O que são retomadas indígenas e por que elas ocorrem em MS
- 14 de janeiro de 2025
Entre descaso e violência, guarani-kaiowá reivindicam terras que ocupam apenas 3% de MS, mas hoje estão tomadas por monocultivos de grãos e gado
Por Melissa Aguiar, Mylena Fraiha e Norberto Liberator
Barracos de lona, chão de terra batida e famílias vivendo em condições precárias, sem acesso regular à água potável, alimentação adequada ou saúde. Homens armados vigiam de perto, o que aumenta o clima de tensão.
O cenário lembra um campo de refugiados na Faixa de Gaza, mas, na verdade, é uma realidade brasileira: as retomadas guarani-kaiowá, em meio aos vastos monocultivos de grãos e gado de Mato Grosso do Sul.
Nesta região, o coração do “velho oeste brasileiro”, a produção de soja, milho, gado e celulose não serve para alimentar os moradores locais, mas é destinada à exportação. Enquanto isso, há décadas, nesse mesmo território, o sangue de gerações de guarani-kaiowá marca a violência com que o agronegócio se impõe na região Centro-Oeste do país.
Nomes como Marçal de Souza, Marcos Verón, Dorvalino Rocha, Estela Vera e, mais recentemente, Neri Ramos, estão entre aqueles que tombaram por reivindicar o direito de existir com dignidade e orgulho de ser indígena. Esse sangue é derramado em uma luta que clama pelo básico: o direito de ser, viver e existir em seu próprio território, o tekohá.
Em Guarani, tekohá é o termo utilizado para se referir aos territórios. Tekohá significa muito mais do que simplesmente terra. O prefixo teko representa as normas e costumes da comunidade, enquanto o sufixo ha tem a conotação de lugar.
Ou seja, o tekohá é o lugar físico – incluindo terra, floresta, campos, cursos de água, plantas e remédios – onde o modo de vida dos povos indígenas guarani e kaiowá se desenvolve. A terra é uma extensão dos povos indígenas e sua fonte de vida. Eles nascem, crescem, plantam, vivem e morrem nessa mesma terra.
Entretanto, o direito de ser e existir em seu território tem sido negado há anos, tanto pelo Estado quanto pelos fazendeiros que herdaram terras que, em algum momento, foram tomadas dos antepassados guarani-kaiowá.
Já as retomadas são áreas consideradas tekohá – territórios ancestrais – pelos indígenas sul-mato-grossenses e, por isso, ocupadas por eles para pressionar o governo brasileiro a promover a demarcação prevista na Constituição.
Algumas dessas retomadas podem reivindicar partes de um mesmo território indígena, como ocorre com as diversas retomadas na Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, na região de Douradina (MS).
Em agosto de 2024, três novas áreas foram reocupadas pelos indígenas: Yvy Ajherê, Kurupa’yty e Pikyxyin. Com essas retomadas recentes, são, ao todo, sete áreas ocupadas pelos guarani-kaiowá na TI, sendo a primeira retomada realizada em 2010.
E essa mesma região tornou-se o epicentro dos mais recentes conflitos entre indígenas e fazendeiros. No dia 3 de agosto de 2024, mais de dez indígenas ficaram feridos, alguns gravemente, depois de ataques de homens armados a retomadas da região.
A terra de Panambi – Lagoa Rica foi delimitada em 2011, mas nunca chegou a ser demarcada. Os Guarani resolveram, portanto, tomar a iniciativa e pressionar pela conclusão do processo. Em resposta, jagunços e funcionários de fazendeiros que se opõem à retomada, decidiu montar seus próprios acampamentos para atacar os indígenas e expulsá-los a área.
Naquele final de mês, cerca de 18 agentes da Força Nacional estavam em Douradina (MS), a 192 quilômetros de Campo Grande, para evitar o ataque dos produtores rurais aos indígenas. Esse foi apenas um dos exemplos de violência que se estende para outras áreas de retomada em Mato Grosso do Sul. Além disso, a violência também se manifesta na forma de descaso.
Alguns indígenas que vivem nesses locais sofrem com a falta do básico, como moradia e água potável. A água que bebem, muitas vezes, é envenenada pelos agrotóxicos das lavouras, especialmente aqueles que são pulverizados de forma proposital. O veneno é usado como arma química para expulsar os indígenas de suas terras.
Em outras situações, onde a violência é ainda mais escancarada, tiros de balas de borracha e armas de fogo são disparados, e barracos são derrubados por tratores modificados que se tornam “caveirões”.
Há também casos em que os fazendeiros pedem à Justiça a reintegração de posse, e é aí que surge outra faceta da violência do Estado contra os guarani-kaiowá, com o uso de seu braço mais violento: a Polícia Militar.
Além de enfrentar a violência, o preconceito e o desconhecimento de sua luta, boa parte da população urbana e não-indígena acaba reiterando o velho estereótipo de “invasores de terras”, quando, na verdade, as vítimas do roubo de terra são os povos indígenas.
Por isso, o termo correto é “retomada”, pois refere-se ao ato de “tomar de volta” as terras que originalmente pertenciam aos povos indígenas e foram invadidas por fazendeiros, especialmente durante a expansão agropecuária e o ciclo da erva-mate no Centro-Oeste brasileiro, que teve início no século XVII e se estendeu até o século XX.
Alguns historiadores também apontam que esse processo de expropriação iniciou-se no período pós-Guerra do Paraguai, com frentes econômicas que impactaram profundamente os territórios indígenas.
Uma das primeiras e mais significativas foi a exploração da erva-mate, liderada pela Companhia Mate Laranjeira. Historiadores indicam que o “ciclo da erva-mate” começou oficialmente em 1882, quando Thomaz Laranjeira obteve concessão para explorar vastas áreas de terras devolutas na fronteira com o Paraguai, hoje parte de Mato Grosso do Sul.
Hoje, essas terras pertencem a clãs políticos de Mato Grosso do Sul que, coincidentemente, também são as tradicionais famílias latifundiárias. Além disso, outra parte delas está nas mãos de arrendatários de terras indígenas, que frequentemente constroem suas fábricas e lavouras no interior do estado. Diante da lentidão e omissão do Estado brasileiro, os guarani-kaiowá arriscam suas vidas para retomar o que é seu. E, por incrível que pareça, o que eles pedem não é muito.
De acordo com o mapa de terras indígenas do Instituto Socioambiental (ISA), Mato Grosso do Sul possui 68 terras indígenas identificadas, que correspondem a 902.881,29 hectares – apenas 3% do território total do estado. Ainda segundo o ISA, há apenas 22 terras indígenas guarani (nhandeva e kaiowá) demarcadas no estado, totalizando 25.356 hectares.
No entanto, existem 10 terras já identificadas ou declaradas como Guarani, somando 185 mil hectares, mas que ainda não foram demarcadas. Há também 16 terras Guarani em processo de identificação.
E a grande pergunta, que até hoje permanece sem resposta para os Guarani-Kaiowá, é: até quando o Estado brasileiro continuará falhando em cumprir seu papel constitucional de demarcar terras indígenas?