A vida de quem realmente importa?

Editorial

Morte da menina Ágatha, oito anos de idade, evidencia problema estrutural no Brasil: descaso do Estado para com vidas de pessoas negras e pobres

Ao observarmos as últimas notícias, a que causou mais perplexidade e tristeza foi a morte de Ágatha Vitória Sales Félix, oito anos, na madrugada desta sexta, 20. A menina  foi atingida com um tiro nas costas enquanto estava dentro de uma Kombi com o avô na comunidade Fazendinha, localizada no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio de Janeiro. Ágatha foi levada para o Hospital Estadual Getúlio Vargas, porém não resistiu ao ferimento e faleceu. Os tiros vieram de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) –  projeto vinculado à Polícia Militar (PM), que age em favelas com o intuito, em tese, de controlar territórios dominados por quadrilhas criminosas.

A PM do Rio de Janeiro declarou pelo Twitter que uma equipe da UPP estava na região, foi atacada em direções diferentes de maneira simultânea e revidou com tiros – um deles atingiu Ágatha, que passava pelo local.

O relato do morador Elias Cesar, 36, refuta a versão oficial defendida pela Polícia Militar. Em declaração ao jornal Folha de S. Paulo, Cesar afirma que não houve troca de tiros entre supostos criminosos e a Polícia. “Estavam na Kombi e pararam ali na Birosca [uma localidade no complexo], veio um maluco de moto e a polícia mandou parar. O maluco não parou, foi embora, sem arma nem nada, e a polícia atirou. Não teve tiroteio, o único tiro que teve foi o deles, fatal. Foi o que tirou a vida da nossa sobrinha”.

Em resposta à truculência policial, moradores do Complexo do Alemão organizaram na tarde de ontem, 21,  uma manifestação local devido à violência na favela e a morte de Ágatha. Além da jovem de oito anos, seis pessoas morreram por ação policial na semana passada.

Com o devido cuidado para não recair à vulgata sensacionalista de explorar, a partir do sofrimento alheio, as reações do público de maneira antiética, é importante ressaltar a tristeza que sentimos ao observar a foto de Ágatha com uma fantasia de Mulher Maravilha, alegre e sorridente. O super-heróis têm, para as crianças, a função de cativar a imaginação, de inspirar um mundo de sonhos, no qual a justiça é possível. Porém, como pensar em justiça quando o Estado brasileiro não garante a segurança dessas crianças e as priva de ter uma vida na qual seus sonhos possam ser realizados com dignidade? Por que alguns corpos importam mais do que outros?

Charge mostra Wilson Witzel segurando laço e uniforme da Mulher Maravilha. Há sangue em sua boca e dois fuzis atrás.

A morte de Ágatha mostra-se apenas como um sintoma de um problema estrutural mais amplo na história do Brasil: o genocídio da população jovem e negra no país. O projeto, cada vez mais evidente, que parte do princípio de ter o próprio corpo respeitado, ter sonhos e juventude, assim como poder viver uma vida longa, é restrito a pessoas brancas de estratos socioeconômicos elevados. Basta abrir um jornal de grande circulação e pesquisar sobre assassinatos policiais em comunidades como o Complexo do Alemão para percebermos que é um assunto recorrente, que por sua frequência torna-se naturalizado. Um dos grandes feitos das elites, no mundo todo, é o de conseguir naturalizar construções sociais e históricas relacionadas à pobreza, à subalternização de mulheres e homens negros, povos indígenas e da comunidade LGBTQI+.

Não se trata de uma especulação. As estatísticas e os estudiosos da área confirmam a hipótese. Em entrevista à Carta Capital, o pesquisador do Observatório de Criminalização da Pobreza e dos Movimentos Sociais da Universidade de São Paulo (USP) Adalmir Leonídio argumenta que o Brasil apresenta um cenário de mortes da população negra e dos indivíduos mais pobres, que supera estatisticamente o quadro vivenciado nos Estados Unidos – país que apresenta similaridades à situação brasileira, conhecido historicamente por sua violência policial. “Nos dois países, o alvo preferencial da violência policial – que se traduz em tortura e assassinatos – são preferencialmente negros e pobres, moradores dos chamados ‘territórios da pobreza’. No entanto, precisamos considerar a desproporção numérica entre as duas realidades. O Brasil mata muito mais negros e pobres que os Estados Unidos”.

A fala do pesquisador ainda ressalta que o descuido do Estado brasileiro para com os direitos – humanos, de cidadania, sociais – desses grupos mostra a falta de importância dada às vidas desses indivíduos, condição histórica que se perpetua e se redefine desde a abolição da escravatura. “Essas pessoas não são absorvidas pelo mercado de trabalho, não fazem parte da lógica mercantil em evolução e é preciso fazer alguma coisa delas. Isso vai ser muito mais grave em países como o Brasil, onde há uma história de quatro séculos de escravidão. Existe um inimigo interno a ser combatido que, há cem anos, era o ex-escravo. Hoje é o morador da periferia pobre, que se configura como uma ameaça permanente ao patrimônio dos ricos”.

O Anuário Brasileiro de Segurança deste ano, a partir da análise de 7.952 registros de intervenções militares que resultaram em morte entre 2017 e 2018,  atesta que 75,4% das vítimas mortas devido às intervenções policiais são pessoas negras. O relatório também registra que uma vítima negra possui 8% a mais de chances de sofrer homicídio. Entre jovens negros, a probabilidade de ser assassinado no Brasil é, em média, duas vezes e meia superior à de um jovem branco. No Rio de Janeiro, estado onde Agatha foi assassinada, indivíduos negros possuem 23,5% de chances de serem mortos em ações da polícia.

Outro dado apontado pelo Anuário é que “aos 21 anos de idade, quando há o pico das chances de ser vítima de homicídio, indivíduos negros possuem 147% mais chances de serem assassinados do que brancos, amarelos e indígenas”. Mais especificamente no que tange às vidas de crianças, informações da ONG Rio de Paz mostram que Agatha Felix é a 57ª criança a morrer nestas circunstâncias desde o ano de 2007. A plataforma Fogo Cruzado registra que, na região metropolitana do Rio de Janeiro, 16 crianças foram baleadas neste ano. Destas, cinco morreram.

A Badaró repudia publicamente a violência e o sadismo de Estado, e acredita na necessidade de profundas mudanças na estrutura econômico-organizacional da sociedade brasileira. O Estado que mata uma criança e relativiza mortes de inocentes como algo banal que, eventualmente, possa ocorrer para garantir uma suposta “segurança maior” possui um conceito eugenista desta. Evidencia-se a existência de um recorte específico de quais grupos sociais, econômicos e étnicos têm direito a tal “segurança” em detrimento de outros. Nesta lógica de apartheid, o gatilho é puxado sem qualquer remorso, desde que seja contra os corpos indesejáveis. Como diz a letra da música “Diário de um Detento”, dos Racionais MCs, “o robocop do governo é frio; não sente pena, só ódio, e ri como a hiena”. Neste caso, em paráfrase a Brecht, a hiena do fascismo está sempre no cio. Quando coincidências como a da PM se tornam regulares, o que seria uma lamentável exceção passa a ser uma macabra regra.

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