Deícola dos Santos, o “Tampinha”, em Deodoro, para que fosse tirada de circulação. Em suas correspondências, Prestes foi irredutível quanto à ordem para execução de Elza, argumentando que revolucionários não poderiam se deixar levar por “sentimentalismos”. 

Honório de Freitas Guimarães (o “Martins”) e Lauro Reginaldo da Rocha (“Bangu”) argumentaram não ser esta a motivação, mas que assassinar Elza poderia “afastar o partido das massas” pelo potencial de comoção popular. As cartas eram trocadas ainda por Eduardo Xavier (“Abóbora”) e José Lago Morales (“Brito”), sendo que o último manteve a oposição à execução de Elza. O “cavaleiro da esperança”, então, acusou os pares de “medrosos” e “incapazes de uma decisão”.

Com a imposição da vontade de Prestes, no dia 2 de março de 1936, Elza foi surpreendida após preparar um café para os que julgava serem seus amigos. Com um fio de varal, Cabeção estrangulou a menina com a ajuda de Abóbora, Tampinha, Bangu, Gaguinho e Martins, uns segurando os braços, outros as pernas, outro tampando sua boca para que não gritasse. Seu corpo foi quebrado, colocado num saco e enterrado no quintal. Conforme comprovado por documentos posteriores, a menina tinha apenas 14 anos de idade.

De acordo com os depoimentos dos criminosos, Abóbora teria parado para vomitar, diante da brutalidade do episódio, e ao fim houve uma solenidade, em que Martins disse que haviam se livrado de uma “bandida”. Por quase dois anos, os assassinos respondiam a Luiz Cupello Calonio que sua irmã estava em segurança, provavelmente na União Soviética. No entanto, em 1940, o esconderijo foi descoberto e Luiz reconheceu o corpo, junto a um dentista que atendia Elza. Os criminosos confessaram a barbárie e uma onda de sensacionalismo anticomunista ainda mais forte se alastrou por meio da imprensa, confirmando o receio de alguns membros da cúpula partidária.

Consequências

Após o episódio traumático de reconhecimento e exumação do corpo da irmã, Luiz escreveu a Miranda, anunciando seu afastamento do PCB. “Soube também da confissão que elementos de responsabilidade do PCB fizeram na polícia, de que haviam assassinado minha irmã Elvira. Diante disso, renego meu passado revolucionário e encerro as minhas atividades comunistas”, afirma na carta, assinada como “teu sempre amigo”.

O próprio Miranda, de acordo com Marly Vianna (apud Almeida, 2024), foi “transformado em um trapo humano” após saber do ato de covardia de seus ex-camaradas. Desmoralizado por uma campanha difamatória dentro do partido, passou a colaborar com a polícia. Elisângela Alves de Almeida (2016) destaca que Miranda perdeu um dos rins devido aos espancamentos que sofreu na prisão. Tuberculoso, o ex-dirigente do PCB voltou à Bahia, sua terra natal, e faleceu em 1947.

Pouco se sabe dos últimos anos de Miranda, que voltou a ser Antônio Maciel Bonfim. Uma nota de falecimento, escrita pelo Padre Arlindo Vieira no jornal Correio da Manhã (edição do dia 7/5/1947), afirma que o militante se converteu ao catolicismo e que jamais se esqueceu da companheira, a quem se referia como “simples, ingênua e afetuosa” e com quem manifestava ter planejado se casar.

Cabe lembrar que, da desmoralização de Miranda, participaram comunistas icônicos como Graciliano Ramos. Em “Memórias do Cárcere”, o celebrado escritor afirma que “aquele animal do interior, sertanejo baiano, estava assim vazio, não tinha nada para comunicarmos além da importância cretina”. Ramos acusou Miranda de “se queixar demais” das torturas que sofreu.

Após a descoberta do corpo, em 1940, os envolvidos no assassinato de Elza foram presos. Prestes, que à altura estava detido por questões políticas, teve sua pena aumentada em 30 anos por ser o mandante do crime. No entanto, foi anistiado em 1946, em troca de apoio político a Getúlio Vargas. E apoio houve, mesmo após a entrega de sua esposa Olga à Alemanha nazista, onde morreu em um campo de concentração.

Um cadáver no armário

A gravidade do crime praticado por Prestes resultou em uma debandada do partido e deu à imprensa hegemônica argumentos de sobra para difamar os comunistas. Pode-se concluir que poucos políticos, da direita à esquerda, prejudicaram mais a propagação do marxismo e afastaram mais militantes – e simpatizantes – do que Luís Carlos Prestes.

O historiador marxista Jacob Gorender (1987) afirma que “a repetição de prognósticos calamitosos se revelou uma especialidade de Prestes”. Ainda de acordo com o autor, “Prestes é uma negação na arte da política, tanto quanto foi incapaz de empreender sequer um estudo marxista relevante sobre a sociedade brasileira”.

Especificamente sobre o caso supracitado, Gorender declara: “Quando afirma, quase cinquenta anos depois, que o crime brutal devia ser evitado, Prestes diz a verdade. Quando se isenta de culpa e joga toda responsabilidade sobre o Partido, mente”.

Chama a atenção que as buscas pelo caso Elza tragam escassos resultados por parte de autores de esquerda, entre os quais se destaca Gorender. Em portais, páginas oficiais de partidos e movimentos sociais, pesquisas acadêmicas, acervos, vídeos, podcasts, pouco se encontra, ainda mais em comparação às homenagens ao mandante de seu assassinato ou à comoção pelo caso Olga.

Para piorar, o crime, quando citado, em muitos casos é uma mera passagem tratada como erro político ou sutilmente justificada pelo contexto de perseguição política. Em outros, a condenação e anistia a Prestes são citadas, mas o motivo é omitido, levando a uma falsa conclusão de que se deram apenas por razões políticas.

Já em veículos de direita, há vastas menções ao caso. Este ponto leva naturalmente à tendência de descrédito entre um público progressista (“será que foi isso mesmo?”), mas também à nossa descredibilização. Afinal, por que apagar a história e deixar a narrativa nas mãos dos que querem nos desmoralizar?

Até quando seremos coniventes com a barbárie e evitaremos a abertura de feridas cobertas com o pano podre da injustiça?

Referências

Almeida, Ângela Mendes de. Episódios stalinistas no Brasil. A Terra é Redonda. Disponível em: aterraeredonda.com.br/episodios-stalinistas-no-brasil/#_edn66. Acesso em 13 de março de 2025.

Alves, Iracelli da Cruz; Lima, Thiago Machado de; Moreira, Oliveira et al. O célebre Miranda: aventuras e desventuras de um militante comunista entre a história e a memória. Práxis: revista eletrônica de história e de cultura. Disponível em https://l1nq.com/o-celebre-miranda. Acesso em 13 de março de 2025.

Brandalise, Carla; Marques Harres, Marluza. Brizola e os comunistas: os Comandos Nacionalistas na conjuntura do golpe civil-militar de 1964. Antíteses, vol. 8, núm. 15, novembro, 2015, pp. 178-202. Universidade Estadual de Londrina. Londrina, Brasil.

Gorender, Jacob. Combate nas trevas – A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1987.

Meio. Os documentos do caso Elza Fernandes. Disponível em canalmeio.com.br/2023/
10/07/os-documentos-do-caso-elza-fernandes
. Acesso em 14 de março de 2025.

Ramos, Graciliano. Memórias do cárcere. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953.

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