Música, linguagem e psicanálise
- 17 de julho de 2020
Por Wendel Borges de Oliveira e Weiny César Freitas Pinto
No século XX, período pós-guerra, durante sua plena atividade como professor universitário e crítico musical, devido a uma alegada falta de criatividade no campo da composição, Theodor Adorno (1903-1969) publica dois livros de grande importância para o que hoje chamamos de filosofia da música. São eles Mahler: uma fisionomia musical (1960) e Beethoven: filosofia da música (1993). A importância do frankfurtiano no campo da estética é inquestionável, assim como a relevância de suas análises. De igual importância é a obra de um certo médico vienense que viria a revolucionar o modo como se vê a psique humana. Tanto Freud (1856-1939) quanto Adorno denunciaram alguns dos paradoxos mais impeditivos existentes na cultura ocidental da época, como o antissemitismo, a repressão sexual e a dubiedade moral da sociedade europeia, por um lado, o dogmatismo estético e os padrões impeditivos de criação artística, de outro; paradoxos esses que desembocaram em barbárie e dissonância.
Adorno foi estudante de composição musical com um dos compositores avant-garde mais prestigiados da época: Alban Berg (1885-1935), cuja única ópera completa é o retrato de uma triste época de repressão moral da sociedade. Este fazia parte da chamada nova escola vienense, fundada ao redor dos ideais fin-de-siécle vienenses de desconstrução, irreverência, inovação e simplicidade. Arnold Schönberg (1874-1951) foi o fundador dessa tendência quando da publicação, em 1911, de seu Harmonielehre[1], onde sugere um abandono da harmonia tradicional, consequentemente abrindo um leque de possibilidades para a expressão musical dos artistas de seu tempo. O diálogo musical mudou, assim como toda a estética. A humanidade mudou, enfim.
As repressões se tornaram a tal ponto insolúveis que a capital do Império Austro-Húngaro se tornou um prato cheio de experiências sociais e médicas. A vanguarda era onipresente. Sigmund Freud traz uma invenção que é particularmente vienense. A psicanálise, que surge como alternativa para o tratamento de pacientes neuróticos, acabou por gerar novas escolas de psicologia e visões de mundo, como é natural a qualquer ciência em sua fase inicial.
Não demorou para que viessem críticas tanto a Freud quanto aos estéticos vanguardistas, devido a seu grande projeto teórico de mudança radical de paradigmas em suas respectivas áreas e uma execução prática um pouco destoante de seu intento original. A resposta da filosofia está cristalizada no Tractatus (1921) de Wittgenstein (1889-1951), uma obra que visa concluir toda questão malresolvida na história da filosofia, por meio da linguagem, com originalidade, autenticidade e preciosismo semelhante aos de seus contemporâneos, também com sua dose de excentricidade.
Tanto na vida quanto na obra de Wittgenstein, a resposta não concluiu nada, e acabou levantando ainda mais questões. Wittgenstein parte de uma casa burguesa vienense para estudar aeronáutica numa escola técnica superior, que acaba abandonando para estudar filosofia em Cambridge, alcançando aí nível de doutor. Insatisfeito, parte para uma verdadeira odisseia de autoconhecimento que resultou em suas últimas obras filosóficas, obras que apresentam um Wittgenstein tão diferente, que passaram a ser referidas na literatura como sendo obras de um “segundo Wittgenstein”.
Em essência, seja para Adorno, Freud ou Wittgenstein, o problema reside justamente na linguagem. Este foi o problema central que permeou a redação do Tractatus. A psicanálise é uma proposta de abordagem médica que parte do diálogo como método de tratamento de neuroses. O serialismo é uma técnica de composição musical baseada no estabelecimento de séries de notas aleatórias e sem vínculo harmônico, ou quase sempre evitando tal vínculo, que irão perpassar toda a peça musical. São propostas revolucionárias, quase inaceitáveis aos olhos dos tradicionalistas. O que ocorre é que estavam surgindo ali novas formas de linguagem, diferentes daquelas já presentes há muito.
Uma nova linguagem pressupõe uma nova lógica. Daí a psicanálise ser amplamente ensaística e discursiva em suas primeiras publicações, a música ser mais analítica e concreta (para usar a expressão vulgar: expressionista) e, claro, a filosofia, tanto em Wittgenstein como nas tradições filosóficas continental e anglo-saxã, enfrentaria tais novos “sistemas” linguísticos, estéticos e lógicos. Mas isso se deu ao longo de um grande período de tempo.
A nova lógica pode, muitas vezes, trazer consigo um novo método. O método próprio da psicanálise não é, a rigor, científico, pelo menos não no sentido tradicional. Os novos métodos de composição musical não partem mais do discurso tonal. Estudar a lógica da linguagem funda novo método filosófico em uma série novas disciplinas, enfim, é uma longa etapa histórica do método.
Quando falamos em lógicas próprias, em novos métodos, se evidencia a percepção filosófica de Wittgenstein, dada sua delimitação clássica: o limite da linguagem é o limite do mundo, e “sobre o que não se pode falar, deve-se calar”; se tomamos esta regra geral, conseguiremos extrair os modelos básicos de conhecimento humano em geral (epistemologia, metafísica, ciência, etc.), e, no caso da(s) ciência(s), conseguimos uma delimitação ainda mais específica. Aqui vemos que a psicanálise foge à regra de uma ciência no sentido clássico de ciência da natureza, pois ela tem elementos alheios a esta delimitação. De igual modo a arte oscila entre técnica e estética.
A recepção filosófica da psicanálise não foi imediata nos países de língua alemã, mas não demorou para que Freud fosse lido e discutido nas academias francesa e inglesa. Tal recepção se deu mais por adaptação do material psicanalítico aos sistemas filosóficos das grandes tradições (marxismo, fenomenologia, filosofia analítica, etc.), no primeiro estágio, depois houve uma fase de “retorno a Freud”, e, posteriormente, um diálogo entre ambas as disciplinas. Assim surgiu, ao longo do século XX, o que hoje é a filosofia da psicanálise.
Já a filosofia da música é uma especialização de uma área existente entre as várias área da filosofia: a estética (ou filosofia da arte). A especialização começa a ocorrer quando da publicação dos romances musicais de E. T. A. Hoffmann (1776-1822); passa pelo periódico musical de Robert Schumann (1810-1856) e culmina na obra escrita de Richard Wagner (1813-1883), amplamente influenciado por seu amigo Nietzsche (1844-1900) e mentor Schopenhauer (1788-1860). Com o surgimento e consolidação das novas tendências teóricas antes e durante a virada do século, a separação da música das outras artes foi um passo necessário, devido a, por exemplo, o surgimento dos conservatórios e a demanda por músicos profissionais com nível cada vez mais sofisticado de formação, a variedade das disciplinas específicas dentro da arte musical, etc.
A filosofia da linguagem, como a conhecemosm foi inaugurada inicialmente por Frege (1848-1925) e Russell (1872-1970), duas grandes inspirações para o jovem Wittgenstein, que a consolidou como área específica da filosofia. A obra inicial do vienense, com definições axiomáticas a respeito da natureza da linguagem e seus limites, bem como da percepção humana que nela se manifesta, é um tratado sobre “como filosofar” e também sobre “o que é lógica”, assim, terminou por unir ambas as questões em apenas uma: qual a lógica do filosofar? Daí seu título: Tratacuts logico-philosophicus, em latim, à maneira das edições medievais de Platão e Aristóteles. O alcance deste trabalho é, segundo consta no prefácio, estendido a toda estrutura própria do pensamento. Os problemas da filosofia estariam encerrados em seus sete axiomas e desdobramentos, porque, segundo Wittgenstein, todos os problemas surgiram de “uma má-interpretação de nossa própria linguagem.”
Mas nada é definitivo na história, e não se é diferente na história da filosofia. Em sua idade mais avançada, Wittgenstein percebe que seu trabalho, apesar de conter valor intrínseco e inquestionável na história da filosofia, não resolve todas as questões filosóficas, mas levanta outras, principalmente após o advento das mídias e tecnologias do pós-guerra.
A lógica própria do discurso musical era, até os anos de 1910, a lógica da tonalidade. Haviam disparidades rítmicas, formais e materiais quanto à lógica da composição musical, e estas eram aceitáveis, mas o limite da tonalidade era, via regulae, respeitado na maioria dos casos. É semelhante à autoridade atribuída à lógica aristotélica, por exemplo. Era como um dogma. Extrapolar os limites da tonalidade já era algo presente na música europeia do século XX quando Schönberg surgiu, mas este deu uma fundamentação teórica para tal extrapolação, assim como fizera Wittgenstein no que tange ao tratamento da linguagem.
Por um lado há uma revolução de princípios bimilenares quanto à composição de uma proposição (lógica da identidade); por outro, uma revolução de princípios bimilenares quanto à composição musical geométrica (harmonia segundo Pitágoras). O problema foi encarado desde a raiz, de modo cartesiano.
Wagner (1813-1833) era visto por Nietzsche (1844-1900) como um retorno à tragédia grega original, e sua obra foi o fator determinante para essa mudança brusca de linguagem da música. Esta influenciou os valores estéticos da velha Europa e trouxe elementos revolucionários, quando das revoluções de 1848. A tonalidade começa a perder seu valor impositivo nas últimas obras do compositor alemão, e foi lentamente substituída pela expressão sonora pura. Na obra teórica de Wagner (vale constar que por obra teórica compreendemos sua obra escrita em forma de ensaios e tratados) há resquícios de uma epistemologia própria. Aqui voltamos à questão do novo método, a nova lógica desta forma de linguagem particular.
Tanto em Wagner quanto em Brahms (1833-1897), seu direto oposto “epistemológico”, vemos uma tendência à centralidade do pensamento, uma formação filosófica e literária como pano de fundo da obra e estilo de cada compositor era algo indispensável, e foi-se tornando cada vez mais necessária uma disciplina filosófica especial para a arte dos sons. Wagner era um bom começo, pois atuava como compositor e como teórico da filosofia da arte. Adorno, como muitos outros, escreveu extensivamente sobre Wagner. A questão epistemológica se mostrou significativa aqui, seja nos escritos de Wagner e Adorno, seja naquilo que simboliza o fato de que uma das visitas frequentes à casa dos Wittgenstein era o próprio Brahms.
A obra citada acima, de Schönberg, é quase um tratado de filosofia da música, por sua apresentação ensaística e sistemática, embora não-tradicional, quando se fala de tratados de harmonia. Seu sucesso foi perceptível, tanto que atraiu uma seita de seguidores e consolidou uma escola. Não fosse o advento do terceiro Reich, sua estética teria vingado na Europa por muito mais tempo e espaço. Mas, nos EUA encontrou abrigo. Assim como a obra dos vanguardistas, e até alguns filósofos. Wittgenstein se retirou de sua pátria e encontrou abrigo em Inglaterra, de modo semelhante a Schönberg e Adorno, devido à guerra.
Theodor Adorno foi um dos primeiros a verbalizar literalmente “filosofia da música” no título de alguma obra importante sobre o tema, daí sua relevância no presente assunto. Até porque sua obra musical é de vida curta e quase não obteve aprovação por parte do público e da crítica. O livro sobre Beethoven era justamente uma tentativa de relacionar a personalidade forte do mestre de Bonn com sua obra e seu tempo. Aquele, sobre Mahler, tem mais que ver com a psicanálise.
Os grandes compositores sempre foram uma fonte quase inesgotável de casos psicanalíticos. Mozart com suas fantasias, Schubert com suas limitações, Mahler com suas aflições e Tchaikovsky com sua depressão. Mahler é o caso mais caricato, pois se consultou com Freud em pessoa, pouco antes de morrer. O que é importante ressaltar é que Adorno e seus colegas registraram todos esses casos ao relacionar obra e autor, tentando identificar ali uma filosofia da música que fosse intrínseca a cada personalidade. Coisa não muito diferente dos trabalhos mais biográficos de Freud, como Leonardo da Vinci (1910), por exemplo.
O escopo das investigações e o escrutínio de cada um desses grandes nomes criaram possibilidades para a consolidação de linhas de pesquisa filosófica sobre música, sobre a linguagem e sobre a psicanálise, presentes em todo o mundo.
Seja na direção da atividade criativa, seja na de atividade científica, a filosofia sempre está lá para confrontar as bases de cada tipo de saber, ora adaptando-o a si, ora encarando-o com honestidade e sem reservas. Para cada área do conhecimento humano haverá uma filosofia da tal área, por mais específica que seja: filosofia da música, filosofia da linguagem, filosofia da psicanálise etc. E, caso não haja, haverá filósofos para descobri-la.
Este artigo é o resultado adaptado do trabalho avaliativo final da disciplina “Filosofia da Psicanálise II”, ofertada pelo Prof. Dr. Weiny César, para o curso de Filosofia, UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, primeiro semestre de 2020. O trabalho de adaptação contou com a supervisão direta do referido professor.
Referências Bibliográficas
ADORNO, Theodor. Beethoven: Philosophy of Music. Cambridge: Polity Press, 1998.
ADORNO, Theodor. Mahler: A Musical Physiognomy. Chicago: Chicago University Press, 1992.
JANIK, Allan; TOULMIN, Stephen. Wittgenstein’s Vienna. Nova York: Touchstone, 1973.
LIBERMANN, Arnoldo. Mahler: Um coração angustiado. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
SCHÖNBERG, Arnold. Harmonia. São Paulo: Unesp, 2011.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. São Paulo: Edusp, 1993.
[1] Harmonielehre significa literalmente ‘teoria da harmonia’, porém o título do livro tem recebido suas versões próprias em traduções, como Manuale di Armonia em italiano, Traité d’Harmonie em francês, simplesmente Theory of Harmony em inglês e, em português, somente Harmonia. O primeiro projeto de tradução do texto Schoenberguiano foi tomado por Mário de Andrade, o autor, porém, abandonou o projeto. Na edição aqui referenciada, a tradução é de Marden Maluf. O texto trata da disciplina harmonia por um caminho inortodoxo que gerou certa dose de polêmica. A harmonia é tratada não da maneira positivista e cheia de regras, como era comum nos outros tratados de harmonia, mas com uma delimitação do assunto segundo seus limites conhecidos até ali, no final do século XIX. Uma delimitação dos limites da harmonia.