A recepção de Jorge Amado na União Soviética

 Jorge Amado foi bem recebido pela cultura soviética em todos os seus estilos; escritor brasileiro foi aclamado quando servia ao realismo socialista e acolhido quando resolveu abordar outros temas

Por Vitória Regina

Jorge Amado (1912-2001) é um dos autores mais consagrados do Brasil. O baiano está no topo de escritores mais traduzidos, além de liderar a lista de adaptação ao cinema, teatro e televisão. A popularidade internacional do romancista do povo não era comum aos escritores brasileiros — não naquele período. Inclusive, o escritor chegou a receber um certificado do Guinness World Records, em 1996, por publicar 32 romances em 48 idiomas e em 60 países.

A popularidade da obra amadiana não respeitou os limites das fronteiras brasileiras e se estendeu até à União Soviética. Suspeita-se que Jorge tenha sido o escritor estrangeiro mais lido em todo o bloco soviético (1). Neste sentido, acabou tendo forte influência na cultura popular soviética e russa. O atual presidente do país, Vladimir Putin, afirma ter sido um capitão da areia (2), considerando que esse termo é utilizado na Rússia como sinônimo de criança de rua (SATO, 2019). Jorge foi acolhido e adorado pelos soviéticos, bem como foi modificado e lidou com diferentes problemas de tradução.

Com a Revolução de Outubro de 1917, as obras literárias de cunho progressistas e socialistas ganharam maior espaço no país, principalmente após a década de 1930, quando as editoras privadas foram extintas e as publicações ficaram centralizadas em editoras estatais. No entanto, embora houvesse um incentivo às traduções de obras que se aproximassem da realidade do povo soviético, algumas obras acabaram sendo modificadas em razão do moralismo do tradutor, Iúri Kalúguin, ou por cunho ideológico. 

A aproximação de Jorge Amado com o movimento comunista, especialmente com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), assumiu forte influência sobre seus escritos. A exploração cotidiana — e o sofrimento dos trabalhadores do campo — ganharam forma bastante definida nos romances. O modelo do Realismo Socialista e a construção do que seria chamado “romance proletário” aceleraram sua popularidade no primeiro país a realizar uma revolução socialista (3).

A recepção da obra amadiana foi tão impactante que o autor chegou a receber o Prêmio Stálin da Paz em 1951. O prêmio era entregue anualmente a pessoas que promovessem o fortalecimento da paz entre os povos, escolhidas por um Comitê Internacional.

A literatura amadiana chegou à União Soviética ainda na década de 1930. O autor defendia que, segundo um amigo soviético, a primeira publicação acontecera em 1933, com Cacau. Todavia, nada consta na Biblioteca Lênin e tampouco no acervo da Fundação Casa de Jorge Amado — pode ser que traduções independentes tenham sido realizadas.

A primeira publicação de Amado a se popularizar na URSS foi São Jorge dos Ilhéus, em 1948. A rápida popularidade pode ser explicada se considerarmos que a obra seguia a estética do realismo socialista, além de assumir um papel político de crítica ao capital, ao imperialismo norte-americano e de escancarar a exploração e o sofrimento dos trabalhadores do campo. O modo como Jorge narrava o sofrimento dos trabalhadores foi fundamental na construção da identificação entre público e obra.

Não há dados concretos sobre as tiragens de Amado na URSS. Entretanto, conforme pontua Darmaros (2016),

 

a trilogia de Terras do sem-fim, Seara vermelha e São Jorge dos Ilhéus sai pela editora Urojai, de Kiev, com 200 mil exemplares, entre 1981 e 1984; e Tenda dos milagres, pela Raduga, de Moscou, com 300 mil cópias, em 1986. (p. 226).
 

A qualidade das traduções de Kalúguin é questionável e as edições estão sendo revistas atualmente. Na época, por questão mercadológica, houve uma verdadeira batalha entre editoras para saber qual seria a primeira a publicar Jorge Amado. Os livros também foram modificados a bel-prazer do tradutor, que, além das já citadas alterações por moralismo e recortes ideológicos, também mudou  significados de termos.

Após a morte de Stálin, em 1953, iniciou-se a política de ”desestalinização”  orquestrada por Nikita Khrushchev e que visava eliminar a influência de Stálin da esfera pública. O Degelo de Kruschev promoveu o fim do culto à personalidade e atribuiu diferentes crimes ao líder soviético. Após o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, Jorge Amado mudou o seu modelo de escrita e rompeu com o realismo socialista. No dia 11 de outubro de 1956, no jornal A Imprensa Popular (4), Jorge Amado assumiu arrependimento em ter guiado sua escrita — principalmente Os Subterrâneos da Liberdade — como uma atividade política. Posteriormente, desligou-se do PCB.

No entanto, após romper com o Partidão, o escritor já era bastante popular na União Soviética e apesar de ter se distanciado do realismo socialista, as traduções de sua obra tornaram-se cada vez mais requisitadas.

 

 

Ilustração mostra Putin com LSuspeita-se que Jorge tenha sido o escritor estrangeiro mais lido em todo o bloco soviético . Neste sentido, acabou tendo forte influência na cultura popular soviética e russa. O atual presidente do país, Vladimir Putin, afirma ter sido um capitão da areia, considerando que esse termo é utilizado na Rússia como sinônimo de criança de rua (SATO, 2019).
Arte: Norberto Liberator

A mudança estética e literária é notada em Gabriela, Cravo e Canela, publicada na URSS em 1961. O livro marca o distanciamento de Amado da temática da exploração e do sofrimento dos trabalhadores e se aproxima do erotismo e da valorização da sensualidade feminina. Como supracitado, o principal tradutor do escritor alterou, motivado pelo moralismo e pela ideia de manutenção da tradição na literatura russa, trechos de erotismo. A distância entre a cultura brasileira e russa pode ser percebida na forma como estas consomem a carnalidade na literatura. À época, o que poderia ser considerado um erotismo leve para os brasileiros, para os russos seria interpretado como uma pornografia escandalosa.

Um tropeço na tradução de Jorge Amado é relatado pelo atual tradutor Aleksandr Bogadanóvsk:

Fico pensando o quão bom Jorge Amado era como escritor, já que conseguia angariar tanto amor do leitor russo mesmo que esse o recebesse de modo fortemente deturpado. E o problema não está só nos incontáveis erros. De um de seus livros, ”Gabriela, cravo e canela”, sai uma situação cômica. Na tradução, lê-se: ”Euforicos, o capitão e o doutor entraram no restaurante”. Em seguida, descreve-se a farra, e dela só saem o capitão e o doutor. O Euforicos, pelo visto, foi comido por eles. Mas, na verdade, ”eufóricos” é um adjetivo isolado [por vírgula]”: significa que o capitão e o doutor estavam em um ótimo estado de espírito, de euforia. Mas o tradutor transformou o estado de euforia em personagem (KALASHNIKOVA, 2003 apud DARMAROS, 2016).
 

O erro de tradução apresentado é um entre milhares. De modo geral, as obras traduzidas por Kalúguin mantiveram um padrão de equívocos, como: ”alterações de cunho ideológico, cortes de trechos eróticos, uso de elementos estrangeirizante e mudanças de estruturas das orações” (DARMAROS, 2016, p. 232).  Outro caso de equívoco e de alteração de sentido é quando Kalúguin traduz ”gosto de sangue” para ”sede de derramamento de sangue”. Alterando, dessa forma, a memória de um passado brutal para o desejo de um futuro violento (Darmaros, 2016).

As traduções das obras e a popularidade do escritor não aconteceram à toa. As evidentes mudanças nos aspectos sociais, econômicos e culturais daquele país permitiram que a literatura amadiana ganhasse espaço ao ponto de se perpetuar na cultura popular russa. Como conta Victoria Melnikova, as histórias narradas por Jorge permitiam que os leitores imaginassem como seria um paraíso tropical. Um dos motivos a ser considerado na manutenção da popularidade de Amado na URSS foi a expressiva demanda por literatura estrangeira, principalmente obras de entretenimento leve e fantasias. Em 1956, por exemplo, 920 autores estrangeiros foram publicados.

Apesar do rompimento com o Partido e os erros de tradução, Jorge Amado foi bem recebido pela cultura soviética em todos os seus estilos. Foi aclamado quando servia ao realismo socialista e acolhido quando resolveu se distanciar de temas envolvendo a exploração enfrentada pela classe operária. De modo geral, a obra amadiana dialogou com as questões soviéticas e russas em diferentes níveis: afinidade estética, exploração, infância perdida, anseio por liberdade.


Referências

DARMAROS, M. Por que ler Jorge Amado em russo: a cultura soviética revelada na tradução de Gabriela. TradTerm, São Paulo, v. 28, 2016.

SATO, L. Literatura e Relações Internacionais: recepção de Jorge Amado nos Estados Unidos e na União Soviética. Instituto de Relações Internacionais. Universidade de Brasília, Brasília-DF, 2019.

Notas

 
  1. A Rússia nutre, de maneira não recíproca, considerável interesse pelas produções brasileiras. Além de poetas brasileiros e a clássica música de Dorival Caymmi, Canção da Partida, os russos também adoram as novelas brasileiras — destaco O Clone e Avenida Brasil.
  2. Capitães da Areia foi publicado em 1937 no Brasil e traduzido para o russo em 1976. Um dos motivos da grande popularidade e imersão na cultura popular russa pode ter sido a identificação com um dos períodos mais traumáticos daquele país: a participação na Segunda Guerra Mundial — ou Grande Guerra Patriótica, como chamam os russos. A infância roubada pela Guerra  e o número de crianças órfãs é uma ferida exposta e acaba gerando uma identificação com a história contada em Capitães.
  3. O realismo socialista de Jorge Amado pode ser apreciado na trilogia Os Subterrâneos da Liberdade, que se estende em três títulos Os Ásperos Tempos, Agonia da Noite e A luz no Túnel. As condutas de personagens como Mariana, Camarada Ruivo e o ”Velho” Orestes se aproximam de concepções marxistas.
  4. Um ano antes, no mesmo jornal, Jorge Amado defendia que a educação brasileira só avançaria se seguisse os esforços praticados pelos bolcheviques na União Soviética”.
Vitória Regina

Vitória Regina

Colunista

Marxista e psicóloga. Debate política, psicologia e cultura.

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