Do futebol à política: o legado de Tabaré Vázquez
- 13 de dezembro de 2020
Do futebol à política, ex-presidente uruguaio foi um contrariador de expectativas
Por Gabriel Neri e Norberto Liberator
O ex-presidente uruguaio Tabaré Vázquez faleceu no último domingo (6) em decorrência de um câncer no pulmão aos 80 anos. Nascido em 17 de janeiro de 1940 no bairro La Teja em Montevidéu, Vázquez foi enterrado em sua vila natal, após velório somente com pessoas mais próximas por conta da pandemia de coronavírus.
Médico, político e também dirigente de clube, era conhecido como Doutor Tabaré Vázquez e foi o primeiro candidato na coalizão de esquerda Frente Ampla eleito à Prefeitura de Montevidéu, em 1989, e à Presidência da República, em 2004, o que deu o fim à hegemonia dos partidos tradicionais no Uruguai (Partido Colorado e Partido Nacional). E aquela não foi a única. No mesmo ano, o modesto Club Atlético Progreso, dirigido por Tabaré, foi campeão uruguaio pela primeira e única vez.
O anúncio da morte foi feito pelo filho Álvaro Vázquez no Twitter. “Em nome da família, queremos agradecer a todos os uruguaios pelo carinho recebido ao longo dos anos”, escreveu Álvaro. Tabaré foi casado com Maria Auxiliadora Delgado, falecida em 2019, com quem teve os filhos Álvaro, Javier, Ignacio e Fabián. Quem também se manifestou em rede social foi o Club Atlético Progreso, que tem sua sede em La Teja. “Imensa dor nos invade pelo falecimento de Tabaré Vázquez. O vizinho que nunca se esqueceu do bairro e que levou o clube do seu amor ao topo”, lamentou o clube.
Vida no Progreso
O Club Atlético Progreso foi um dos amores da vida do Doutor e sua relação direta com Los Gauchos Del Pantanoso, como a equipe também é conhecida, começou em 1978, quando foi eleito à vice-presidência da entidade. No ano seguinte, assumiu o cargo de presidente para estruturar e formar a equipe que levou o pequeno clube de La Teja, então na Segunda Divisão, à elite do futebol cisplatino. A final contra o Miramar Misiones reuniu mais de 110 mil torcedores no Estádio Centenário.
Ainda sob sua gestão, o Progreso venceu o Torneo Competencia (espécie de Copa do Brasil local, à época) em 1985 e, dois anos depois, chegou pela primeira vez à Copa Libertadores da América, principal competição de futebol do continente. Embora tenha caído na fase de grupos, a campanha não apagou o brilho do time que alcançava um novo patamar no cenário esportivo sul-americano.
Dois anos depois, após a surpreendente conquista do título uruguaio, Vázquez saiu do clube para focar na vida política e na disputa eleitoral à Prefeitura de Montevidéu. Após a saída dele, o time voltou a disputar a Libertadores em 1990 e em 2020.
Prefeitura de Montevidéu e Presidência do Uruguai
A vida política de Tabaré Vázquez começou no ano de 1983, quando começou sua relação com o Partido Socialista, participando de várias reuniões escondidas durante a ditadura militar uruguaia (1973-1985). Ainda quando estava à frente do Progreso, em 1987, presidiu a Comissão Nacional Pró-Referendo, criada para revogar a Ley nº 15.848, conhecida como ley de caducidad (lei de anistia, do espanhol), que absolvia os militares dos crimes cometidos na ditadura.
Com sua influência, ideias e carisma, se candidatou a prefeito de Montevidéu, capital do Uruguai, no ano de 1989 — e foi eleito. O Doutor assumiu o cargo no ano seguinte, sendo o primeiro partidário da Frente Ampla — coalizão que reúne diversos antigos partidos de esquerda uruguaia — da história. Ao final do mandato, em 1994, saiu com uma projeção nacional, com muita popularidade nas pesquisas e como um forte nome para a Presidência do país.
A primeira eleição disputada para a Presidência foi em 1994, logo após o fim de sua gestão como prefeito da capital, e os resultados começaram a dar um sinal de mudança no país ao sul do continente. Em 1989, a Frente Ampla tinha conseguido 418 mil votos (20,3%). Com Vázquez como candidato cinco anos depois, foram 621 mil (29,2%).
Em 1999, mais uma disputa eleitoral para o Doutor e com a mudança na fórmula eleitoral, ele foi para o segundo turno com a maior parte dos votos válidos no primeiro turno: 861 mil (39%). Na segunda volta, a chapa com Vázquez e Rodolfo Nin Novoa aumentou o número de votos para 982 mil (45,9%), mas perdeu para Jorge Batlle, do Partido Colorado, que foi eleito com 1,15 milhões de votos (54,1%). No começo do século XXI, o Uruguai passou por uma crise econômica e Vázquez se reuniu com Batlle e outros líderes políticos para fazerem acordos com o objetivo de sair da crise.
A eleição seguinte foi em 2004 e, desta vez, Tabaré, junto a Rodolfo Nin Novoa, venceu em primeiro turno na maior votação da Frente Ampla na história até então. Foram 1.124.761 votos (51,86%). Com isso, se tornou o primeiro prefeito de Montevidéu eleito para presidente, cargo que ocupou de 2005 a 2010, e o primeiro frenteamplista no cargo máximo uruguaio.
Tabaré foi parte da “década de ouro” da esquerda sul-americana, quando diversos líderes de formação política socialista ou social-democrata ocuparam o Executivo nacional na região: Hugo Chávez na Venezuela, Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil, Rafael Correa no Equador, Evo Morales na Bolívia, Nestor e Cristina Kirchner na Argentina e Michele Bachelet no Chile. Seu sucessor foi José ‘Pepe’ Mujica, também da Frente Ampla em 2009. Vázquez voltou à presidência em 2015 e ficou até março de 2020, sendo sucedido por Luis Lacalle Pou, do Partido Nacional — o que quebrou 15 anos de hegemonia da esquerda no país cisplatino.
Legado
No governo de Tabaré Vázquez, o Uruguai implantou uma forte política social com objetivo de igualdade, equidade e justiça, através do Plano de Assistência Nacional à Emergência Social e depois com o Plano de Equidade. Ele também promoveu a reforma na Saúde do Uruguai, proibiu totalmente o consumo de tabaco em lugares públicos fechados e a propaganda de cigarros nos meios de comunicação.
Ainda na Saúde, através do Hospital de Olhos ‘José Martí’, em homenagem a Cuba, financiou milhares de operações oftalmológicas para os uruguaios.No lado esportivo, mais focado nas categorias de base do futebol e impulsionou, junto à Associação Uruguaia de Futebol, o projeto Gol ao Futuro, para que os jogadores jovens estudassem. Ademais, conseguiu executar seu plano de criação de empregos, deixando o país com apenas 7,7% em 2007 (a menor taxa desde 1993).
No entanto, nem tudo foi progresso no governo do antigo dirigente do Club Atlético Progreso. Apesar de ser do Partido Socialista, Vázquez vetou em 2008 a Lei de Saúde Sexual e Reprodutiva, que previa a legalização do aborto (que viria a ser aprovada durante o governo de seu sucessor, Mujica). Ele também não buscou anular a ley de caducidad, que impede a condenação de militares que praticaram violações aos direitos humanos durante a ditadura militar, alegando que o povo a votou em 1989 e a aceitou.
Enfim, entre erros e acertos, Tabaré Vázquez foi um dos grandes líderes de esquerda da América Latina e o maior dirigente da história do humilde Club Atlético Progreso, levando-o ao improvável título uruguaio. Do esporte à política, o médico de La Teja foi um contrariador de expectativas, que ousou lutar e ousou vencer.