Natureza e povos originários no cinema brasileiro
- 7 de outubro de 2020
O meio ambiente brasileiro está em chamas, e as populações nativas de nosso país seguem em um momento particularmente duro da luta por direitos na qual persistem há 500 anos. Desde os seus primórdios, o cinema brasileiro buscou, de uma maneira ou de outra, retratar a vida de nossos povos indígenas
Por Igor Nolasco
Ilustração por Marina Duarte
No que se refere às temáticas sociais abordadas com alguma recorrência pelo cinema brasileiro, pode ser dito que há uma espécie de preferência temática por questões relativas à vida urbana. O ato de fazer cinema (não no Brasil, mas no mundo em geral) surge, de fato, como uma atividade urbana.
Mesmo quando o Cinema Novo se propôs a analisar as mazelas que assolam a vida de brasileiros que vivem fora das grandes cidades, em filmes como “Vidas Secas” ou “Deus e o Diabo na Terra do Sol“, o fez sob a irremediável ótica do ficcionista urbano. Muitas vezes, os cinemanovistas utilizavam personagens camponesas no enfrentamento de seu meio como avatares para as angústias do homem da classe média urbana (a qual, diga-se de passagem, pertencia a maioria absoluta dos realizadores).
Ao escovar a contrapelo a história do cinema brasileiro, no entanto, é possível encontrar desde cedo manifestações fílmicas de um interesse por retratar o Brasil em sua diversidade de biomas, de culturas e de povos. Dentre os nomes mais notórios desse momento de pioneirismo está o de Luiz Thomaz Reis, responsável por filmagens que hoje podem ser chamadas mais apropriadamente de registros históricos, como “Rituais e Festas Bororo“, de 1917.
Seria de um anacronismo leviano analisar os trabalhos de figuras como Thomaz Reis enquanto expoentes de uma filantropia fílmica gentil. Assim como os filmes do Cinema Novo, surgidos quatro décadas depois de “Rituais e Festas Bororo”, liam o Brasil sob a ótica do ficcionista urbano, os cineastas pioneiros o faziam do ponto de vista do explorador, do colono, do desbravador. O registro dos hábitos de povos desconhecidos pela civilização urbana brasileira era feito por motivos de estudo e de curiosidade, não como homenagem. O que estava em tela era visto como “exótico”.
A Humberto Mauro (nome do nosso pioneirismo cinematográfico que nutria um afeto perceptível pela natureza) pode ser atribuído outro registro importante. Se “Rituais e Festas Bororo” retratou a vida de um povo da floresta no formato de documentário, vinte anos depois “O Descobrimento do Brasil“, de Mauro, o fez enquanto dramatização, ficção. Elogios e críticas similares aos feitos a nomes como Thomaz Reis podem ser replicados, com a devida readequação contextual, à obra mauriana.
Analisando a cinematografia nacional sob perspectiva panorâmica, um observador externo identificará que esse maior interesse pelas civilizações originárias do Brasil só iria retornar de maneira significativa a partir da década de 1960, por figuras que, associadas ou não ao Cinema Novo, estavam em geral distantes do “núcleo duro” do movimento (ao qual cineastas como Rogério Sganzerla e Jairo Ferreira se referiam como “uma igrejinha”, no sentido de ser um movimento fechado, restrito).
É de se perguntar o porquê do Cinema Novo não ter se debruçado sobre esse tópico com o interesse que desenvolvia produções sobre outros temas. A rigor, constam algumas poucas exceções. O “pai do Cinema Novo” Nelson Pereira dos Santos, já rompido com o movimento, fez em 1971 o seu “Como Era Gostoso O Meu Francês“, com atores brancos pintados como indígenas e diálogos em tupi traduzidos por ninguém menos que o supracitado Humberto Mauro.
O cineasta ítalo-brasileiro Andrea Tonacci trabalhou com notório afinco pelo registro da vida dos povos da floresta em uma parcela majoritária de sua filmografia. Enquanto um primeiro momento de sua obra estava mais alinhado com o cinema feito pelos anteriormente mencionados Sganzerla e Ferreira (como nos curtas “Olho por Olho” e “Blá-Blá-Blá” e no longa “Bang Bang“), a partir da década de 1980 Tonacci começou a se enveredar pelo Brasil filmando diversos povos indígenas, suas vidas, costumes e suas relações com os avanços do desmatamento e da urbanização. Ele só pararia de registrar tais temáticas ao falecer, nos anos 2010.
Mesmo sendo “Bang Bang” o seu longa mais lembrado, Tonacci também é o autor do memorável “Serras da Desordem“, docuficção sobre Carapirú, sobrevivente de um massacre feito por madeireiros à tribo Awá-Guajá na década de 1970, que passaria os anos seguintes em uma jornada nômade até se estabelecer na Bahia. “Conversas no Maranhão” e “Já Visto, Jamais Visto” são filmes que também retratam, em parte ou integralmente, temáticas presentes em “Serras da Desordem”.
Tonacci tinha até mesmo o projeto de uma série de televisão sobre a Frente de Atração Arara da Funai, no Pará. “Os Arara”, no entanto, acabou sendo descontinuado após a realização de apenas dois episódios, que ainda assim funcionam enquanto imortalização do momento em que o território Arara estava sendo dividido ao meio pela expansão da Transamazônica.
Marco dos anos tardios do desenvolvimentismo da ditadura militar, a interferência da Transamazônica na vida dos povos da floresta também foi objeto fílmico de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, que mergulharam nesse cenário ao realizarem a produção germano-brasileira “Iracema, uma Transa Amazônica” em 1975. O filme não deixou as autoridades muito contentes, e permaneceu anos inédito, proibido pela Censura da Polícia Federal da ditadura, sob a justificativa oficial de que, sendo uma co-produção alemã, não estava elegível ao certificado de produto brasileiro necessário para que sua exibição em território nacional fosse permitida. O longa só foi chegar ao público pela primeira vez no Festival de Cinema de Brasília de 1981.
Com o passar dos anos, cineastas brasileiros brancos seguiram, em uma ou outra ocasião, adentrando a mata para registrar tribos indígenas em filmes de curta, média ou longa metragem, documentário, ficção ou docufição; até mesmo em animações (como “Uma História de Amor e Fúria, de Luiz Bolognesi). Gradualmente, mais e mais integrantes da população urbana vão, por meio dessas obras, perdendo a visão demasiadamente estereotípica que por séculos nutriram sobre nossos povos originários. Hoje (e já há algumas décadas), estes possuem o seu próprio cinema, que ainda encontra considerável resistência ao penetrar nos meios de exibição tradicionais.
Desmatamento, genocídio, conflitos com madeireiros, fazendeiros, grileiros e autoridades políticas que atuam ativamente pela destruição de territórios como a Amazônia continuam (cada vez mais) fazendo parte da rotina dessas populações, que lutam em todas as frontes para resistir, assegurar as terras que lhes pertencem por direito e preservar suas culturas e suas vidas. A existência dos povos indígenas brasileiros não é definida pela ótica de nossos cineastas brancos, e sim por suas próprias condições de seres humanos que estão sendo estripados de seus direitos desde que as primeiras caravelas aportaram no litoral brasileiro.
Para além dos propósitos de estudo do cinema nacional propriamente dito, se há alguma função social nas obras de Thomaz Reis, Mauro, Pereira dos Santos, Tonacci, Bodanzky, Senna, Bolognesi e tantos outros diretores de cinema brancos que filmaram a vida nas florestas brasileiras, ela está na função de ser um lembrete a nossos meios urbanos de que a retaliação praticada contra povos, culturas, vidas dos primeiríssimos cidadãos brasileiros são um ato essencialmente cruel. Infelizmente, seria um erro chamá-lo de “desumano”. As figuras de poder ao longo de nossa história, da colonização ao Brasil contemporâneo, vem provando enfaticamente que possuem ódio e desprezo sistemático por aqueles que, queiram ou não, são seus semelhantes.