É menino ou menina?

Festas para revelar sexo de bebês reforçam estereótipos de gênero

Por Carolina de Mendonça

Da descoberta de uma gestação até o nascimento, tende-se a passar um tempo considerável de alguns meses, contados por semanas. Esse período é marcado por diversas mudanças para a pessoa gestante, sejam físicas, sociais ou psicológicas, como também por eventos comumente conhecidos como “chás”. Na última década, entre grávidas e pessoas próximas, popularizou-se o Chá Revelação.

Transformando em um mistério o resultado do exame de ultrassom, cria-se um momento compartilhado de descoberta. Logo, construiu-se uma indústria em volta da temática e a prática acabou por sair do controle.

Iniciado como um momento de intimidade

Em 2008 a jovem Jenna Karvunidis tinha acabado de se tornar tia e estava em sua terceira gestação. Pela primeira vez, a gravidez havia avançado a ponto de conseguir identificar o genital do feto. Sentindo a família distante e pouco animada com a chegada da nova criança, Jenna decidiu contar (e descobrir) de forma diferente sobre o sexo do bebê.

A futura mãe fez dois bolos com diferentes recheios: um azul e um rosa. Ela os entregou à cunhada, junto ao resultado que indicava o genital do bebê. Jenna pediu à cunhada que levasse os bolos para um momento junto à família, para que, de forma lúdica, descobrissem simultaneamente se a mais nova criança da família seria menino ou menina. 

A situação foi relatada no blog que Jenna mantinha na época e em um fórum online, tomando certa repercussão e chegando a uma jornalista da revista “The Bump”, que decidiu fazer uma entrevista com a blogueira sobre a gravidez. Boa parte da conversa foi dedicada ao “chá revelação”. A revista, popular em consultórios ginecológicos, popularizou a descoberta do sexo de bebês em meio a uma comemoração, o que se tornou uma convenção esperada durante as gestações.

Tomando proporções extravagantes

Com a popularidade do Chá Revelação, muitos artistas e influenciadores digitais criaram verdadeiros espetáculos registrados e compartilhados durante a descoberta do sexo de seus filhos.

Em fevereiro de 2021, ainda durante a pandemia de Covid-19, a empresária Bianca Andrade (conhecida como Boca Rosa) e o ex-jogador de futsal Fred alugaram o Estádio do Maracanã para o anúncio. Os futuros pais, naquela data, optaram pela cor roxa para os elementos, por ser a mistura de rosa e azul, e utilizaram o telão do estádio para anunciar o nome escolhido para o bebê de acordo com o sexo. 

Também durante a pandemia, a cantora Simone Mendes e o empresário Kaká Diniz realizaram uma live de mais de três horas de duração, transmitida pelo Youtube, para compartilhar o gênero do segundo filho do casal. Também foi comemorada a marca de dois milhões de inscritos que a cantora alcançou em seu canal. O casal utilizou da divisão rosa (menina) e azul (menino).

O cantor Léo Santana e a dançarina Lore Improta, em maio de 2021, também anunciaram em uma live sobre o bebê que esperavam. A festa teve presença de pessoas próximas aos artistas e patrocínio da marca de chocolates Lacta.

Os influenciadores Viih Tube e Eliezer do Carmo, em outubro de 2022, também fizeram uma live para transmitir a festa para revelação do sexo de seu bebê. O evento teve a temática do reality Big Brother Brasil, do qual ambos participaram em 2021 e 2022, respectivamente, e foi assistido simultaneamente por mais de 400 mil pessoas. O uso das cores rosa e azul para marcar o sexo do bebê também ocorreu nessa ocasião.

O que se iniciou como uma comemoração reservada tomou proporções gigantescas. Eventos cada vez maiores e mais observados por terceiros têm sido produzidos.

Ultrapassando o limite da natureza

Com a busca de celebrações cada vez maiores, alguns acidentes têm ocorrido durante ou em decorrência dos Chás de Revelação. Em junho de 2019, na Austrália, um carro pegou fogo e explodiu, após ter seu escapamento utilizado para dissipar fumaça colorida anunciando o sexo do bebê.

Nos Estados Unidos, um dispositivo pirotécnico utilizado nesses eventos causou um incêndio florestal de aproximadamente 30 km, atingindo centenas de pessoas. Entre elas, 13 ficaram feridas e um bombeiro foi morto. O desastre se iniciou em setembro de 2020, momento crítico da pandemia de Covid-19. 

As águas não são poupadas em tragédias ambientais, criadas na busca do evento mais excêntrico. Em 2022, em Tangará da Serra (MT), uma cachoeira localizada em uma propriedade privada foi colorida para revelar o sexo da criança aguardada pelo casal e convidados. Multado, o homem responsável pelo evento disse em entrevista ao “Fantástico”, da Rede Globo, que se sentia  “perseguido por ‘ecochatos’”.

Também é frequente, nesses eventos, o uso de animais. Por simbolizar a chegada de um novo membro da família, os animais domésticos são chamados a participar. Contudo, buscando algo singular, algumas famílias optam por bichos menos comuns. Foram os casos de eventos ocorridos em 2018 e 2019, nos Estados Unidos, que utilizaram melancia “recheada” com corante e, respectivamente, um jacaré e um hipopótamo. As imagens levantaram debates sobre os riscos do consumo de corantes alimentícios por animais.

Reforçando a norma

As diferenças de gênero não se dão de forma natural. Apesar da diferença no sistema reprodutor entre os diversos corpos, a divisão que se dá na posição que esses sujeitos ocupam na sociedade a partir de órgãos e genitais foi socialmente construída e reforçada pela divisão de trabalho, doutrinas religiosas, legislação, formas de vestuário e, até mesmo, cores.

Há pouco mais de um século, uma revista americana de moda infantil publicava sobre a força inerente à cor rosa e delicadeza da cor azul, determinando-as como cores ideais para menino e para menina, respectivamente.

Naquele momento, crianças usavam majoritariamente vestidos brancos, em diversas partes do mundo, pois era a cor com maior facilidade para se perceber sujeiras e lavar com água fervente. Em países católicos, o azul era bastante usado por meninas, pois remete a imagens do véu da Virgem Maria.

A mudança que leva a associar as cores azul à masculinidade e rosa à feminilidade ocorre após a Segunda Guerra Mundial. Com a dominação cultural estadunidense, a divisão passa a se dar por essas cores.

Antes da compreensão da diferenciação entre homens e mulheres, já se impunha uma identidade de gênero, limitando a possibilidades de vivência da criança, que desde muito cedo se vê inserida no mundo binário.

As roupas são escolhidas a partir do genital. Se há um pênis, não se pode usar tons de rosa ou lilás. Vestidos ou saias são impensáveis. Se há uma vagina, as cores podem variar. Vestidos e saias são usados à vontade. Para demarcar quando ainda recém-nascido, em caso de uma vagina como genital, fura-se o lóbulo da orelha.

As brincadeiras também são observadas de perto para que não se confronte a binariedade. Meninos interessados em brincadeiras que remetem ao cuidado doméstico ou com bonecas, bem como meninas que não gostam dessas brincadeiras, despertam a atenção dos adultos em volta. As crianças têm sua possibilidade de construção de identidade podada, sua criatividade limitada e seus comportamentos intensamente vigiados.  

Nos eventos de “chá revelação”, tais imposições de gênero são determinadas e celebradas. As cores, os símbolos, os brinquedos, o nome que será registrado. O bebê ainda sendo gestado já é aguardado com demandas para serem supridas a partir de seu genital. Demandas que dificilmente serão cumpridas.

Como o caso da família de Jenna Karvunidis, pioneira do evento, que uma década após sua primeira gestação, contou em entrevista que se arrepende de tê-lo criado e popularizado. A proporção grandiosa e trágica dos chás revelação a frustraram. Ela contou também que sua primeira criança não corresponde aos estereótipos de gênero. A criança ensina a mãe sobre não haver motivos para dividir cortes de cabelo, brinquedos ou roupas entre meninos ou meninas.

Carolina de Mendonça

Carolina de Mendonça

Estudante de psicologia, amante de utopias e com grandes flertes com o cinema.

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