#ExposedCG: relatos de assédio estimulam debate na internet

Por Marina Duarte, Guilherme Correia e Mylena Fraiha
Colaboraram Fabio Faria, Leopoldo Neto e Norberto Liberatôr
Ilustrações por Marina Duarte


No Brasil, as últimas semanas foram marcadas por uma
série de depoimentos feitos no Twitter com a hashtag #exposed. Foram milhares de relatos de mulheres de diversas cidades, que sofreram violência sexual, física ou psicológica, que até então sentiam receio ou dificuldade de revisitar o episódio traumático, mas se sentiram encorajadas a falar sobre o assunto.

Em diferentes localidades, o fenômeno surgiu e evidenciou denúncias em comum, todas tipificadas em leis: situações em que mulheres foram abordadas na rua, em festas ou por ex-parceiros, além de exposição de “nudes” na internet. 

Este tipo de onda de denúncias ocorreu anteriormente em outros momentos e despertou mobilizações dentro e fora da rede. Desde 2015 denominados por veículos e movimentos como marco de uma “Primavera das Mulheres” no Brasil,  atos de contestação contra a cultura do estupro e o machismo têm ganhado força, além dos levantes contra projetos de lei conservadores que tramitam no Congresso Nacional. Uma dessas mobilizações foi a “Greve Internacional Feminista”, que no exterior contou com  adesão maciça, porém relativa no Brasil.

Os movimentos surgidos naquela época atingiram recentemente o que pode ser considerado estopim e passaram a ocupar as ruas e gerar ondas de denúncias criminais. Várias destas ações tiveram início nas redes, a partir de tags nas quais mulheres expuseram casos de violência física e simbólica que sofreram. Foi assim com a hashtag #MeToo (eu também, em português), surgida  após relato da atriz mexicana Salma Hayek contra o produtor Harvey Weinstein; e #MeuAbusadorSecreto, na qual brasileiras contaram casos que sofreram – relembrada ao lado da recente tag #Exposed.

No Twitter, os relatos começaram nas cidades de Londrina, Curitiba, Porto Seguro e Aracaju. No final de maio, foi iniciada a versão de Campo Grande. A #ExposedCG chegou nos assuntos mais comentados em todo o Brasil durante a manhã desta última terça-feira (2).

A tag em relação à capital de Mato Grosso do Sul – estado que possui a terceira maior incidência de denúncias de violência doméstica em âmbito nacional– surgiu no perfil da estudante universitária “Elizabeth” Brum. “Vi várias outras hashtags durante o mês de maio, em outras cidades. E tava esperando ansiosamente pela daqui, porque sabia que ia ser algo grande, até por conta dos índices de violência contra a mulher que são grandes aqui”, afirma Brum à Badaró.

“Não ver ninguém se mobilizar” foi o que motivou a estudante a coletar relatos. Para ela, incentivar outras mulheres a relatar as próprias vivências em anonimato seria encorajador para possíveis vítimas. A expectativa foi correspondida: até a publicação desta reportagem, houve mais de 20 mil tweets com a hashtag, com alcance de cerca de 14 milhões de contas entre os dias 2 a 5 de junho.

“Expor casos e vítimas foi muito importante porque existe uma repressão pessoal de quem sofre, e uma relutância em denunciar porque a gente é sempre subjugada pelas autoridades, já que vivemos numa sociedade machista e Campo Grande é uma cidade super conservadora”, conclui Elizabeth.

Medo de dizer para alguém e não ter credibilidade, diz a universitária, acaba por desencorajar o ato mais importante para vítimas – a denúncia. “Poder expor uma situação anonimamente sem precisar mostrar a cara, acho que foi o que encorajou as pessoas a se sentirem mais encorajadas”.

Denúncias, exposições e espaço público: repercussões

Também inserida na onda de denúncias, Helena* foi uma das vítimas que decidiu integrar a mobilização no Twitter. Ela afirma que seu agressor também teria praticado abuso psicológico e sexual com outras meninas. “Eu respondi o tweet dela falando que também havia passado pelas mesmas coisas com ele [agressor], mas eu até então não tinha escrito nenhum relato. Só que se o tweet for procurado pela hashtag, realmente existem muitos outros relatos sobre ele. Não fui só eu, outras meninas também já expuseram ele”. 

Anteriormente, o mesmo rapaz havia passado por outras denúncias nas redes sociais. Ao compreender que sua história tinha similaridades com casos de outras meninas que se relacionaram com o mesmo homem, Helena concluiu que se tratava de um padrão de comportamento do agressor. “Ele já foi exposto outras vezes nas redes sociais. Eu não tinha conhecimento, nem visto nada até hoje, mas eu não ficaria surpresa porque eu conheço ele. Ele era um pouco agressivo e chantagista também. Então várias meninas vieram falar comigo e ver esse movimento me incentivou”. 

O caso de Helena também gerou represálias. A jovem conta que um representante do agressor entrou em contato por telefone, com o intuito de coagi-la a apagar o tweet. “Ele me pediu de uma forma agressiva para eu me retratar. Não me chamou para nenhuma reunião, apenas simplesmente me ligou e enviou mensagens”.

O movimento digital conhecido como exposed chegou à Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), onde ao menos um boletim de ocorrência foi registrado com motivação na tag. Uma das páginas que acolheu relatos das vítimas fez uma publicação, na qual de compromete a acompanhar depoentes. “Várias pessoas me relataram que se sentiram mais seguras e elas decidiram denunciar formalmente. Esse é o próximo objetivo, fazer com que as pessoas consigam levar para a justiça para ser feito os processos legais. Mas antes, as pessoas precisam acreditar no que está sendo dito”, relata Elizabeth Brum.

A mobilização também evidenciou a cultura de normalização de abusos sexuais. Como aponta Helena, muitos dos agressores diziam não reconhecer a vítima ou até mesmo o ato praticado como uma forma de violência. “A gente percebe que tem relatos de homens que nem sabiam quem era a garota que tava denunciando na exposição, porque trata-se de uma atitude recorrente. Por ser comum, isso não marca a vida do homem. Ele segue vivendo a vida dele normalmente. Enquanto isso, o abuso marca a vida de uma mulher para sempre”.

Segundo o artigo 213 do Código Penal brasileiro, o crime de estupro é caracterizado pelo ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Ou seja, o crime de estupro pode ser praticado por conjunção carnal (penetração) ou por qualquer ato libidinoso. Nesse sentido, toda prática que venha a ferir a liberdade sexual de alguém é considerado crime, mesmo que não haja o contato físico entre autor e vítima.

Violência estrutural

Os relatos também trouxeram à tona casos de assédio no ambiente escolar. Pelo menos cinco professores de escolas particulares em Campo Grande tiveram os próprios nomes envolvidos em denúncias anônimas de abuso, depois da repercussão gerada pela tag. Entre as palavras mais citadas nos tuítes, foram encontrados os termos “professor” e “assédio” – além de casos de violência contra menores de idade ou de relatos sobre assédio ainda na infância. 

A alta incidência da palavra “professor” entre os relatos sugere um padrão de abusadores que se aproveitam da relação hierárquica entre professor e estudante. Para a artista e professora Fernanda Santa Rosa, “posição nenhuma como professor dá o direito de humilhar quem está aprendendo (…) Falo como profissional da educação, isso não existe, está errado”. Fernanda, que é também estudante, reforça a necessidade de não invalidar a vítima. “Não interessa se a pessoa dança, atua na área há mais tempo que você. O seu questionamento, seu incômodo, seu desconforto são válidos”.

O padrão comportamental revela uma realidade que as estatísticas já demonstram. Mato Grosso do Sul lidera o ranking de violação de direitos de crianças e adolescentes. Segundo dados divulgados em 18 de maio pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, foram 67,1 registros de denúncia no Disque 100 para cada 100 mil habitantes no ano passado. A média nacional foi de 41,3. No ranking de violência sexual contra adolescentes menores de idade, o MS também lidera e a maioria das vítimas é do gênero feminino (94,8%, in RGE, “Violência sexual contra adolescentes em Campo Grande, Mato Grosso do Sul”, 2015).

Quebra do silêncio

Para além do âmbito criminal e da necessária consolidação de denúncias oficiais contra eventuais episódios de violência, esse tipo de mobilização estimula reflexão social. A exposição pode ser o primeiro passo para a tomada de consciência coletiva.

Fernanda Santa Rosa acredita que o assunto precisa ser discutido e exposto. “Muitas vezes a gente se reconhece numa outra fala, ou começa a falar e entende o que está acontecendo conosco. Também é muito importante, como estamos falando de abusos feitos por homens, que eles pesquisem e que façam autocrítica. E não é só sobre repreender ou apontar o amigo, mas sobre escuta e aprendizado”. Santa Rosa finaliza ao dizer que é necessário aos homens “observar o que está fazendo, quais posturas dessas está reproduzindo e buscar a mudança, pois a gente pode conversar – e é uma gentileza nossa –, mas eles também têm como pesquisar,  têm acesso ao debate.”

A professora afirma que as mulheres devem se atentar à sutilidade de alguns abusos e reitera preocupação com abusos psicológicos. “A gente pode estar sempre aberta para aprender coisas a mais, mas temos de tomar cuidado com o abuso sutil. Esses abusos são algo que eles [homens] reproduzem, que é inconsciente, mas a gente não é psicóloga de ninguém – e eles precisam se tratar e falar sobre isso –, mas não é nossa responsabilidade, no trato social, fazer essa desconstrução”. 

Para Elizabeth Brum, o movimento iniciado nas redes tem anseios feministas. “Ter levantado isso para relatar a violência, que não foi só sexual, como também física e psicológica, enxergo sim como um levante feminista”. Ela acredita que esta “é uma forma de as mulheres se unirem e criarem uma rede de apoio”.

O fim do silêncio é um passo importante para quebra do ciclo da violência. Tal silêncio ainda é um obstáculo perpetuador de diversas formas de abuso. Por exemplo, apenas 35% dos casos de estupro são relatados às autoridades, segundo o Fórum Nacional de Segurança Pública de 2016. Anualmente, a tendência é um aumento nesses registros, o que não implica no maior número de casos ocorridos, mas na conscientização das vítimas, que se encorajam a romper o silenciamento.

Gênero e reprodução social

Questões como a evidenciação, em espaços públicos, de abusos que acontecem de maneira regular e padronizada remetem a um problema social estrutural: a naturalização da violência de gênero. No debate acadêmico, uma série de teóricas feministas se debruçam a discutir a normalização da reprodução social das relações de gênero. A pesquisadora italiana radicada nos Estados Unidos Silvia Federeci (2017, p. 202) se enquadra no grupo de pensadoras que discorre sobre o assunto em questão:

Por um lado, construíam-se novos cânones culturais que maximizavam as diferenças entre as mulheres e os homens, criando protótipos mais femininos e mais masculinos (apud Fortunati, 1984). Por outro lado, foi estabelecido que as mulheres eram inerentemente inferiores aos homens — excessivamente emocionais e luxuriosas, incapazes de se governar — e tinham que ser colocadas sob o controle masculino.

Federicci (idem, p. 204) defende que a subalternidade feminina faz parte de um longo contexto histórico de violência e de controle: A definição das mulheres como seres demoníacos e as práticas atrozes e humilhantes a que muitas delas foram submetidas deixaram marcas indeléveis em sua psique coletiva e em seu senso de possibilidades . Os estereótipos e os estigmas de gênero foram estruturados por gerações e assim utilizados para justificar as violências que prosseguem ainda hoje.

A escritora nigeriana Chimamanda Adichie, no livro “Como Educar Crianças Feministas” (2017), explora a possibilidade de apresentação do mundo para a criança, feita por seus responsáveis, para propor uma educação que propicie à criança uma ótica feminista da sociedade. Para tal, a pensadora sugere atitudes como não condicionar nada ao gênero e se posicionar contra estereótipos de gênero. Tais mudanças nas práticas e modos de perceber o mundo se mostram importantes em um processo mais amplo de reeducação sobre machismo, no qual é necessário repensar e transformar radicalmente a estrutura social, como também as relações sociais objetivas e subjetivas. 

Denúncias

Para registrar denúncias oficiais, a recomendação é ligar no telefone gratuito 180, da Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (CEAM), ou utilizar o e-mail [email protected]. Já no Disque 100 podem ser feitas denúncias de casos que envolvam crianças e adolescentes que tenham sido vítimas de violência sexual.

No Estado, a Polícia Civil disponibiliza a opção de “B.O Online e delegacia virtual” em seu site, onde a vítima tem acesso a todo o registro e consegue tipificar a denuncia como “Violência contra a mulher”. Estas e outras informações estão disponíveis no site do Governo Federal.

MARINA DUARTE

produtora-executiva

Ilustradora, acadêmica de psicopedagogia, estudou jornalismo. Militante feminista interessada na profunda transformação social.

Mylena Fraiha

Editora-executiva

Jornalista e pesquisadora em comunicação. Possui interesse nas áreas de meio ambiente, política e direitos humanos, além de produções audiovisuais.

Guilherme Correia

Repórter e Subdiretor de arte

Estudante de jornalismo. Entusiasta de muitas coisas, do futebol ao audiovisual. Interessado em educação, cultura e pautas sociais.

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1 Comment

  • […] Estupro é hediondo, não há dúvidas disso. As pessoas que passam por tal violação tendem a sofrer diversas consequências, que podem ser físicas (como ISTs e contusões), psíquicas (desenvolvimento de transtornos psíquicos) e/ou sociais (afetação de relações, no trabalho). Apesar de tantas sequelas que a violência pode trazer, por muitas vezes o abuso não é compreendido pela própria vítima, pois o seu estuprador tende a ser é um conhecido – e até mesmo alguém querido. […]

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