E aos que atrapalham os trens

Por Carolina de Mendonça
Ilustração por Fábio Faria

A ciência chegou em seu ápice no século XX com propostas de resolver os grandes males da humanidade. Por meio de estudos supostamente imparciais, são eleitas pragas que atrapalham a sociedade. Para lidar com esses ratos só havia uma forma possível: o extermínio. E assim construíram os trens que saíam dos centros urbanos em direção a um lugar distante de tudo e de todos.

A população assistia à passagem do trem, mesmo com pessoas dentro desses tentando fugir, clamando por liberdade, morrendo nos trilhos. Era uma forma de diversão sádica. Mal sabiam, e não queriam saber, que os trens eram em direção à morte. De fome, de frio, de sede, de infecções, de choque, de intoxicação medicamentosa, de raiva. O objetivo sempre foi matar as pragas. Em nome da razão.

Tal horror muito similar ao regime nazista ocorreu no Brasil República durante décadas na pequena cidade mineira de Barbacena, onde foi construído o “Hospital Colônia de Barbacena”, um gigantesco hospício que abrigava “loucos” de diversos pontos do Brasil. O terrível episódio ficou conhecido como Holocausto Brasileiro – que nos últimos anos originou um livro (Daniela Arbex/Geração Editorial/2013) e um documentário (90 min/2013/Armando Mendz, Daniela Arbex) com mesmo nome.

A comparação aos campos de concentração projetados por Hitler foi feita pelo psiquiatra italiano Franco Basaglia (1924-1980). O médico foi um expoente na reforma psiquiátrica italiana e teve grande influência na reforma brasileira. Para Franco, não se tratava apenas de “humanizar” o tratamento; os hospícios que reproduziam um controle social precisavam deixar de existir. Não há, para Basaglia, possibilidade de cuidado em reclusão.

As pessoas que chegavam em Barbacena por trens lotados eram retiradas das famílias para nunca mais vê-las. A ciência dizia que não tinha jeito para loucura. E propagavam que os loucos eram perigosos. A população passou a aceitar passivamente esse discurso de poder e, assim, mandar seus parentes, amigos e quem mais pudesse incomodar. A situação foi transformada no conto “Sorôco, sua mãe e sua filha”, pelo autor Guimarães Rosa, que trabalhou enquanto médico brevemente no hospital. Na estória, um homem entrega aquelas pessoas que restam em sua família para o Trem de Doido, para nunca mais serem vistas.

A situação anos depois inspirou Lô e Márcio Borges em uma das emblemáticas composições do álbum “Clube da Esquina”, a música “Trem de Doido”. A música dialoga com o conto de Guimarães Rosa lembrando que os “ratos” estão em toda parte. Inclusive em nossas casas.

Não precisa ir muito além dessa estrada
Os ratos não sabem morrer na calçada
É hora de você achar o trem
E não sentir pavor dos ratos soltos na casa
Sua casa

O trem podia ser “de doido”, mas a maioria que estava dentro deles não encaixava nos critérios de psicopatologia de sua época. Aproximadamente 70% dos que chegavam ao Hospital Colônia não tinham nenhum tipo de perturbação psíquica. Eram pessoas que incomodavam o status quo. Os mendigos, os LGBTs, os alcoólatras, as mulheres que engravidavam sem estarem casadas, os indígenas, os comunistas. A maior parte das pessoas internadas no hospício era pobre e negra.

Não existindo psicopatologia, não existia o que tratar, as pessoas eram somente depositadas lá para esperar (quiçá adiantar) a morte. Torturas por mau-comportamento eram constantes: duchas escocesas, eletrochoques, surras, camisas de força eram rotina no Hospital. Abusos físicos, morais, psicológicos e sexuais era a forma de pautar a relação profissional de saúde e paciente.

Sem diagnósticos, os tratamentos medicamentosos eram puramente contenções químicas. Em certo ponto os remédios não ficavam com a equipe de saúde do local, mas com os seguranças que, sem treinamento, obrigavam os internos a tomar aquela droga que eles julgassem mais adequada. Escolhiam por cor, formato, efeito. O objetivo era apenas não ser incomodado pelas vozes daquelas pessoas.

Todos ali humanos, porém, não eram tratados dessa forma. O asilo com capacidade para 200 pessoas chegou a ter 5 mil internos. Quanto mais gente, mais recursos eram enviados. Como não havia leitos para todos, alguns dormiam no pátio, mas nem todos acordavam pelo frio, e as camas foram retiradas, no seu lugar colocados capins. O símbolo da perda de humanidade dessas pessoas. Também se faltavam recursos básicos como água, esgoto e comida.

Esses fatores somados levaram a morte de dezenas de milhares de internos do hospital (calcula-se que aproximadamente 60 mil). Um cemitério foi construído logo ao lado, sempre como novos enterros começou a não dar conta do massacre em curso. Alguns corpos foram dissolvidos em ácido, ocultando os crimes hediondos contra os pacientes do hospital.

Encontrando uma nova forma de lucrar em cima dos pacientes e de sumir com os corpos desfalecidos. Traficando para uma faculdade de medicina da região esses corpos sem vida – e, há muito tempo, considerados sem alma. Os pacientes postumamente tendo seus corpos violentados e institucionalizados pela ciência, esta essa que por sua vez legitimava conhecimentos que mantinham a carnificina contra os “loucos de Barbacena”. Em nome da razão.

As atrocidades do “Hospital Colônia de Barbacena” hoje parecem muito distantes. O SUS adota um modelo de cuidado em liberdade com os Centros de Atenção Psicossociais (CAPS). O olhar do CAPS é oposto à lógica do manicômio, tendo o sujeito como um todo, o reintegra a sociedade e protagonista de sua vida. O vê como humano.

Todavia, a iniciativa privada vem buscando formas de cuidados em reclusão, com o apoio ideológico e financeiro do atual Governo Federal. As tendências neoliberais deixam de destinar recursos para o SUS visando as Comunidades Terapêuticas, que são visualmente lindas, como o Hospital Colônia era em sua construção. O discurso é bonito, mas usa de distorções de pesquisas mais recentes para promover uma forma de cuidado que se aproxima do controle.

A concepção de saúde é definida pela Organização Mundial de Saúde com um completo bem-estar biopsiquicossocial, um sujeito sem problemas físicos, sem grandes sofrimentos psíquicos e seguro e integrado socialmente. Esta definição não deixa de ter em si um discurso problemático e controlador, mas se trata do discurso legitimador da maior instituição de saúde do mundo. Cuidado em reclusão tende a trazer riscos para saúde mental, tão comentados no momento de pandemia, e destruir a possibilidade de uma saúde social.

É preciso se atentar aos indícios do genocídio. Reconhecer os indesejáveis, atualmente criminosos e/ou drogadictos, parar os trens (ambulâncias, camburões), recusar ver beleza nas fazendas que mais parecem hotéis, mas são hospitais. Somente assim não repetiremos o Holocausto Brasileiro.

Carolina de Mendonça

Carolina de Mendonça

Colunista

Estudante de psicologia, amante de utopias e com grandes flertes com o cinema.

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5 Comments

  • […] causavam algum tipo de incômodo ao status quo. O maior dos hospícios brasileiros no século XX, o Hospital Colônia de Barbacena, chegou a ser comparado a um campo de concentração nazista pelo italiano Franco Basaglia, […]

  • […] lembrar que hospícios não têm função social de cuidado, tem função de controle social daqueles que são indesejáveis. Bispo do Rosário era visto como indesejável, por isso rotulado como perigoso. Preto, nordestino, […]

  • Sensacional este texto. Não podia deixar de vir aqui agradecer à CAROLINA DE MENDONÇA, por sua dedicação na pesquisa e nos trazer tantas boas informações ainda escondidas nesse nosso país onde a miserabilidade da imprensa e da política ainda permeia.
    Triste saber de tudo isso e lembrar que hj ha uma gde legião defendendo essa podridão fascista que atropela nossos ansieos de liberdade.
    CAROLINA DE MENDONÇA, VC É MESTRA, MUITO OBRIGADO.

  • […] não era a única cidade que recebeu tal alcunha, já que em Minas Gerais, a Barbacena foi durante décadas uma “cidade dos loucos” por abrigar o maior manicômio do país, o Hospital Colônia, que chegou a ter 5 mil internos. […]

  • sensacional!! trem de doido é a minha música favorita do clube da esquina.. algo me tocava muito nesta canção, mas não havia feito a associação até o presente momento. li, chorei. tudo fez sentido.

    obrigada pelo texto rico e bela escrita, Carolina!

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