Chile se prepara para enterrar últimos ossos políticos de Pinochet

Aprovada em plebiscito por 78% do eleitorado e prevista para abril de 2021, formulação de nova Constituição chilena simboliza o sepultamento de um projeto político e econômico cruel, falido e impopular

Por Mylena Fraiha e Norberto Liberator
Colaborou Fábio Faria

O resultado do plebiscito ocorrido no último dia 25 trouxe inúmeros significados para a população chilena, que tem ocupado as ruas do país desde 2019. Com o apoio massivo de 78% dos eleitores, o Chile aprovou a formulação de uma nova Constituição, que será formulada a partir de abril por uma assembleia eleita com paridade de gênero (metade de parlamentares homens e metade mulheres) e dará fim à última grande herança da ditadura pinochetista, a Constituição chilena de 1980. 

Embora tenha passado por algumas alterações, a atual carta constitucional do Chile é a mesma formulada pelo regime militar de Augusto Pinochet, o qual serve de inspiração para o presidente brasileiro Jair Bolsonaro (sem partido) e seu sidekick da economia, Paulo Guedes. Com seu caráter privatista e neoliberal, a Constituição de 1980 restringe o papel estatal na prestação de serviços básicos, como saúde, educação e previdência — aspecto que impulsionou os protestos conhecidos popularmente como estallido social (ou estouro social, em português), que se iniciaram em 18 de outubro de 2019 e se estenderam até março deste ano. 

O fato de a Constituição de Pinochet ter sobrevivido ao fim da ditadura, e se mantido na democracia chilena até hoje, é exemplo da persistência dos moldes ditatoriais na região do Cone Sul. A atual carta constitucional, que não assegura qualquer direito básico à população, não apenas representa o fracasso do modelo neoliberal, como também é o símbolo do sistema desumano e autoritário construído pelo golpe de 1973, que destituiu o governo socialista democrático de Salvador Allende por meio de um bombardeio sangrento ao Palácio La Moneda (residência oficial do presidente chileno). 

A Constituição de 1980 e a herança ditatorial 

A atual carta constitucional chilena sacramentou o Chile como laboratório das ideias neoliberais de economistas como Milton Friedman e Friedrich Hayek, que pregavam uma aplicação radical do princípio liberal de liberdade econômica, com a ausência do Estado até mesmo em serviços básicos como educação, saúde, moradia e aposentadoria. A falta de tais garantias fez da Constituição chilena um documento substancialmente neoliberal, nos moldes do que propunham expoentes da Escola de Chicago (os chamados “Chicago Boys”).

Em meados da década de 1980, setores da oposição como a Democracia Cristã, o Partido Socialista e o Partido Pela Democracia, fizeram um acordo para criar uma oposição ampla ao regime dentro da institucionalidade e preparar uma campanha pelo “Não” em 1988, ano em que estava previsto um plebiscito pela continuidade ou não do governo Pinochet. 

Em outras palavras, a Frente Ampla aceitou jogar dentro das regras estabelecidas pela Constituição pinochetista. Por este motivo, a exemplo do Brasil, os militares envolvidos em crimes contra a humanidade não foram julgados, assim como Pinochet passou de presidente a comandante das Forças Armadas e senador vitalício, mantendo seu papel de alto representante do Estado.

O historiador Jorge Fernández nos explica que a legislação atual foi aprovada num momento em que setores da classe média e de centro “começaram a se afastar porque o regime evidentemente já se afastava dessas questões, das desculpas de democracia, da liberdade”. De acordo com Fernández, “ficava bem claro que era um projeto autoritário do Pinochet que se consolidava ao lado de alguns de seus aliados mais fiéis. As ilusões de que seria uma direita democrática já estavam praticamente perdidas”.

Segundo o professor, o sindicalismo chileno começou a se reestruturar em 1981 e, em 1983, iniciaram-se as grandes manifestações de massa contra a miséria imposta por Pinochet. “A população estava passando fome, de fato. Então, cada vez mais, os setores mais moderados da direita como a Democracia Cristã, que tinha apoiado o golpe, mas foi alijada do poder e não teve chance de dividir o poder com o Pinochet, começam a articular uma oposição institucional, podemos dizer”.

O historiador também afirma que a política de privatizações desenfreadas “significou perda da produção industrial, queda nos padrões de consumo e aumento generalizado do desemprego”. Fernández explica que toda a estrutura do Estado chileno foi sucateada em prol do capital estrangeiro, resultando na desindustrialização de um país que até então possuía nível razoável de desenvolvimento tecnológico. “Qualquer medida protecionista nesse sentido era desautorizada também pelo governo, já que a Escola de Chicago desconsiderava esse tipo de ação, então se passava a reger tudo pela lei de mercado”.

Um dos pontos mais contestados da Constituição e que a faz garantir o neoliberalismo como política de Estado, independentemente da orientação ideológica do governo, é o chamado “cadeado” dos dois terços. No Chile, pela legislação atual, são necessários dois terços dos votos para o Congresso aprovar medidas em relação ao papel do Estado em setores como saúde, educação, distribuição de terra, controle de recursos naturais e aposentadoria, o que faz com que setores de esquerda e de centro-esquerda precisem de uma ampla maioria de mais de 66% dos parlamentares para realizar reformas estruturais, o que nunca ocorreu.

Sobre este fator, Jorge Fernández reforça que os setores de centro-direita chilenos, embora contrários à brutalidade do regime pinochetista, historicamente tenderam a apoiar suas medidas econômicas e, por isso, jamais se mobilizaram contra o “cadeado” dos dois terços. “Evidentemente, muitos setores liberais, que eram contrários à ditadura, também não se interessaram em fazer mudanças substanciais à Constituição”, explica.

Estallido social

Existem diferentes interpretações sobre o que aconteceu no Chile nos últimos meses. De acordo com Claudio Fuentes, cientista político e redator do Centro de Investigação Jornalística (CIPER), ao longo dos anos uma desconexão entre as elites políticas e econômicas para com a sociedade chilena agravou o descontentamento da população em geral. “A modernização da sociedade fez-se à custa do esforço individual e implicou em elevados níveis de endividamento das famílias, empregos precários e acesso regular ou deficiente a determinados direitos sociais (pensões, habitação, saúde, educação)”.

A eclosão social de 18 de outubro de 2019 começou inicialmente com a manifestação de estudantes contra o aumento das passagens nos transportes públicos. Como forma de protesto, os jovens começaram a pular as catracas para não pagar as tarifas –  as chamadas evasiones masivas. O slogan “No son 30 pesos, son 30 años”, que se popularizou, sintetizava o fato de que o protesto não se referia apenas a um pequeno aumento do transporte público, mas ao acúmulo de demandas e frustrações sociais desde o retorno da democracia. 

Em resposta ao protesto, o presidente Sebastián Piñera deu carta branca aos policiais nas estações de metrô, que reprimiram violentamente os estudantes. Entretanto, o “pulão de catraca” impulsionou um movimento que tomou grandes proporções e alcançou as ruas de Santiago e das demais cidades do país.

Outras formas de protesto foram agregadas pelo movimento. As redes sociais desempenharam um papel chave nas manifestações, uma vez que serviam como canal de mobilização e de divulgação das pautas. Exemplo disso é o Collage Chile, uma plataforma de divulgação de produções artísticas chilenas, no Instagram. Segundo a fundadora da iniciativa, Mila González, o projeto originou-se a partir da “democratização dos espaços de exibição da técnica, potencializando a visibilidade de novos artistas”. A conta do Instagram agrega o trabalho de inúmeros artistas chilenos, que apresentam suas críticas ao cenário político por meio de suas colagens. 

Na experiência de Mila González e do Collage Chile, o Instagram foi um dos propulsores da manifestação, uma vez que une as potencialidades técnicas ao potencial de difusão de diferentes debates. “No Instagram, que é um espaço predominantemente visual, o conteúdo político é diverso e para mim isso agrega uma qualidade cultural muito importante porque mostra não só algumas preocupações como saúde, previdência e educação. Também tornam visíveis as questões de gênero, infância, sexualidade e feminismo”, explica Mila. 

Jorge Fernández também chama atenção para o papel dos grupos subalternos. “Quando a gente vê aquelas manifestações populares na rua, a gente percebe a presença do povo mesmo, sobretudo dos chamados cordones, cordões industriais, que não têm de fato representatividade, e acabam pressionando por mais espaços de atuação. Porque frente a essas reclamações por falta de representação, a única resposta que eles têm do Estado é a violência”, diz o professor.

Assim como outras manifestações que reuniram o potencial tecnológico, a expressão artística e a insatisfação política — como foi o caso do movimento espanhol Los Indignados , o estallido social no Chile também se apoderou da potência de imagética das redes, dando espaço para diferentes formas de manifestação.  Mila González afirma que “neste sentido, a rua, em especial a Alameda de Santiago, transformou-se numa galeria a céu aberto que expressa os sentimentos e as exigências da população. As redes sociais também têm assumido um papel importante dentro da reivindicação política, pois são a linguagem das novas gerações”.

Fernández afirma, ainda, que as manifestações que varreram o Chile desde o ano passado, assim como a eleição de Luís Arce na Bolívia, são parte de uma reação à aliança entre setores neoliberais e neofascistas. “Agora estamos vendo o neoliberalismo de uma forma mais desnuda. Inclusive a gente percebe essa vinculação clara entre neoliberalismo e neofascismo. Isso é assustador, mas deixa as coisas mais claras, o que nos permite pensar formas de opor resistência a essas articulações. A Constituição chilena pode ser vista em paralelo com a vitória do MAS na Bolívia e o que seria o retorno de Evo Morales e seu grupo”. 

O historiador traça uma cronologia para explicar a relação entre os eventos recentes e a ascensão do extremismo de direita, anteriormente. “Houve na América Latina uma ofensiva do neoliberalismo, alinhado com políticas de extrema-direita e seguindo um discurso radical de forma brutal, sinalizando uma forma mais agressiva de acumulação de capital por métodos antidemocráticos. O neoliberalismo se despiu dos prumos democráticos e da forma que ele assumiu nos anos 90”, conclui. 

O desafio da democratização 

O resultado eleitoral do Aproba e sua distribuição geográfica deixam uma lição clara: a sociedade chilena está dividida em partes muito desiguais. De acordo com os dados do Ciper, entre os 346 distritos do país, em 341 deles a  maior parte da população optou pelo “aprovo”. Em contrapartida, nos cinco distritos restantes — Vitacura, Las Condes e Lo Barnechea, todos localizados na região metropolitana de Santiago; Colchane (Tarapacá) e La Antártica (Magallanes) — a maioria dos eleitores votou pela manutenção da atual Constituição.

O cenário de crise política e social também abriu discussões relevantes próprias de outros processos constituintes que vêm sendo vividos na região. A primeira e mais imediata discussão referiu-se à possibilidade de abrir oportunidades para que diversos setores sociais sejam incluídos no processo de formulação legislativa. Assim, após forte pressão social, o Congresso Nacional aprovou normas para garantir a  representação equilibrada de homens e mulheres nas listas de candidatos e nos resultados eleitorais para garantir a paridade de resultados. Também está em discussão o instituição de assentos reservados para representantes dos povos indígenas; e o facilitamento da participação de representantes independentes — isto é, indivíduos que não possuem filiação partidária. 

Após o primeiro passo para uma reformulação legislativa mais democrática, a população chilena precisará eleger os 155 membros da Convenção Constituinte — órgão eleito pelo voto popular que será responsável pela elaboração da nova constituição. A partir disso, os constituintes terão nove meses para apresentar um novo texto constitucional, prorrogável por mais três meses, em uma única oportunidade. 

De acordo com o cronograma governamental, a eleição dos constituintes está prevista para 11 de abril de 2021. Em meados de 2022, o país passará por um novo plebiscito de saída para aprovar ou rejeitar a nova Constituição.

Mylena Fraiha

Editora-executiva

Jornalista e pesquisadora em comunicação. Possui interesse nas áreas de meio ambiente, política e direitos humanos, além de produções audiovisuais.

Norberto Liberator

Editor-chefe

Jornalista, ilustrador e cartunista. Interessado em política, meio ambiente e artes. Autor da graphic novel “Diasporados”.

Fábio Faria

Diretor de arte

Estudante de jornalismo e ilustrador. Interessado em artes, cultura e assuntos do espectro político.

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