Glauber Rocha e o cinema em constante evolução
- 16 de setembro de 2020
Glauber Rocha é o cineasta brasileiro mais conhecido de todos os tempos, tanto em território nacional quanto internacional. Seu pensamento, assim como seu cinema, nunca estacionou em uma zona de conforto. Sempre esteve em constante evolução, até mesmo no que se refere ao desenvolvimento de uma perspectiva autocrítica acerca de seus próprios filmes
Por Igor Nolasco
Ilustração por Marina Duarte
“O novo filme é uma aventura que não sei em que vai dar… terra do sol, terra em transe, a idade da terra… nenhuma flor, apenas horror, nesse jardim fecundado pelo sangue das cabeças cortadas… o ritual do sangue me fascina e é a partir desta selvageria ancestral que me vem o prazer sexual e estético. Começo a entender a significação do sadomasoquismo, a infinita ternura que há no crime. Eu tinha um verdadeiro prazer em filmar Antônio das Mortes massacrando beatos, projetava meu inconsciente fascista em cima dos miseráveis – Deus e o Diabo [na Terra do Sol] é uma razão histórica dialética para esconder o sádico das massas que sou.”
— Glauber Rocha, 1973 (em carta para Carlos Diegues)
(Trecho retirado do livro “Hélio Oiticica, A Asa Branca do Êxtase – Arte Brasileira 1964-1980”, de Gonzalo Aguiar, p.121-122)
Em um primeiro momento, pode ser surpreendente ver Glauber Rocha – a personificação do cineasta brasileiro; do cinema brasileiro – descrevendo de tal maneira o que é justamente sua obra mais famosa. Glauber, no entanto, era um homem comprometido com suas próprias ideias e com seu próprio coração. Antes de ser cineasta, fora crítico de cinema – além de ter sido um teórico fundamental do cinema brasileiro. Jamais perdeu sua ótica crítica, presente sempre que ele falava sobre cinema. Não apenas quando falava dos filmes alheios, mas também dos seus próprios.
O cineasta tinha problemas com “Barravento“, seu primeiro longa-metragem. Produzido por Rex Schindler, nome importante para o cinema sessentista no Brasil, o projeto em verdade fora concebido antes do envolvimento de Glauber; inclusive já estava sendo rodado com Luiz Paulino dos Santos como diretor até que Glauber assumiu o posto, reescreveu parte do roteiro dentro do curto espaço de tempo que possuía e deu continuidade às filmagens. “Barravento” conta a história de Firmino, nativo de uma colônia de pescadores que volta para ela após uma temporada na cidade grande. O personagem retorna com novos pontos de vista, crenças e ideais, e pretende energeticamente mudar a situação de sua colônia, que vê como submissa a más condições de trabalho e dogmas severos. Da versão anterior à sua chegada, o projeto herdou um misticismo do qual Glauber não gostava.
O filme, portanto, esteve sujeito a essa revisão crítica de seu diretor. “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”, aliás, é o nome que Glauber deu a um de seus livros, publicado já após o lançamento de “Barravento”, mas antes de seu projeto seguinte, um faroeste brasileiro rodado em locação no sertão da Bahia com o qual pretendia fazer uma antítese de tudo o que via de errado em faroestes brasileiros preexistentes, como “O Cangaceiro” de Lima Barreto – tanto em um plano estético quanto em um plano narrativo. E “Deus e o Diabo na Terra do Sol” é até hoje seu filme mais conhecido.
Sucesso com a crítica nacional e internacional desde a época de seu lançamento, “Deus e o Diabo” fincou no imaginário da cinematografia brasileira os personagens do cangaceiro Corisco e do matador de aluguel Antônio das Mortes. Tamanha a popularidade do segundo, Glauber foi requisitado por uma rede de televisão francesa para que rodasse uma nova história com o personagem em papel principal, o que posteriormente resultou em “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro“.
O crítico e teórico Jean-Claude Bernardet dedica seu livro sobre o cinema novo, “Brasil em Tempo de Cinema“, ao personagem Antônio das Mortes, que é objeto de um capítulo inteiro na obra. Bernardet o descreve como o apogeu da típica “personagem contraditória” cinemanovista, que em “Deus e o Diabo” (levando em conta que o livro foi publicado antes das filmagens de “O Dragão da Maldade”) “atinge dimensões trágicas”.
Acompanhando a jornada de Manuel e Rosa, um casal de camponeses que busca a fé em duas figuras distintas (no beato Sebastião, livremente inspirado no Antônio Conselheiro de Canudos, e no cangaceiro Corisco, reminiscente do bando de Lampião), o filme mostra essa procura dos protagonistas sendo bruscamente destruída pela figura de Antônio das Mortes. Bernardet descreve com riqueza de detalhes:
As duas experiências de Manuel são interrompidas por Antônio das Mortes; é ele quem põe fim à estória de Monte Santo, matando os fanáticos, embora o beato já tivesse sido morto por Rosa (mas depois ele se atribuirá esse assassinato); e é ele quem põe fim à aventura do cangaço, matando Corisco. Eliminando as fontes de alienação, dá a Manuel a possibilidade de agir racionalmente. Essa ação só poderá ser a guerra, uma guerra que será a aplicação de meios humanos para a cegueira de Deus e do Diabo. “[…] E, para que essa guerra venha logo, eu, que já matei Sebastião, vou matar Corisco”, diz Antônio da Mortes. No entanto, essa atitude não é monolítica; Antônio não age desse modo como um revolucionário dedicado à causa: para matar os fanáticos e cangaceiros, é pago por aqueles que oprimem o vaqueiro. Ele é um sicário, é vendido ao inimigo.
(“Brasil em Tempo de Cinema”, 3ª edição, p. 78-79)
A carta enviada a Carlos Diegues que serve como epígrafe ao presente texto foi escrita nove anos após “Deus e o Diabo na Terra do Sol” irromper nas telas de cinema do Brasil, mudando para sempre o curso da história da cinematografia nacional. Àquela altura, Glauber já era um cineasta reconhecido, que tinha em seu currículo “Deus e o Diabo”, “Terra em Transe” e “O Dragão da Maldade”, além de “O Leão de Sete Cabeças” (rodado no continente africano), “Cabezas Cortadas” (na Europa) e do hermético “Câncer“. Poderia ter se dado ao luxo de permanecer em uma posição confortável em relação à própria obra.
No entanto, nunca sucumbiu à tentação da zona de conforto. Sempre buscou projetos que o desafiassem enquanto realizador, e que também desafiassem o espectador. E sempre teve uma visão retroativa sincera acerca de seus trabalhos anteriores. Ao ver em Antônio das Mortes uma materialização de seu próprio “sádico das massas” interior, Rocha estava fazendo nada mais do que uma autocrítica – palavra tão em voga nos últimos anos, mas que no que se refere à mente glauberiana sempre esteve presente.
Glauber serve de exemplo para muitas coisas no nosso cinema. O faroeste brasileiro, por vezes apelidado de nordestern, nunca mais foi o mesmo após “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Perdeu a ingenuidade presente em “O Cangaceiro”. Tornou-se mais maduro na construção de sua ambientação e de seus personagens, mais arrojado em termos de linguagem e mais brutal em suas imagens. A sátira política na cinematografia nacional foi eternamente marcada por “Terra em Transe”, que assim como “Deus e o Diabo” permanece como um dos filmes brasileiros mais conhecidos do século XX.
Para além de seus filmes, o próprio Glauber tem muito a ensinar. Ensina que um cineasta deve ser, antes de tudo, autocrítico. Nunca dispôs, ademais, de qualquer tipo de falsa modéstia. Se achava um de seus filmes bons, o exaltava. Se achava um filme alheio ruim, o criticava veementemente.
O Festival de Veneza de 1980 serve como um exemplo prático para as duas situações. Extremamente descontente com o grande vencedor da noite, o “Atlantic City” de Louis Malle, Glauber alegava que o filme representava um tipo de cinema nostálgico, atrelado ao passado, enquanto o seu “A Idade da Terra” – que inclusive seria seu último filme – representava a vanguarda, o futuro.
O futuro de Glauber está em seu legado, seja no fílmico, no teórico ou em suas lições práticas. Não ter falsa modéstia; orgulhar-se de seus próprios trabalhos, mas sempre ser autocrítico em relação aos mesmos em análises posteriores; reconhecer, nesses trabalhos, onde você estava anos atrás, onde está agora, onde errou, onde acertou, e o que aquilo diz sobre você e sua construção enquanto ser humano. Se a obra glauberiana é parte da evolução do cinema brasileiro, seu pensamento também esteve em constante evolução.
Da “estética da fome” à “estética do sonho”, Rocha nunca parou de se reinventar; e é por isso que foi o autor de uma obra múltipla e marcante, além de ser uma personalidade inesquecível na história do cinema brasileiro e na história do Brasil como um todo.