Apatia de padres ‘popstars’ sobre Lancellotti evidencia antigo racha na Igreja
- 7 de janeiro de 2024
Em meio a cobranças por solidariedade a colega perseguido pela extrema-direita, padres midiáticos se omitem e expõem antiga tensão entre Teologia da Libertação e Renovação Carismática
Por Norberto Liberator
A tentativa do vereador paulistano de extrema-direita Rubinho Nunes (União), um dos fundadores do MBL, de instaurar uma CPI que mire o padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo na Rua, tem causado comoção nas redes sociais e obrigado algumas figuras como o vereador Thammy Miranda (PL) a voltar atrás em suas posições. Para além das mobilizações nas ruas e nas redes sociais, ela evidencia também uma divisão histórica na Igreja Católica.
A perseguição do MBL ao sacerdote, que coordena ações junto à população em situação de rua, não é nova. Em 2020, o agora ex-deputado estadual Arthur do Val – cassado em 2022 após áudio em que sugeria tirar proveito sexual de mulheres em zona de guerra – foi condenado pela Justiça Eleitoral a apagar conteúdos em que atacava o padre Júlio, além de ser impedido de produzir novas postagens com o mesmo cunho.
No entanto, o que também chama atenção é o fato de padres de grande alcance midiático, como Fábio de Melo e Marcelo Rossi, se absterem de manifestar apoio público a seu colega perseguido pela extrema-direita. No caso de Fábio, após intensa pressão nas redes sociais, foi publicada uma postagem com print da nota da Arquidiocese de São Paulo. No texto, bastante discreto para os padrões do influencer católico, o sacerdote-galã afirma esperar “que tudo se esclareça”.
A postagem de Melo não menciona o fato de Lancellotti sofrer perseguição por pôr em prática justamente os ensinamentos dos Evangelhos. Ao esperar que “tudo se esclareça”, Fábio de Melo valida as acusações sobre Júlio “lucrar com a miséria”, o que implica em acusar a Arquidiocese de São Paulo, à qual ele mesmo está submetido. Em relação a Marcelo Rossi, até o momento da publicação deste artigo, não houve qualquer posicionamento. O mesmo se aplica a Reginaldo Manzotti, João Carlos, Alessandro Campos e Antônio Maria.
Há um motivo para a apatia dos padres ‘popstars’ em relação à perseguição sofrida por Júlio Lancellotti. Todos os sacerdotes aqui citados (menos Júlio) pertencem ao movimento autodenominado “Renovação Carismática Católica” (RCC). A origem da RCC é atribuída a um retiro espiritual realizado em 1967 em Pittsburgh, no estado estadunidense da Pensilvânia, como reação à perda de fiéis da Igreja Católica para o pentecostalismo. Por isso, ela incorpora à Igreja de Roma características pentecostais como a oração em “línguas estranhas”.
Na prática, a RCC se consolidou como reação à Teologia da Libertação (TL), que traz uma interpretação à esquerda em relação às Escrituras, sobretudo ao Novo Testamento. A TL teve destaque sobretudo na América Latina, onde muitos de seus adeptos apoiaram e até participaram de revoluções, como em Cuba e na Nicarágua, ou prestaram suporte à resistência armada contra ditaduras militares-empresariais.
Um dos casos mais famosos mundialmente foi a atuação do padre Óscar Romero (canonizado como São Romero durante o pontificado de Francisco I) na defesa dos camponeses durante a Guerra Civil de El Salvador, eternizada nos cinemas pelo filme “Romero” (1989, direção de John Duigan). A interpretação de Raúl Julia no papel do sacerdote que dá nome à obra é aclamada pela crítica. Embora Romero relutasse em fazer uma relação direta entre o marxismo e o cristianismo, afirmava ser adepto da TL “por Cristo, não por Marx”. Romero foi assassinado em março de 1980 enquanto celebrava uma missa.
Tanto a TL quanto a RCC são expressões possibilitadas pelo Concílio Vaticano II, ocorrido durante o pontificado de João XXIII e que tornou a Igreja mais flexível permitindo, entre outras coisas, que as missas não fossem realizadas em latim. No entanto, ambas seguiram caminhos opostos entre si.
A Teologia da Libertação no Brasil
No Brasil, a TL teve forte influência sobre as pastorais católicas e as comunidades eclesiais de base, setores que viriam a fundar o Partido dos Trabalhadores (PT) junto às alas acadêmica, artística, camponesa e sindical. Dom Paulo Evaristo Arns (ex-arcebispo de São Paulo) e sua irmã Zilda Arns (fundadora da Pastoral da Criança), embora não tenham sido adeptos diretos da TL, orbitaram o universo dos “católicos vermelhos” em sua atuação religiosa e política.
Das formações da TL surgiram alguns dos principais intelectuais e militantes brasileiros, como o sociólogo Betinho, o líder sindical e ambientalista Chico Mendes, a ambientalista e atual ministra Marina Silva, a deputada federal Luíza Erundina e o pedagogo Paulo Freire.
Após a morte do arcebispo Dom Hélder Câmara em 1999, os dois nomes mais conhecidos da TL no Brasil são os do frei Betto e Leonardo Boff. O primeiro, frade dominicano e ex-assessor especial da Presidência da República para movimentos sociais, cuja atuação no suporte ao guerrilheiro Carlos Marighella resultou no livro “Batismo de Sangue” (primeira edição em 1982) e inspiraria o filme homônimo de Helvécio Ratton em 2006; o segundo, ex-frade franciscano que deixou a carreira eclesiástica para se casar. A freira Ivone Gebara, pioneira na discussão sobre saúde reprodutiva, também é uma figura de destaque na TL brasileira.
Ao contrário do que sugerem várias buscas por seu nome na internet, Boff nunca foi excomungado pelo Vaticano. Em 1984, foi condenado a um “silêncio obsequioso” a pedido do então cardeal Joseph Ratzinger (que viria a ser o Papa Bento XVI), posto em prática pelo Papa João Paulo II. Tanto Bento XVI quanto João Paulo II eram adeptos de alas reacionárias da Igreja, tendo atuado para combater a influência da esquerda católica.
Processo semelhante ao de Boff também foi imposto, na década de 1980, ao bispo Dom Pedro Casaldáliga. O sacerdote espanhol radicado no Brasil foi um dos fundadores da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), respectivamente entidades que atuam na defesa de camponeses e povos indígenas. São a CPT e o Cimi que produzem, anualmente, relatórios utilizados em dados oficiais sobre violência no campo e contra populações originárias. Curiosamente, em Mato Grosso do Sul, deputados ruralistas instauraram a CPI do Cimi em 2016.
A Teologia da Libertação sofreu perseguição física e teve alguns de seus militantes torturados e mortos durante a ditadura militar-empresarial no Brasil. Além do próprio Betto, também os freis dominicanos Ivo, Fernando, Oswaldo, Magno e Tito foram parar no banco dos réus por “terrorismo” na Operação Batina Branca. Tito foi solto após uma troca de presos políticos pelo embaixador suíço Giovanni Bucher, sequestrado pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e passou a viver em exílio num mosteiro em Lyon, na França.
Atormentado diariamente pelas visões das torturas que sofreu, conforme relatou em seu diário, suicidou-se em agosto de 1974. Celebrada por Dom Paulo Evaristo Arns, sua missa de “sétimo” dia (ocorrida apenas em 1983) contou com mais de 4 mil pessoas. Os sacerdotes utilizaram o vermelho, cor da celebração aos mártires da Igreja. Pelas circunstâncias de sua morte, Tito é contabilizado oficialmente como uma das pessoas assassinadas pelo regime militar-empresarial. Outro caso é o do padre Antônio Henrique, assassinado pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC), em 1969. Seu corpo foi encontrado com sinais de tortura e tiros na cabeça.
Os assassinatos não se resumiram à ditadura. O padre Josimo Morais Tavares, já durante a abertura política em 1986, e a freira Dorothy Stang, em 2005, são exemplos de sacerdotes ligados à TL mortos a mando do agrobanditismo em tempos de democracia burguesa.
Renovação Carismática x Teologia da Libertação
Enquanto resposta católica ao crescimento do pentecostalismo, a RCC não apenas adotou as “línguas de fogo”, mas também a abordagem midiática típica de igrejas pentecostais. Se denominações como Deus é Amor e Assembleia de Deus se fortaleceram com grandes cultos ao ar livre, pregações efusivas e uma ampla indústria musical, sua análoga católica não agiu de forma diferente. No Brasil, representantes da RCC mantêm a TV Canção Nova e contratos com grandes empresas como a Som Livre, do Grupo Globo.
Enquanto os teólogos da Libertação se dedicavam a atividades sociais e formações políticas, os adeptos da RCC adentraram a indústria cultural com programas de TV e padres-cantores. Em relação à caridade, fator bastante caro à Igreja Católica, a RCC se resumiu a “campanhas de alimentação, agasalho e outros, sem perder de vista a possibilidade de arrebanhar mais fiéis” (LACERDA e PAPALI, 2005).
A utilização de atividades assistenciais com fins de buscar conversões religiosas não é tão comum entre adeptos da Teologia da Libertação, mais tendentes ao ecumenismo. Organizações como CPT e Cimi, por exemplo, não adentram comunidades camponesas e indígenas com o objetivo da catequização, assim como o trabalho do padre Júlio não faz o mesmo nas ruas em que se insere. A concepção teológico-libertadora de “missão” não se dá a partir da necessidade de conversão à mensagem dos Evangelhos, mas de seguir o que pregam os Evangelhos a respeito do amor ao próximo.
De acordo com o irmão de Leonardo Boff, Clodovis Boff (2000, apud LACERDA e PAPALI, 2005), enquanto a TL se desenvolveu a partir de uma visão coletiva, a RCC tem como característica uma abordagem mais individual, focando-se na transformação pessoal e centrada na Igreja, em oposição à TL que se centra na transformação do mundo. Clodovis defende, no artigo “Carismáticos e libertadores na Igreja” (2000), que enquanto a TL enfatiza a atuação ética e política a partir do envolvimento da Igreja na sociedade, a RCC enfatiza a oração e a relação entre o indivíduo e Deus.
Embora inicialmente combatida pelos setores mais conservadores da Igreja como “infiltração de comportamentos evangélicos”, a RCC passou a ser tolerada, sobretudo a partir da década de 1980, como forma de combater as ideias de esquerda e a influência marxista na Igreja. Afinal, na concepção de mundo de um católico tradicionalista, se ser evangélico é ruim, ser comunista é pior.
E foi a partir da RCC que se forjaram os famosos padres ‘popstars’. Para quem cresceu durante as longínquas décadas de 1990 e 2000, a figura do padre Marcelo Rossi é familiar. Era presença constante em programas de TV. No entanto, se dividir seus louvores com mulheres e homens seminus lutando por um sabonete em uma banheira no Domingo Legal, do SBT, não era um problema, Marcelo tinha seus limites. Tanto que chegou a pedir à produção do programa que o ator Jorge Lafond, homossexual assumido e famoso pela personagem Vera Verão, fosse retirado do palco para que pudesse se apresentar.
O pedido foi atendido e Jorge se recusou a retornar após o show de Marcelo. O episódio chegou a causar alguma polêmica na época, sendo citado em programas e revistas de fofoca, mas em tempos em que não havia redes sociais e o debate sobre LGBTfobia ainda engatinhava no Brasil, o pacto de silêncio na mídia corporativa venceu. Em entrevista ao “TV Fama”, Lafond declarou: “Me magoou muito. Se eu tivesse mandado ele para aquele lugar eu não estaria estressado como ainda estou”. O ator faleceria meses depois, por complicações cardíacas.
Se é difícil imaginar que um adepto da Teologia da Libertação tivesse a mesma postura, não há surpresa na atitude de Marcelo Rossi, dada sua filiação ideológica. Da mesma forma, não é surpresa que padres ligados à Renovação Carismática se isentem de se solidarizar com Júlio Lancellotti.
Dom Odilo Scherer, arcebispo da Arquidiocese de São Paulo e figura notoriamente conservadora, não poupou esforços na defesa de um religioso que se encontra sob sua jurisdição. Por outro lado, beira a ingenuidade esperar a mesma postura de padres que representam, não uma visão conservadora, mas reacionária e individualista. Enquanto Fábio de Melo, Marcelo Rossi, Alessandro e outros se preocupam com o engajamento nas redes sociais e com a agenda de programas televisivos, Júlio tem muito o que fazer e não precisa do apoio de quem nunca esteve a seu lado. Já ajudarão muito se ficarem calados.
Referências
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Nota. São Paulo; 3 jan. 2024.
BOFF, Clodovis. Carismáticos e libertadores na Igreja; REB 237; Petrópolis; Vozes; 2000.
FEFITO, Fernando Oliveira, dito. Há 18 anos morria Jorge Lafond, LGBT que não teve o merecido reconhecimento. [S. l.], 11 jan. 2021. Disponível em: https://www.uol.com.br/
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LACERDA, Lucelmo; PAPALI, M.A. Chaves Ribeiro. Compromisso coletivo na igreja teologia da libertação e renovação carismática: Margens opostas. X Encontro Latino Americano de Iniciação Científica e VI Encontro Latino Americano de Pós-Graduação, Universidade do Vale do Paraíba, p. 1851-1854, 2005.
OLIVEIRA, Caroline. Arthur do Val é condenado pela Justiça Eleitoral após atacar padre Júlio Lancellotti. In: Brasil de Fato. São Paulo, 1 ago. 2020. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/
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PERSONAGENS: Antônio Henrique Pereira Neto (Padre Henrique): Biografias de Resistência. Disponível em: https://memoriasdaditadura.org.br/
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PERSONAGENS: Frei Tito de Alencar Lima: Biografias de Resistência. Disponível em: https://memoriasdaditadura.org.br/
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ROMANCE secreto, rixa com Clodovil: 8 fatos sobre Lafond que você não sabia. [S. l.]: UOL, 29 mar. 2023. Disponível em: https://www.uol.com.br/
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VASCONCELOS, Frederico. Papa silenciou progressistas brasileiros. São Paulo, 10 abr. 2005. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/
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