Teoria das ciências humanas: uma ciência “pura” ou ideológica?
- 26 de junho de 2020
Por Mateus Prado e Weiny Freitas
Ilustração por Fabio Faria
A humanidade atravessa, notadamente desde o fim da última década, um de seus períodos de acentuada nebulosidade. A Ciência, como mecanismo de produção de conhecimento e verificação de “verdades”, tem recebido ataques de agentes de vários setores da sociedade, desde governantes negacionistas até supostos acadêmicos (as) e cientistas, que acabam por influenciar a opinião pública acerca de temas essenciais à vida humana. Trata-se de uma grave regressão histórica e cultural, a qual nos leva a lidar com práticas obscurantistas semelhantes às utilizadas no período da Idade Média (Sécs. V-XV), por mais inacreditável que essa constatação possa soar.
Nesse cenário, até mesmo as disciplinas tradicionalmente vistas como representantes genuínas do desenvolvimento científico, as chamadas “ciências exatas”, passam por essa negligência. No caso das “ciências humanas” o quadro agrava-se significativamente, uma vez que, apesar de mais de um século de desenvolvimento, ainda são vistas como epistemologicamente frágeis e não detentoras de status científico.
Diante disso, as contribuições do filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005) mostram-se pertinentes para realçar a importância da Ciência, bem como para refletir sobre os problemas e possíveis soluções da epistemologia das ciências humanas. Uma reflexão a ser destacada da vasta obra do autor está presente no artigo Ciência e ideologia (1974), no qual teoriza sobre a coexistência de ambas estas dimensões no pensamento humano, bem como as suas implicações no processo de construção do campo científico, incluindo todos os ramos do saber.
Ricoeur, ao analisar os critérios do fenômeno ideológico, o faz em um campo alternativo à concepção marxista de classes sociais e classe dominante. O filósofo francês opta por uma abordagem weberiana do tema, isto é, uma abordagem concernente aos conceitos de ação e relação sociais. Ora, para Max Weber, constata-se a ação social quando o comportamento humano é significante para os agentes individuais, ou seja, na medida em que o comportamento de um seja orientado em função do comportamento de outro.
Sendo assim, em conjunto à ideia de relação social, verifica-se uma certa estabilidade e previsibilidade de um sistema de significações. Nesse quadro de caráter significante da ação, mutuamente orientado e socialmente integrado, surge o fenômeno ideológico em toda a sua originalidade, haja vista a necessidade do grupo social de dar a si uma imagem de si mesmo, uma representação coesa de si próprio.
A partir dessa formação sistemática de significações e identidade de pensamento, nem sempre consciente, porém sempre inerente ao comportamento humano, tem-se que a ideologia é, antes de tudo, operatória e não temática, ou seja, o fenômeno ideológico não pode ser visto, em primeiro lugar, como um tema a ser debatido, mas como uma operação da vida, pois atua como um sistema significante, gradativamente estabelecido e incrementado, funcionando às nossas costas, como uma espécie de guia, que conduz nossos pensamentos e critérios valorativos.
Eis uma das teses fundamentais de Paul Ricoeur, qual seja, a de que a ideologia é um fenômeno inexorável da existência social, o qual não pode ser ultrapassado, tendo em vista que a própria realidade social tem, desde sempre, uma constituição simbólica e, da mesma forma, por meio de imagens, representações e designações, sempre comporta uma interpretação, inclusive do próprio laço social.
Extrai-se desse pensamento que nada escapa à ideologia, fenômeno inevitável na vida social humana, abarcando a tudo e a todos. Contudo, na acepção para a qual aponta Ricoeur, ideologia não consiste necessariamente em algo negativo – conforme estamos majoritariamente acostumados a pensar desde a interpretação marxista. Há na ideologia uma função operatória de “integração social” que constitui seu caráter inegavelmente positivo, qual seja, a vida social, em comunidade, só é possível graças à ideologia da identidade pessoal/social que ela mesma, a vida comum, produz de si própria.
Nessa perspectiva, não é possível pretender falar sobre ideologia partindo de um lugar não ideológico. No contexto específico de nossa análise sobre as ciências humanas, infere-se então que são ideológicas inclusive as “ciências exatas”, pois são, como toda e qualquer ciência, subjugadas àquela mesma fundação simbólica originária – portanto, ideológica – por meio da qual todo o nosso corpus cultural – científico, político etc. – se constitui; o que, no entanto, não as impede de produzir conhecimentos objetivos.
Todavia, considerando a concepção positivista de ciência, parte significativa de nós crê ser possível estabelecer um sistema rígido de postulados científicos capazes de produzir um conhecimento “puro”, o qual esteja acima de valorações subjetivas, ideológicas.
É exatamente nesse ponto do debate que reside a principal crítica às ciências humanas, consideradas desprovidas do referido sistema epistemológico capaz de lhe entregar o status rigoroso de ciência. Essa visão acaba por considerar tais ciências como meros discursos subjetivos, ideologizados e não científicos. Aqui, a reflexão situa-se então sobre os sentidos positivista e não positivista em que se toma a palavra ciência.
Sobre a acepção positivista de ciência há certo entendimento amplamente convencionado sobre dois critérios a serem observados, de modo a revestir uma teoria de cientificidade:: 1) somente será considerado científico o resultado capaz de propor uma explicação racional de fenômenos até então ininteligíveis e, concomitantemente, 2) de resistir com êxito às tentativas de falsificação – verificação – às quais é submetido sistemática e rigorosamente.
Nota-se que os dois critérios referidos devem ser adotados, obrigatoriamente, em conjunto, algo muitas vezes não observado nas formulações teóricas das ciências humanas, haja vista que nessas disciplinas, inúmeros são os exemplos de teorias competentes no quesito da explicação totalizante e coesa de determinados fenômenos, mas falhas no momento de sua verificação. Por outro lado, existem os casos de teorias parciais – não totalizantes –, mas bem verificadas, encontradas, por exemplo, na demografia e em outros segmentos teóricos baseados na matemática ou na estatística.
Com efeito, a outra acepção, não propriamente positivista, concebe a ideia de ciência como “crítica”. Nessa construção teórica, segundo Ricoeur, exige-se a presença de uma “crítica verdadeiramente crítica”, ou seja, basicamente trata-se de uma pretensão de tornar o teórico das ciências humanas suficientemente capaz de, com isenção e impessoalidade, realizar suas reflexões de maneira completa e não ideologizada.
Nesse sentido, uma consciência radicalmente crítica seria alcançada tão somente no caso uma “reflexão total”, única instância capaz de formular uma teoria epistemológica global na esfera das ciências humanas. Para tanto, o cientista deveria atingir uma posição de “neutralidade axiológica”, nos moldes do pensamento de Max Weber. Seria necessário que o teórico tivesse acesso, efetivamente e a cada instante, a um ponto de vista que abrangesse integralmente a si e o que se analisa, diferenciando e suspendendo por completo suas respectivas representações preconcebidas.
Ora, Ricoeur constata que, caso isso ocorresse, os teóricos das ciências humanas redundariam no discurso ideológico pelo simples motivo de que para atingir a “reflexão total”, nos parâmetros expostos acima, seria necessária a existência de um “saber absoluto”. Eis o drama epistemológico real das ciências humanas, motivo pelo qual não podem escapar totalmente da condição ideológica.
Diante desse quadro, em observância às conclusões de Ricoeur, apresentamos algumas proposições suscetíveis de conferir maior sentido ao par terminológico ciência-ideologia. Salientamos que tais apontamentos oferecidos pelo filósofo teriam como objetivo a constituição de um modelo epistemológico hermenêutico a ser aplicado à formalização das ciências humanas.
A primeira delas concentra-se na noção de “pertencimento”, fenômeno que nos precede e nos conduz, bem como antecede a própria produção de qualquer saber objetivo no campo das ciências humanas. Antes de qualquer distância crítica, o observador já pertence a uma história, a uma classe, a uma nação, a uma cultura. Ao admiti-lo, reconhece-se também a presença da ideologia, enquanto mediadora da imagem, da representação de si e do ambiente exterior, com seus sujeitos e objetos. O resultado é a verificação de um ser que jamais ocupa a posição soberana de um sujeito capaz de pôr à distância de si a totalidade de seus próprios condicionamentos, impossibilitando a reflexão total e a eventual formação de um saber inteiramente não ideológico.
A segunda proposição indica que é possível desenvolver um saber objetivo, relativamente autônomo, no contexto da epistemologia das ciências humanas, mesmo estando o teórico sempre precedido da referida noção de pertencimento. Tal autonomia relativa, isto é, o momento crítico da análise, é possível em virtude do fator de “distanciação”. Nesse sentido, todo pôr-à-distância – operado no regime acima, do pertencimento – é um pôr-se-à-distância de si, de modo a compreender-se e a detectar a própria gama de ideias preconcebidas, tornando possível suspendê-la parcialmente, pois não existe a possibilidade de compreender-se totalmente, e tampouco de suspender na totalidade o que se compreende em parte. Esse processo, se não permite atingir um conhecimento sem qualquer resquício de ideologia, pelo menos possibilita ao teórico aproximar-se da interpretação objetiva do que se investiga. Trata-se de uma distanciação dialeticamente oposta ao pertencimento, inserida no plano hermenêutico. Com isso, nota-se ser viável a conquista do saber objetivo, científico, mas jamais livre completamente da ideologia, haja vista a distanciação, como afirmado acima, nunca se realizar por completo.
A terceira proposição de Ricoeur liga-se à noção de que todo saber, incluindo a pretensa crítica das ideologias, permanece sempre conduzido por um “interesse”. Esse interesse, ele mesmo, provém de uma ideologia, o que impede a teoria crítica das ideologias, bem como a qualquer saber científico, de romper completamente seus vínculos com o fundo de pertencimento que as sustenta. Desse modo, seja a teoria crítica das ideologias, sejam as ciências, todas elas restam, portanto, ideológicas.
Assim, conclui-se que a busca das ciências pela fórmula do conhecimento “puro” é perene, e alcançá-lo é improvável. No contexto da relação ciência-ideologia, tal como pensada por Ricoeur, relação mediada, como vimos, pela noção tríplice “pertencimento, distanciação e interesse”, não parece haver um sentido de anulação mútua, mas pelo contrário, de coexistência. O saber está a todo instante desligando-se da ideologia, e esta, como esquema de interpretação, jamais permite que o sujeito se torne um intelectual/cientista completamente livre de amarras preestabelecidas.
Quanto especificamente ao desenvolvimento da epistemologia das ciências humanas, os exercícios permanentes de “pôr-à-distância” (pertencimento), “pôr-se-à-distância de si” (distanciamento), visando a análise objetiva e impessoal, e de retomar a substância histórica (interesse), podem servir como mecanismos para aproximá-la de uma “hermenêutica da compreensão histórica”, seguramente um modelo epistemológico promissor para as ciências humanas.
Este texto é o resultado adaptado do trabalho avaliativo final da disciplina “Epistemologia das ciências sociais”, ofertada pelo Prof. Dr. Weiny César, para o curso de Ciências Sociais, UFMS, primeiro semestre de 2020. O trabalho de adaptação contou com a supervisão direta do referido professor.
Referência bibliográfica
RICOEUR, Paul. “Ciência e Ideologia”. Trad. Balthazar Barbosa Filho. In: Cadernos de História e Filosofia da Ciência, n. 1, 1980. pp. 21-43.
Mateus Prado
Colunista
Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul UFMS).