A ressaca dos festivais
- 23 de dezembro de 2020
Graças à pandemia de COVID-19, os festivais de cinema brasileiros precisaram se curvar ao modelo on-line para realizarem suas edições em 2020. O que no início brilhou enquanto uma democratização do acesso aos filmes, com o passar do tempo acabou se descortinando em um excesso de opções cansativo ao espectador
Por Igor Nolasco
Colaborou Adrian Albuquerque
O último domingo (20) marcou o encerramento do 53º Festival de Brasília , o evento dedicado ao cinema brasileiro mais longevo ainda em atividade. O festival propriamente dito foi antecedido por algumas polêmicas, como a divulgação aberta das notas dadas pela comissão de seleção para os filmes que seriam exibidos e mesmo para os que não foram selecionados.
Graças à pandemia de COVID-19, que permanece implacável desde março – e ainda sem perspectivas de um plano nacional de vacinação – o formato pensado para a edição desse ano deu aos espectadores a chance de assistirem aos filmes programados diretamente de casa. As produções concorrentes foram exibidas na TV por assinatura pelo Canal Brasil, de igual maneira com o que ocorrera alguns meses antes, com o Festival de Gramado. Além da mostra competitiva usual, o Festival de Brasília de 2020 contou com uma mostra paralela organizada pelo cineasta e programador Cavi Borges. De caráter retrospectivo, ela disponibilizou filmes de cineastas como Rogério Sganzerla, André Luiz Oliveira, Maurice Capovilla, Sylvio Lanna, Luiz Rosemberg Filho e Sérgio Ricardo.
O que por alguns é considerado o maior ou o mais importante evento do cinema brasileiro ocorreu na etapa final de um ano que, graças ao impacto da pandemia, fluiu de maneira estranha – paradoxalmente, na mesma medida em que arrastou-se, interminável, avançou de março para dezembro em um piscar de olhos. Para o Brasil, 2020 está um ano particularmente cansativo. Não há clima de festas para que se possa falar sobre os últimos doze meses como se eles já fizessem parte de um passado. 2020 não “foi”. Ainda é. E o continuará sendo em 2021, enquanto o panorama não for mais otimista no âmbito da saúde. Fato é que, com toda essa carga, o brasileiro chegou em dezembro de 2020 cansado. Extremamente cansado. E com o público dos festivais de cinema não foi diferente.
Desde que o cinema fincou-se e estabeleceu raízes no Brasil, surgiram os festivais no país. Existem em uma miríade de variedade, de todos os tipos e tamanhos. No que se refere aos grandes festivais (como o de Brasília, o do Rio, o de Gramado, o CineBH e a Mostra de São Paulo), existe um público bem definido, onde constam, para além do contingente espontâneo de espectadores aficionados por cinema que buscam estar à par das novidades, os profissionais do setor cinematográfico, os estudantes e os críticos de cinema.
Quando os pequenos, médios e grandes festivais precisaram se reinventar como uma maneira de efetivamente acontecerem, mesmo em meio à pandemia, recorreram ao digital como saída. Assim, ainda no primeiro trimestre do ano alguns eventos já despontaram com exibições gratuitas na internet. Em alguns, o espectador podia acessar os filmes em qualquer horário; em outros, em horários pré-determinados, em uma nostalgia virtual das sessões presenciais. Na medida em que os meses foram passando, variações desse modelo foram surgindo: em alguns, como no caso da Mostra de SP, era preciso pagar para acessar os filmes. Os já mencionados Festivais de Gramado e Brasília optaram por exibições na televisão ao invés de recorrerem a um website ou plataforma digital.
Fato é que o público de cada um desses festivais, que em geral ou já vivia ou precisava deslocar-se para a cidade na qual ele acontecia para ter acesso aos filmes, agora podia fazê-lo remotamente, de casa. E com isso o público cresceu. Cresceu porque pessoas que nunca puderam se dar o luxo de deslocar-se para outra cidade, para outro estado, para outra região do país apenas para acompanhar um festival de cinema agora podiam fazê-lo. Porque o espectador casual, que num geral hesita em gastar seu dinheiro com ingressos para filmes que desconhece, agora podia aventurar-se em tipos de cinema que não costumava acompanhar gratuitamente, ou pagando pouco, e direto de seu computador. Porque com tudo isso, o debate acerca dos filmes, que já há alguns anos fluía organicamente em meio às redes sociais durante o andamento dos festivais, passou a ser completamente atrelado a elas, seja pela reação instantânea do público ou pela reinvenção dos tradicionais debates com cineastas e críticos no formato de lives.
Mesmo que por motivos de força maior, boa parte dos festivais de cinema brasileiro que aconteceram em 2020 tiveram que ceder ao digital. Alguns os fizeram de maneira total, outros mantiveram um “braço presencial”, por assim dizer, com exibições em drive-ins ou mesmo em salas de cinema tradicionais, que a essa altura do campeonato já voltaram a funcionar em uma parcela considerável do país. Alguns festivais grandes, como o Festival do Rio – que já vinha enfrentando dificuldades intermitentes nos últimos anos – acabaram não acontecendo, mesmo após anúncios prévios de que iriam ter uma edição em 2020. O futuro dos festivais em cinema enquanto a pandemia não acabar, e mesmo após o término dela, ainda é incerto. Uma coisa, no entanto, já parece realidade: não poderão mais ignorar a elaboração fundamental de um “braço digital” do evento.
2020 passou como um furacão, deixando um rastro de destruição, desolação. E mesmo quem estava acompanhando com afinco os festivais on-line ao longo do ano chegou em dezembro estafado demais para acompanhar o Festival de Brasília com algum entusiasmo. Para além dos motivos de sobra dados pelo ano para tal, exausto, apesar de tudo, dos próprios festivais de cinema.
Exausto, sim, pois com a vasta variedade de opções de filmes em cada festival, de festivais acontecendo simultaneamente ou um logo em sequência do outro, somados aos lançamentos regulares em serviços de streaming, o espectador, mesmo em um ano quase desprovido de lançamentos em circuito comercial de salas de cinema, se viu sobrecarregado de opções. Sobrecarregado de filmes, de conteúdo clamando por sua atenção. Cansado de ter que a toda hora, a todo segundo de seu tempo livre, garimpar por entre centenas de títulos para escolher aquele que parecesse mais apto a seu gosto. É um sintoma do entretenimento na era digital: o que era pra ser lazer passa a dar trabalho.
Escolher torna-se um processo demorado e mesmo desgastante para quem só quer relaxar após um dia de trabalho. O tempo passa rápido: esse mesmo espectador, dez anos atrás, estava insatisfeito com a passividade que tinha ante à programação pré-montada e inflexível da televisão. Agora, na era dos festivais digitais e dos múltiplos serviços de streaming que também produzem conteúdo, é o senhor de sua própria programação. E não tem mais energia para, a todo momento, escolher o que assistir.
Para quem trabalha com cinema também não é fácil; mesmo profissionais da área ficam perdidos em meio a tantos festivais acontecendo. Críticos estão esgotados e sobrecarregados, um número cada vez menor deles ainda tem energia para cobrir os grandes festivais, que se sucedem com um intervalo minúsculo entre um e outro, cada um deles com dezenas (alguns mesmo com centenas) de filmes, mais ainda do que costumavam ter quando eram eventos presenciais, graças à vantagem de não precisarem programar sessões físicas de cada produção.
O panorama que se tem é o de uma ressaca dos festivais. 2020 foi um ano de grandes filmes e de grandes eventos. Festivais que tinham um caráter mais local, como o Ecrã, realizado tradicionalmente no Rio de Janeiro, ganharam um público em escala nacional. No entanto, essa sobrecarga de oferta ao público fez com que ele, mês após mês, fosse ficando gradualmente menos energético em relação às opções que estavam lhe sendo dadas. Mesmo no Festival de Gramado, em setembro, o clima já era de cansaço. No de Brasília, é de exaustão completa.
Para 2021, talvez caiba aos festivais de cinema um planejamento que considere o ponto de vista do espectador nesse sentido. Com ou sem essa mudança de postura por parte de tais eventos, no entanto, o que se vê ao horizonte é uma miríade de plataformas digitais internacionais já anunciando de antemão uma avalanche de filmes a serem veiculados em seus serviços durante todo o ano. E o espectador, que já não aguenta mais assinar novos streamings, estar em dia com agendas de novidades e lançamentos, acompanhar os festivais e escolher entre centenas de milhares de produções diferentes, precisará continuar escolhendo. É uma situação paradoxal: nunca foi tão fácil e tão difícil acompanhar arte e ter um momento de lazer.
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[…] a se reorganizar para a realização de edições on-line (conforme já comentamos nesta coluna, em mais de uma oportunidade), e por meio deles foi exibida uma safra de filmes que, por motivos de distribuição e […]