Reflexões sobre a filosofia da psicanálise

Por Henrique de Faria Guimarães e Weiny César Freitas Pinto
Colaborou Fabio Faria

Uma das muitas características que se costuma apontar como distintiva da filosofia em relação aos demais saberes consiste na amplitude notável de seu objeto, amplitude tão extensa a ponto de nele se ter a pretensão de absorver, em alguma medida, inclusive esses próprios saberes. Reconhece-se, dessa forma, entre as áreas do conhecimento filosófico, uma “filosofia do direito”, por exemplo, uma “filosofia da educação”, e, por que não, uma “filosofia da psicanálise”? Nada mais natural, afinal, tal como ocorre com o direito e com a educação, são múltiplas as relações que foram travadas entre a reflexão filosófica e a ciência psicanalítica, mesmo em se considerando o pouco tempo de vida desta última quando comparada à ciência jurídica e à pedagógica.

A partir deste ponto de vista, um primeiro exame sobre o que vem a ser mais propriamente a filosofia da psicanálise sugere que se trata então de um recorte do saber filosófico que reúne, em seu interior, tudo aquilo que efetivamente se produziu – e se pode produzir –, em filosofia, acerca da psicanálise. Em outras palavras, talvez possamos considerar o significado de filosofia da psicanálise por meio de uma dupla compreensão: como campo de pesquisa e como conhecimento acumulado. Como campo de pesquisa, trata-se de todo o trabalho de tipo propriamente filosófico, oriundo da interlocução com a ciência psicanalítica. Como conhecimento acumulado, refere-se a toda a filosofia que essa interlocução já produziu. Esta seria então uma espécie de primeira definição geral, aparentemente evidente, acerca do que é a filosofia da psicanálise; todavia, essa definição talvez não resista a um olhar historicamente mais aprofundado.

Pelo menos é o que são capazes de sugerir as pesquisas que se têm produzido, nesta área, no Brasil, particularmente desde a década de 1970, e das quais o filósofo brasileiro Luiz Roberto Monzani (1946) se destaca como um dos principais representantes. Em sentido geral, para Monzani, assim como para uma série de pesquisadores brasileiros, cujos trabalhos seguem em direção semelhante, nem todo o filosofar que se detenha, ou se tenha detido, sobre a psicanálise pode ser reunido sob a denominação de filosofia da psicanálise. Em outras palavras, que haja filosofia e que ela esteja em interlocução com a psicanálise são, no entender destes pesquisadores, condições necessárias, mas não suficientes, para a constituição de uma autêntica filosofia da psicanálise.

Quem são estes pesquisadores e de que maneira seu modo de conceber filosoficamente a psicanálise se difere daquele com que grandes tradições filosóficas, como a francesa, a alemã e a anglo-saxã em geral a conceberam, são temas que escapam ao escopo específico deste texto[1]. O que se pretende aqui é apenas examinar um pouco mais atentamente o que Monzani compreende como sendo filosofia da psicanálise e, além disso, tomando como exemplo um recurso que Adorno (1903-1969) faz ao pensamento freudiano, ilustrar como é possível, a partir da perspectiva de Monzani, conceber que haja, ao mesmo tempo, a interlocução entre uma autêntica filosofia e uma autêntica psicanálise, e que ainda assim, não se caracterize como uma autêntica filosofia da psicanálise.

Para isso, examinaremos dois momentos específicos em que Monzani oferece uma resposta à questão: o que é afinal filosofia da psicanálise? O primeiro momento, no artigo Discurso filosófico e discurso psicanalítico: balanços e perspectivas (MONZANI, 1991), de 1988, e o segundo, em O que é filosofia da psicanálise (MONZANI, 2008), de 2008. Após, apresentaremos uma citação de Adorno, extraída do ensaio Educação após Auschwitz (ADORNO, 1995), que é na verdade a transcrição de uma palestra por ele ministrada em 1965, para então discutir-se, como dissemos, por que o recurso filosófico que Adorno naquele momento faz à psicanálise não se caracteriza como filosofia da psicanálise, nos termos de Monzani.

Em Discurso filosófico e discurso psicanalítico: balanços e perspectivas, Monzani (1991) caracteriza a filosofia da psicanálise a partir de cinco modos específicos do trabalho filosófico: 1) um trabalho teórico de precisão dos conceitos psicanalíticos, 2) um trabalho genealógico de certos conceitos e entidades teóricas, 3) um trabalho em torno da significação e das implicações dos textos freudianos, 4) um trabalho de delimitação das regras e dos procedimentos que regulam a constituição do campo analítico, a questão da clarificação do método e 5) um trabalho de epistemologia da psicanálise (Cf. MONZANI, 1991, pp. 127-132). Já fica claro, neste primeiro momento, que não estão aí contempladas todas as relações possíveis entre o pensamento filosófico e a ciência freudiana.

Na segunda vez em que trata do tema, em O que é filosofia da psicanálise, o filósofo brasileiro reduz de cinco para três, os modos de trabalho característicos deste campo: 1) um trabalho de genealogia conceitual; 2) um trabalho estrutural e 3) um trabalho epistemológico (Cf. MONZANI, 2008, pp. 14-16).

O primeiro deles, o trabalho de genealogia conceitual, consiste fundamentalmente numa pesquisa de “história das ciências, ou dos saberes, que pergunta pela origem histórica dos conceitos psicanalíticos” (FREITAS PINTO, 2016, p. 203), quer dizer, na tentativa de “descobrir, demonstrar e compreender quais as influências e determinações conceituais que, em alguma medida, estão presentes na constituição mesma do discurso psicanalítico” (FREITAS PINTO, 2016, p. 202). Trata-se, portanto, de, como explica Monzani, “retraçar” tramas conceituais que conduzem a Freud, ou de procurar compreender como ele se relaciona com determinadas “redes” ou “grades” conceituais, construídas a partir do pensamento de outros autores (MONZANI, 2008, p. 14).

O segundo modo, por sua vez, o trabalho estrutural, consiste basicamente num “trabalho de reconstituição discursiva, de análise dos procedimentos e encadeamentos do discurso da psicanálise” (FREITAS PINTO, 2016, p. 203). Em outras palavras, em “tomar a teoria psicanalítica como uma rede discursiva, tratá-la assim, como um tecido de significações que vale a pena ser explicitado, comentado, discutido e interpretado” (MONZANI, 2008, p. 14), e então examinar, a partir daí, “a movimentação interna dos conceitos, suas nuances em cada proposição, alteração, abandono ou retomada” (FREITAS PINTO, 2016, p. 203).

O terceiro modo, por fim, o trabalho epistemológico, consiste na pesquisa dos “critérios próprios e específicos de validação” que regulam a produção do conhecimento psicanalítico, bem como da noção de verdade que emerge desses critérios e do caráter peculiar que eles conferem à psicanálise face à multiplicidade dos demais saberes (MONZANI, 2008, p. 15).  

Trata-se assim, é verdade, de duas delimitações diversas dos contornos daquilo que se pode considerar como sendo, no entendimento de Monzani, filosofia da psicanálise. Uma, porém, como adverte Freitas Pinto (2016, pp. 203-204) não se opõe à outra. Isso porque, na medida em que o primeiro dos cinco modos da formulação mais antiga é absorvido pelo trabalho genealógico, na mais nova, assim como o quarto dos cinco modos é absorvido pelo trabalho epistemológico, na última formulação, esta última elaboração se apresenta, na verdade, não como uma negação, mas apenas como uma retomada daquela primeira, mais concisa e ao mesmo tempo mais bem desenvolvida.

Se isso é, portanto, na compreensão de Monzani, fazer filosofia da psicanálise, fica mais clara, então, como dissemos, a possibilidade de se produzir uma filosofia em alguma medida relacionada à psicanálise e que, ao mesmo tempo, não seja propriamente filosofia da psicanálise. Como acontece, por exemplo, quando Adorno recorre a Freud, num dado momento de Educação após Auschwitz, a fim de afirmar determinado parentesco, com certa parcela da obra freudiana, daquela sua tese segundo a qual as mesmas condições sociais que produzem a civilização também produzem explosões de barbárie do tipo de Auschwitz. O filósofo alemão afirma:

Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. É isto que apavora. Apesar da não-visibilidade atual dos infortúnios, a pressão social continua se impondo. Ela impele as pessoas em direção ao que é indescritível e que, nos termos da história mundial, culminaria em Auschwitz. Dentre os conhecimentos proporcionados por Freud, efetivamente relacionados inclusive à cultura e à sociologia, um dos mais perspicazes parece-me ser aquele de que a civilização, por seu turno, origina e fortalece progressivamente o que é anticivilizatório. Justamente no que diz respeito a Auschwitz, os seus ensaios O mal-estar na cultura e Psicologia de massas e análise do eu mereceriam a mais ampla divulgação. Se a barbárie encontra-se no próprio princípio civilizatório, então pretender se opor a isso tem algo de desesperador (ADORNO, 1995, pp. 119-120, grifos do autor).         

Como se pode observar, o recurso a Freud acontece, neste trecho, como busca de sustentação teórica a um dos momentos do argumento que ali se desenvolve. Defende-se que, embora Auschwitz seja um episódio do passado, as condições que o produziram ainda persistem, ao menos naquilo que elas têm de fundamental: a pressão social continua se impondo e impelindo os indivíduos, o que acaba culminando em explosões de barbárie daquele tipo. Neste momento da argumentação, Adorno faz então menção à ideia freudiana de que a civilização origina e fortalece progressivamente o que é anticivilizatório. A relação entre esta ideia e a primeira é de convergência, e portanto de reforço, de respaldo: o processo civilizatório traz consigo o desenvolvimento simultâneo do germe anticivilizatório e esse processo fundamentalmente não mudou desde a ocorrência de Auschwitz, de modo que, ainda que invisíveis, as condições que produziram esta ocorrência permanecem. Por fim, conclui-se sugerindo que as duas obras mencionadas de Freud podem fornecer explicações relevantes para eventos como Auschwitz. Explicações que convergem, ao que tudo indica, com a argumentação que é desenvolvida, ou das quais, como parece sugerir o último trecho da citação, ela pode se seguir.

Parece não haver dúvida de que se trata aqui de uma efetiva interlocução entre a reflexão filosófica e a ciência psicanalítica. Ao apelar à ideia freudiana de que a civilização origina e fortalece o que é anticivilizatório e ainda ao remeter às duas obras mencionadas do pai da psicanálise, Adorno traz à tona não só esta ideia isoladamente, mas toda a teoria psicanalítica que a fundamenta. É como se toda a teoria psicanalítica que culmina nesta ideia viesse respaldar o argumento filosófico que o autor ali constrói. Há, portanto, uma filosofia que se relaciona com a psicanálise. Mas não há filosofia da psicanálise; pelo menos, não nos termos em que, como mostramos, Monzani a compreende.

Afinal, quando faz referência à mencionada ideia freudiana do desenvolvimento simultâneo da civilização e do que é antivilizatório, Adorno não o faz em busca de sua “origem histórica” (FREITAS PINTO, 2016, p. 203), ou na tentativa de identificar quais influências conceituais se podem nela perceber. Não está em busca de reconstruir “redes” ou “grades” conceituais das quais ela de alguma maneira participe (MONZANI, 2008, pp. 14). De igual modo, quando remete aos ensaios O mal-estar na cultura e Psicologia de massas e análise do eu, o filósofo frankfurtiano não pretende inseri-los num “trabalho de reconstituição discursiva, de análise dos procedimentos e encadeamentos do discurso da psicanálise” (FREITAS PINTO, 2016, p. 203). Também não se presta a um exame de como aquela primeira ideia se movimenta na teoria psicanalítica considerada enquanto “rede discursiva”, “tecido de significações” que se deva interpretar e comentar (MONZANI, 2008, p. 14), ou mesmo como ela aparece tão somente naqueles dois ensaios de Freud, quais as alterações que sofre de um a outro e assim por diante. Por fim, não é igualmente o propósito de Adorno, em momento algum do trecho citado, procurar explicitar quais são as regras que orientam a produção do conhecimento psicanalítico ou como a elaboração, por Freud, da mencionada ideia acerca da civilização e do germe anticivilizatório, nas obras mencionadas, teria respeitado essas regras.

Em outras palavras, Adorno não faz, no trecho citado, nem genealogia conceitual, nem um trabalho estrutural e nem tampouco um trabalho epistemológico. Portanto, embora produza uma filosofia em alguma medida em interlocução com a psicanálise, não produz filosofia da psicanálise, no sentido em que Monzani a define.

O que tudo isso significa? Que há em Monzani uma intransigente e limitada definição de filosofia da psicanálise? Ou a tentativa de superar uma primeira concepção, mais ampla e aparentemente evidente, mas, ao mesmo tempo, talvez superficial, deste novo campo da pesquisa filosófica contemporânea, para dele então formalizar uma definição rigorosa? O que indicam, especialmente, como dissemos, as pesquisas brasileiras nesta área, estamos muito mais no regime da tentativa que no da intransigência.

Este artigo é o resultado adaptado do trabalho avaliativo final da disciplina “Filosofia da Psicanálise II”, ofertada pelo Prof. Dr. Weiny César, para o curso de Filosofia, UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, primeiro semestre de 2020. O trabalho de adaptação contou com a supervisão direta do referido professor.

Referências

ADORNO, Theodor W.. Educação após Auschwitz. In: ADORNO, Theodor W.. Educação e emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 119-138.

FREITAS PINTO, Weiny César. Do círculo à espiral: por uma história e método da recepção filosófica da psicanálise segundo o freudismo filosófico francês (Ricoeur) e a filosofia brasileira da psicanálise (Monzani). 2016. Tese (doutorado em filosofia) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas. Disponível em: <http://www.repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/321356/1/FreitasPinto_WeinyCesar_D.pdf>. Acesso em: 04 jun. 2020.

MONZANI, Luiz Roberto. Discurso filosófico e discurso psicanalítico: balanços e perspectivas. In: PRADO JÚNIOR, Bento. (Org.). Filosofia da psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 109-138.

MONZANI, Luiz Roberto. O que é filosofia da psicanálise?. Philósophos, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 11-19, 2008.

[1] Para uma exposição abrangente acerca dos pesquisadores brasileiros mais importantes desta filosofia da psicanálise, bem como para uma defesa de sua distinção em relação ao modo como a tradição filosófica francesa recebeu a psicanálise, consultar FREITAS PINTO (2016). 

Henrique Guimarães

Henrique Guimarães

Colunista

Acadêmico do curso de Filosofia da UFMS

Weiny Freitas

Weiny Freitas

Colunista

Professor do Curso de Filosofia da UFMS. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas

Fábio Faria

Fábio Faria

Diretor de arte

Estudante de jornalismo e ilustrador. Interessado em artes, cultura e assuntos do espectro político.

Compartilhe:

Relacionadas

Leave a Reply

 

A  B a d a r ó  f a z  u m

j o r n a l i s m o  i n o v a d o r,

ú n i c o  e  i n d e p e n d e n t e.

 

E n f r e n t a m o s  o s

i n t e r e s s e s  d o s  m a i s

p o d e r o s o s,  m e s m o

s e m  m u i t o s  r e c u r s o s.

 

C o n t r i b u i n d o  p a r a

c o n t i n u a r m o s  n o s s o

t r a b a l h o,  v o c ê  r e c e b e

n o s s a  r e v i s t a  i m p r e s s a

e  o u t r o s  m a t e r i a i s

e x c l u s i v o s.

 

P l a n o s  a  p a r t i r  

d e  1 0  r e a i s

Isso vai fechar em 20 segundos