Busca pelo acesso universal à cultura: experimentos artísticos de Victor Seroque
Por Carolina de Mendonça
NOTA: Victor Seroque é uma pessoa não-binária – não correspondendo sua identificação aos gêneros feminino ou masculino. Por isso, ao longo do texto, são utilizados pronomes e adjetivos no feminino e masculino para referir à entrevistada.
Fazia muito calor na capital paulista naquele janeiro de 2017. Com gigantescos prédios, por vezes espelhados, que substituem suas áreas verdes por concreto, longos quilômetros de asfalto, maior frota de veículos automotivos do Brasil e altos índices de poluição, a cidade concentra ilhas de calor. Nesse mesmo mês, o então prefeito da cidade, João Dória (PSDB), que teve a seu favor o sentimento “anti-esquerda”, inflamado pelo golpe contra a presidente Dilma Rousseff (PT) meses antes e pela derrota do rival petista pelo executivo municipal, traz como proposta a criação de um “Muro Verde” na avenida 23 de maio – uma das mais movimentadas da cidade; substituindo os grafites na região, para melhorar a poluição e diminuir o impacto desse fenômeno.
João Dória vestiu um uniforme laranja dos funcionários da limpeza municipal de São Paulo, com direito à máscara de proteção, junto ao então vice-prefeito (Bruno Covas, também do PSDB). Orgulhosos, os tucanos pintaram de cinza as artes ao longo da avenida. A ação era parte do programa “Cidade Linda”, o qual não escondia repúdio às expressões artísticas, majoritariamente periféricas, que rompiam o padrão cinza e quadrado da metrópole.
A proposta ambiental de Dória era falha, e falsa, desde a sua criação. A cidade continua quente e poluída, e o projeto se demonstrou caro aos cofres públicos. Obteve êxito apenas em criar uma guerra contra os artistas de rua que foram invalidados, marginalizados e, quase, criminalizados. Além de enlutar os que passam pela avenida, por conta da descaracterização do ambiente.
Dentre as viúvas dos muros coloridos ao longo da Avenida 23 de Maio, está Victor Seroque, morador da zona leste de São Paulo. Artista visual, curador e arte-educador, o também apreciador do cachorro-quente com purê de batata conversou com a Revista Badaró sobre acesso à arte, seus processos de criação e, evidentemente, sobre a cidade de São Paulo – suas, gigantescas, contradições e excêntrica beleza.
Cultura logo ali, mas não para todos
São Paulo concentra grande porcentagem dos estabelecimentos voltados à cultura do país. A arte também se faz presente nas ruas da cidade, com instrumentos, danças e performances. Entre festivais de cinema gratuitos, museus com entradas por menos de R$ 5, peças de teatros, shows ao ar livre, bibliotecas com acervo imenso, há sempre o que fazer na cidade da garoa. Ao menos, em teoria.
Os bairros centrais monopolizam tais atividades, e num raio de poucos quilômetros, funcionam dezenas e até centenas de espaços culturais, simultaneamente. Outras regiões, como a de Victor, não têm essa possibilidade. “Moro em um dos únicos bairros de São Paulo, se não me engano são dois ou três, que não tem nenhum órgão cultural. Tem absolutamente nada assim! Uma biblioteca, uma casa de cultura, uma fábrica de cultura. Se alguém não fizer isso antes de mim, eu quero muito fazer um centro cultural e trazer mais pessoas pra cá”, diz a artista.
E ir ao centro não é uma tarefa das mais fáceis para o paulistano. Pela sua extensão territorial e a falta de planejamento, aliada ao processo de gentrificação, a mobilidade urbana pode durar horas – em média, três por dia, geralmente percorridas por quem mora nas periferias da cidade.
Além do tempo, o deslocamento também pode custar muito dinheiro, seja com gasolina e estacionamento, passagem de transporte público ou tarifa do aplicativo de transporte privado. Esse tipo de passeio costuma ser longo, então é importante se preparar para se alimentar, já no centro de São Paulo, os restaurantes e lanchonetes não costumam ter valor popular.
Victor Seroque só entrou no Museu de Arte de São Paulo (MASP) aos 18 anos, após iniciar uma graduação em Artes Visuais em um bairro central. Sempre que tinha tempo livre, e quando a entrada era gratuita (comumente em dias úteis, como terça-feira), ia aos espaços culturais na região da Avenida Paulista. Entretanto, a disponibilidade e a gratuidade não são suficientes para estar nesses lugares. Em certo ponto da entrevista, Victor se posiciona como entrevistador e pergunta: “já teve a experiência de andar por São Paulo de chinelo?”.
Após uma resposta negativa, aconselha que em uma eventual visita à cidade, não se faça isso. De forma enfática repetia que “é insalubre”. O primeiro ponto, óbvio, é a (falta de) segurança em expor a pele em calçadas potencialmente contaminadas. O segundo, se dá pela segregação racial, de gênero e de classe. “Se você entra no museu de chinelo é aquele rolê de você ser analisado de cima a baixo o tempo todo. Falo com eufemismo. Se você for uma pessoa racializada e tiver ali dentro você vai ter esses olhares. Se você for uma pessoa que se veste de forma diferente, você vai ser olhado dessa forma.” relata a artista.
Victor, no entanto, que usa barba (marcador tido como masculino socialmente) e tem pele clara, conta que pessoalmente nunca passou por situações que recebeu olhares hostis nesses ambientes. “Por ser uma pessoa lida como homem, por ser uma pessoa branca é muito fácil. Ninguém vai presumir que você é pobre e tá vindo da periferia”. Por ter começado a frequentar ambientes considerados voltados a uma elite intelectual, quando já cursava o ensino superior, a sensação de não se adequar a esses locais não durou muito. Victor compreendia a importância desse espaço e seus propósitos em estar nele.
O sentimento de não pertencer muitas vezes é provocado, também, pela curadoria das exposições artísticas. Victor, que também trabalha nesse campo, relata que chega a fazer piadas com amigos sobre a complexidade de textos que acompanham as exposições. “Às vezes, aquela exposição é o primeiro contato que a pessoa tem. Aquele texto curatorial, já coloca ela numa posição de desconforto”.
Apesar de não ser uma área de interesse em primeiro momento para a artista, ao longo da graduação, percebeu que é um trabalho importante em sua busca pela arte acessível. “Na curadoria, tem uma janela de conteúdos de coisas que a gente pode se munir para conseguir chegar nessas pessoas. Conseguir chegar em todo mundo, respeitar o tempo e a formação das pessoas” relata a curadora.
Outro trabalho importante no campo artístico para ampliação do acesso é a arte-educação, a qual Victor experimentou enquanto estagiário. Artes, matéria muitas vezes subestimada nas escolas, representam à Victor uma “brecha” para chegar nos alunos de forma mais dinâmica. Para ele, isso pode ser feito utilizando os conteúdos e interesses que os próprios alunos trazem, para desenvolver as aulas.
Arte além dos espaços institucionais
Processos similares de dificuldade do acesso à cultura, como em São Paulo, ocorrem em todo país. Nesse contexto, uma importante forma de ter contato com a arte nas cidades, é através do grafite. “O grafite no Brasil, no geral, permite conhecer onde quer que você more, a sua quebrada, de uma forma muito diferente”. Para Victor, essa expressão artística faz parte da “impressão digital” dos espaços urbanos.
Grafitar é uma tarefa que demanda muita disposição e poder de negociação. É preciso sair de casa com seu material e sua força de trabalho, e bater na porta daqueles imóveis que tenham uma superfície interessante. Dessa forma, apresentar seu trabalho e sua proposta para o responsável pelo espaço. Somente então, após um acordo, se pode começar a pintar.
E por vezes, pouco depois, esse trabalho é apagado. Victor descreve ser frustrante a situação que costuma acontecer por três motivos: a escolha pessoal do sujeito que foi negociado o espaço para pintar e posteriormente resolveu modificar o imóvel, o que remete a efemeridade do trabalho; um outro grafiteiro atravessar o trabalho, o que ocorre em caso de desavença; e publicidade, este último necessita de uma permissão da prefeitura local, e demonstra uma validação da propaganda sobrepondo ao reconhecimento dos artistas.
A arte próxima às pessoas é um dos pilares do trabalho de Victor Seroque. No grafite, se encontra essa possibilidade de atingir um público diverso. Afinal, estando na rua, a obra irá se comunicar com todos os passantes. O grafiteiro trouxe o desejo que seu trabalho atinja uma parcela da população que não costuma ter acesso a espaços como galerias e museus. Para alcançar tal público, considera ser necessário um entendimento diferente para transmitir seu trabalho “mais prático, se pá, de fazer esse exercício de sensibilidade, olhar ao seu redor, saber se comunicar e com quem você quer se comunicar.”
Seroque percebe esses dois eixos como importantes estratégias para a acessibilidade da arte – virtual e presencial. “Acho que o digital tem um alcance, um potencial muito grande, de você conseguir expor o seu material, suas ideias, toda sua produção”. Como referência nesse meio, trouxe a revista Decolonizarte, que utiliza da internet para conectar público e artistas contemporâneos, para além dos valorizados nos meios acadêmicos e mercadológicos. O veículo tem um sensível trabalho jornalístico e de curadoria.
E o presencial, de conhecer as pessoas em volta – o que elas necessitam ou o que elas gostam de consumir. Nesse aspecto, se inspira no trabalho do “O Corre Coletivo”, que é voltado para a educomunicação, com influência do grafite e jornalismo, e tem um trabalho presencial utilizando da linguagem dos quadrinhos. Durante a pandemia distribuíram revistas “Inimigo Invisível” voltada a conscientização do coronavírus – como pode ser lido nessa entrevista.
Possibilidade de criação delimitada aos materiais ao alcance
Para criar artisticamente, é preciso de capital para ter acesso aos materiais necessários. “Não tem como fazer sem ter com o que fazer. Às vezes, você tem na sua cabeça o que você quer criar, mas um dos meios possíveis de criar aquilo”, explica a artista ao falar do processo de escolha dos materiais. Victor trouxe como exemplo o artista Alexandre Orion, que cria murais a partir da limpeza da fuligem nos muros da cidade. Saída criativa, e insalubre, para lidar com os percalços financeiros individuais, e falta de financiamento dos órgãos de governo.
Na arte apagada por João Dória, Victor encontrou um senso de coletividade intenso. “Tem uma divisão de materiais, cada um leva o que tem. Se você tem corante, você leva. Se você tem um spray, se você tem um pincel. O é uso coletivo”. A artista também experimentou tal prática em residências artísticas. A última que vivenciou ocorreu na ocupação Mateus Santos, um espaço na periferia da zona leste.
Aquisição de materiais artísticos são determinantes para criação. É preciso ter dinheiro para investir e, muitas vezes, não há garantia de retorno em curto ou médio prazo. “É super arriscado e tem esse fator de já ser arriscado por si só, mesmo se você vem de uma família que tem uns privilégios financeiros. Quando você já vem de uma família que tem esse fator de ter impedimentos financeiros, pesa muito”, conta Victor. Como forma de lidar com essa dificuldade, a artista buscou outros empregos para sustentar seu trabalho artístico. “Era para o trabalho tá te sustentando não pra você sustentar ele” comenta com pesar.
Quando adolescente, Victor costumava desenhar fan art de personagens de HQs, em uma mesa digitalizadora que ganhou em 2014, já ultrapassada na época, de um fotógrafo amigo da família. Retornou a ela quando teve necessidade, ao passar para a primeira edição da PerifaCon (feira de conteúdo nerd realizada na periferia) e percebeu não ter nada de “cultura GEEK” na produção. Precisando fazer desenhos variados, colocá-los à venda e sem material em mãos, criou através do digital “no susto”. A experiência se tornou importante para a artista se comunicar com seu “eu” adolescente.
Desde então, ele criou obras no formato digital. Como quando tem acesso a materiais, cria na linguagem tradicional. O artista no momento não tem condições de investir em novos equipamentos. No entanto, por estar em uma fase explorando em seu trabalho artístico, não sente necessidade dessa mudança.
Olhar subjetivo sobre as coisas mundanas
Mesmo em fases mais experimentais ou mudando o formato, é fácil reconhecer a identidade no traço de Victor Seroque. Um dos motivos é a técnica da hachura que a artista se aprofundou bastante e reconhece estar presente de forma mais explícita ou implícita em seus trabalhos.
Buscando formas de transpor para as obras sua miopia alta (11 graus) Victor estudou formas de desfocar e desconstruir as imagens se vistas de perto, sendo nítidas a partir de uma distância. “A imagem é muito fragmentada, o preenchimento é muito fragmentado, tem muitos pontos brancos dentro do que era pra ser o preenchimento preto. Eu acho que essa foi a minha forma de traduzir essa questão, que é ser muito míope, pra alguém que não vive com essa situação poder ver isso a partir de outra ótica, outra forma. Meio que um exercício de colocar a pessoa nessa posição” explica, de forma quase existencial, sobre o método.
A técnica se faz permanente na criação de Victor, porém quanto às temáticas, a artista compreende que teve diversas fases. “Teve uma época que eu gostava muito de desenhar animais e coisas não-humanas necessariamente. Cada pessoa tem um trejeitos, um conjunto de traços. E animais, parece que exigem um traço um pouco mais abrangente. Não é aquele elefante, é qualquer elefante. E eu gostava um pouco disso, o quão vago era.”
Quando notou mais conforto em criar retratos, passou a fazer bastante entre 2017 e 2019. Não havia uma justificativa poética, apenas gostava de retratar as pessoas ao seu redor, por diversas vezes convidando amigos para serem modelos através de fotografias. Victor confessa que não gosta de desenhar cenários, e busca contar sobre os lugares a partir de pessoas. No ano retrasado, buscou arriscar desenhos relacionados a ambientes, e em 2020, fez diversos trabalhos que retratavam espaços a partir de detalhes.
Entre as produções recentes, Victor destaca “Isolamento.” (2020), como uma que tem bastante carinho. “Aquela obra foi, literalmente, eu no banho, vendo um mosquitinho e falando: ‘vejo isso todo dia’. Toda vez que vou tomar banho, tem um mosquitinho desse, no box”. Victor ressalta que houve uma recepção positiva após a publicação do desenho, de se associar em um momento banal. “Esse processo de você dar qualquer tratamento artístico para alguma coisa, parece ter o potencial de revelar, trazer uma intensidade que não necessariamente aquilo tem. Mas, você atribui intensidade para aquela coisa”, explica a artista.
Seroque se encanta com o potencial da arte conectar o criador e sua obra. Cita como exemplo o artista, e amigo, Brednatella, o qual Victor alinha a cor azul-cobalto e o ato de se perceber em um chuveiro ao tomar banho, por conta do quadro “Banho” (2020). “A pessoa atribuiu um negócio que é tão dela. Ela dedicou tanto tempo e tanta energia em criar algo que representasse isso que é como se ela tivesse pegado isso pra ela” ressalta, alegremente. “Agora a pessoa vai olhar e vai lembrar de mim. É muito gratificante.”, completa o artista.
Durante o último ano, Victor percebeu estar mais livre em sua criação, chegando a romper certos padrões que buscava em seus trabalhos. Por vezes, se sentia preso a criar, de acordo com coleções que se propunha a fazer. Nesse período, utilizou de novas cores e pintou novas coisas, como forma de experimentar. “Foi uma prática incrível, consegui produzir muita coisa com valor emocional. Muita coisa com valor estético, que eu não tinha percebido antes, ou que eu não tinha arriscado fazer”, narra, com leveza.
Atualmente, o artista explica que está em um “quase hiato”. Retornou ao digital, mas cogita investir dinheiro (que não tem no momento) para a compra de novos materiais. Ela compreende que a arte digital ainda possui barreiras para ser validada como “linguagem artística” no meio institucional, já que não há cópias originais com “aura”.
Trabalhos da periferia paulistana no “Carrousel Du Louvre”
Nas redes sociais, Victor viu algumas vezes o anúncio de inscrever seu trabalho no Carrousel Du Louvre, uma das maiores feiras de arte da Europa, situada em Paris. Até que em um momento, resolveu abrir por curiosidade.
A possibilidade era incrível e seria uma importante forma de validação, no meio artístico e até para o público leigo, já que estaria em uma importante exposição parisiense. Porém, o investimento seria muito alto. Depois de conversar com a namorada à época, e com a curadora Cristina Bernardini (com quem teve a feliz coincidência de ter crescido em um bairro vizinho ao seu), ele vislumbrou a oportunidade de retornar a produzir, por meio da participação no evento.
Ao publicar em seu Twitter sobre essa vontade, a informação chegou à jornalista Larissa Darc. Ela era correspondente da Agência Mural, um veículo de jornalismo que realiza cobertura nas periferias de São Paulo e Salvador. Victor aceitou prontamente conversar com a repórter.
A entrevista saiu no blog Mural, parceria da Agência Mural com a Folha de São Paulo, e teve uma repercussão muito maior do que Victor poderia esperar. A matéria foi veiculada na TV do Metrô. “Que isso aí já é status de subcelebridade em São Paulo. Cê tá na TVzinha do metrô, já meio caminho andado para ser VJ da MTV”, explica jocosamente o jovem. Com o alcance, o artista conseguiu vender mais obras, além de receber propostas para oficinas e exposições em instituições na capital paulista.
Nas imagens veiculadas na reportagem, Victor aparece com camisa do Corinthians, time o qual nutre uma paixão. Para ele, isso reforça a importância da representação periférica além dos estereótipos negativos. “O cara não tá só saindo da zona leste, ele tá saindo da zona leste e é corintiano. Humaniza mais. Não sou um boyzinho centro. Podia ser seu vizinho, podia ser você e pode ser você!”, conta o torcedor.
Seroque relata que não conseguiu estar presencialmente no Carrousel du Louvre, realizado na capital francesa, por conta do alto custo da viagem. Contudo, as fotos enviadas pela curadora foram mais que satisfatórias. “Muito mais que a exposição e a oportunidade em si foi o que ela trouxe”, completa.
Poucos anos após o prefeito de sua cidade iniciar uma perseguição à arte da periferia, Victor Seroque foi validado enquanto artista por falar de sua “quebrada”, em uma instituição europeia. Em meio a apagamentos e construções coletivas, o artista busca em seus diversos experimentos, o acesso universal à arte e à cultura.