Diário poético sobre vazios abundantes na vida e obra de José Leonilson

Nascido em Fortaleza, José Leonilson Bezerra da Silva produziu milhares de obras que o firmaram com um dos grande nomes da arte contemporânea brasileira

Por Carolina de Mendonça

Era uma sexta-feira, 1º de março de 1957, na cidade de Fortaleza, capital cearense, onde nasceu José Leonilson Bezerra Dias. Morreu, precocemente, pouco mais de 36 anos depois, na capital paulista. Chamado de Zé ou Leo, pelos íntimos, foi conhecido no meio artístico como Leonilson e produziu milhares de trabalhos que o firmaram como um dos grandes nomes da arte contemporânea brasileira.

Na infância, experimentou brevemente uma vida quase nômade- após sair de Fortaleza (CE), morou em Manaus (AM), Porto Velho (RO), até se fixar em São Paulo (SP). Anos depois, já adulto, foi à Europa, com uma mala e uma pasta com seus desenhos, onde passou por Milão (Itália), Munique (Alemanha) e Amsterdã (Países Baixos). Depois, retornou a São Paulo e nunca parou de viajar, seu grande prazer.

Em solo europeu teve sua primeira exposição individual e conheceu o trabalho no mercado das artes. Repudiou a forma como o ramo comercial se organiza. Afirmou que não se envolveria nisso, não queria ser rico, mas desejava que sua obra tivesse coerência consigo e que estaria feliz se tivesse condições para conhecer outros lugares.

Vida pessoal e trabalhos artísticos se misturaram. Suas telas, esculturas e gravações relatavam seu cotidiano, coleções de objetos, páginas de diário e bordados. Tudo faz parte de uma cartografia autobiográfica. Poética, contínua, íntima e melancólica.

José – Leonilson (1991)

Como vai você, José Leonilson? 

Apesar de sua mãe cogitar que se tornaria um engenheiro ou arquiteto, Leonilson sempre teve tendência à pintura. Desenhou desde a adolescência, mas muitos dos primeiros trabalhos foram destruídos pelo próprio artista. Sua família teve certeza de que ele trabalharia apenas como artista visual quando o jovem viaja à Europa e lá tem sua primeira exposição individual, na Galeria Casa do Brasil (Madrid – Espanha), em 1981.

O artista já havia exposto de forma coletiva anteriormente, na exposição “Desenho Jovem” no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, em 1979.  Apesar da conquista, no ano seguinte abandona o curso de artes plásticas na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). Ainda em 1980, participa da exposição Panorama da Arte Atual Brasileira/Desenho e Gravura no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM – SP).

Leonilson | Arte contemporânea brasileira, Arte contemporânea, Arte concreta

Sob o peso dos meus amores – Leonilson (1990)

Em 1984, esteve entre os 123 artistas brasileiros (a maioria do eixo Rio-São Paulo) a participar da exposição “Como vai você, Geração 80?” realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV/Parque Lage), no Rio de Janeiro (RJ). O grupo colocado de forma genérica traz um anseio artístico mais hedonista e presentificado, em jovens que criam pinturas pelo “prazer” em um país que se reabriu politicamente após dura censura.   

As obras de Leonilson não se limitam à pintura, mas fazem uso de elementos de coleção pessoal e material de bordado. É uma produção artística aprofundada na dimensão subjetiva que explora os desejos de si e a relação desses desejos com o outro. José também gostava das relações de poder dedicar algo ao outro – muitas de suas obras se tornaram presentes para seus amigos e amantes.

Afetos costurados sem acabamento 

O pai do artista era vendedor de tecidos e a mãe bordava. Quando criança, aprendeu o ofício em uma escola de freiras que estudou. Tecidos, pedrarias, botões, novelos e outros objetos cotidianos eram guardados por Leonilson e usados em sua obra.

No uso de materiais de bordado, o artista é diverso – varia em panos de diversas texturas, tamanhos e cores que dão peculiaridades e interpretações particulares a cada obra e mantém uma síntese de seu estilo. 

São constantes as aproximações do fazer de José Leonilson com o artista sergipano Arthur Bispo do Rosário. Apesar de propósitos distintos com suas obras – Bispo produzia por pretensões religiosas, Leonilson como retratos autobiográficos de sua existência – se aproximam na utilização de objetos corriqueiros e uso constante do bordado, que ambos tiveram contato ainda na infância.

José Leonilson nutria grande admiração por Bispo do Rosário. Conheceu as obras no final dos anos 1980 e acompanhou até 1993, ano de seu falecimento, em exposições organizadas por Frederico Morais. Tal como o sergipano, Leonilson tinha uma forte influência do catolicismo em sua vida.

ver-de-poesia: voilà mon coeur, il vous apartien

Voilà mon coeur – Leonilson (1989)

Leonilson via a costura como arte perfeita, mas aceitou que não chegaria a tal excelência, o que aproveitou em sua criação. Sua mãe e irmã brincam em entrevista para a série O Mundo das Artes (SESC TV) que ele bordava mal. De fato, sua criação com linha tem um misto de infantilidade e confusão. Para o artista, o conceito da obra se materializou no suporte, a ideia por trás da obra era o mais importante. Nesse caso, seus ideais eram ligados aos sentimentos.

Bordar é um ato solitário, íntimo e, majoritariamente, feminino. Uma atividade doméstica feita com destreza e cuidado. Para alguns teóricos, a produção é colocada como uma arte menor, ou algo que não chegaria ao status de arte, apenas um artesanato, pois supõe não existir na criação um aspecto intelectual, mas apenas manual. Um equívoco preconceituoso que busca diminuir arte produzida por povos tradicionais e por mulheres de forma cotidiana.

Eu tenho mais de 20 anos - ISTOÉ Independente

Ninguém – Leonilson (1988)

Leonilson era um homem branco. Não era visto em primeiro momento como alguém que pertencia ao universo do bordado, era intruso nesse mundo. Sua transgressão no uso dessa técnica o coloca em uma posição marginal quanto a arte. Não desejava ultrapassar as normas em sua vida pessoal. Mas transpôs.

José Leonilson era um homem gay. Em diário comentou não desejar ser uma bicha, uma ideia estereotipada de homem afeminado, até se atraia por algumas mulheres, porém desejava os homens. Queria ser visto como um homem forte, um peixe com o oceano inteiro para nadar. E em paralelo utilizava de técnicas tidas como femininas e delicadas para falar de sentimentos. 

Cotidiano confessional de mapas internos

Em janeiro de 1990, ele decide gravar áudios como diário, ora documental, ora ficcional. Sempre de forma bastante íntima documentava suas percepções de mundo, exposições que visita, analisa os filmes que assiste, pensamentos, angústias. Com a voz por vezes cansada, respiração próxima ao microfone, confessava ao gravador sua vida construindo uma narrativa poética, por vezes dolorosa, de seu cotidiano.

Desejava que tais gravações viessem a público, como parte de sua obra. As fitas se mesclam com suas telas, bordados e instalações, nelas é possível ouvir sobre sua rotina andarilha que cruza a Avenida Paulista (aproximadamente 3 km) inteira de uma vez, seu apego às viagens, que chora no aeroporto com a beleza de um avião ao horizonte, sua paixão pela Madonna e detalhes de seus casos amorosos com calma e afeto.

Leonilson na Pinacoteca em SP

O Mentiroso – Leonilson (1992)

É possível conhecer José Leonilson em sua intimidade, se tornando Zé ou Leo. As gravações foram parte de exposições póstumas junto a itens de coleção e cartas e, claro, suas obras. Se tornaram também documentários – “Com o Oceano Inteiro Para Nadar, , em 1997, dirigido por Karen Harley, e em 2016, “A Paixão de JL”, dirigido por Carlos Nader.

Tendo a curiosidade de conhecer o mundo como algo muito intrínseco a si, utiliza mapas como forma de registro de suas memórias e desejos. Não há neles escalas exatas ou proposta de compreensão geográfica. São cartografias afetivas.

Ianomami Iguaçú – Leonilson (1988)

Cidades, caminhos, pessoas, monumentos, corpos e desejo. Tudo compõe os mapas de Leonilson. A intimidade de sua obra traz consigo o uso de suas viagens (internas e externas) como forma de narrar sua vida e suas paixões.

Desejo e aflição

Só não faço o que tenho vontade, pois eu tenho medo de… Ser gay hoje em dia é a mesma coisa que ser judeu na segunda guerra mundial. O próximo pode ser você. A praga tá aí pronta pra te pegar. Essa é a única razão pela qual não me jogo assim nas coisas, sabe?

Leonilson confessou a seu gravador, antes de descobrir que estava infectado com o vírus HIV. No final dos anos 1980 e início da década 1990, a Aids tinha se tornado uma pandemia. Apesar de ser transmitida através de fluídos (esperma, secreção vaginal e leite materno), o desconhecimento deu espaço ao preconceito que segregou pessoas infectadas com o vírus, que eram impedidas até mesmo de toques físicos (como aperto de mão e abraços) com pessoas “saudáveis”.

Foram taxados grupos de riscos baseados em suposta frequência e moralidade: aqueles que usam drogas injetáveis e, especialmente, aqueles que são promíscuos – considerando promiscuidade quantidade de parceiros (as) e atos sexuais com pessoas do mesmo sexo. Aids era conhecida como um “câncer gay”. 

Pela incompreensão de possíveis tratamentos e agressividade da doença, o diagnóstico era considerado uma declaração de óbito. E assim Leonilson se sentiu. Suas obras passam a trazer a angústia e iminência da morte.

Sua sexualidade era um tópico omisso. Nunca negado, mas constantemente ignorado em entrevistas. Nunca contou aos pais sobre ser um homem gay, apesar da certeza de que sua mãe sabia, mesmo nunca o questionando sobre. E assim manteve o tema no subtexto, comum de sua produção. A associação de que seu desejo o levaria a transformar, e ao seu ver transformou, em um homem ameaçador, o trazia sentimentos de culpa associado ao rompimento com a moral cristã.

O Perigoso – Leonilson (1992)

Em “O Perigoso”, utiliza papel, tinta e o próprio sangue. Seus fluídos eram mortais. Ele mesmo morre em decorrência da fragilidade que a doença o trouxe, aos 36 anos, em 1993, dois anos após descobrir estar infectado.

Seu último trabalho foi uma instalação na Capela do Morumbi, em São Paulo. Alude a espiritualidade, a fragilidade da vida, uma certa melancolia e também uma leveza e aceitação. Temáticas comuns na elaboração da própria morte em pacientes terminais.

ARTISTA DO BORDADO: Leonilson | BORDADOLOGIA Instalação Capela do Morumbi – Leonilson (1993)

Suas gravações após o diagnóstico ficam mais densas. Na ausência de futuro, se toma conta uma ansiedade de registrar as memórias, reforçar a existência do passado. O vazio da existência é firmado com a aproximação de seu fim.

Em 1993, pouco após a morte do artista, amigos e familiares fundaram o Projeto Leonilson com objetivo de organizar, pesquisar, catalogar e divulgar suas obras – muitas dessas encontradas com amigos que foram presenteados pelo artista. O Projeto organizou diversas exposições e um catálogo com a vida e obra de Leonilson. Em 1994 recebeu homenagem póstuma da Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA).

Suas obras são encontradas em coleções pessoais e no acervo de importantes espaços culturais como o Instituto Inhotim e o Museu de Arte Moderna (MAM). Dividiu espaço com Arthur Bispo do Rosário no SESC Sorocaba, em 2015, em “Os Penélope”. Seu sensível legado permanece vivo e pulsante vinte anos após sua partida.

O Recruta, o Aranha, o Penélope | Enciclopédia Itaú Cultural

O Recruta, o Aranha, o Penélope – Leonilson (1992)

Referências

BECK, Ana Lúcia. Leonilson: desdobramentos. Revista Porto Arte, novembro de 2005.

BONJOUR, Hugo Macieira. As elegias bordadas de Leonilson: expressões de afecto. Revista Gama, Estudos Artísticos. janeiro-junho 2017.

LOPES, Renata Perim Albuquerque. José Leonilson: Entre Linhas e Afetos. 2013. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Do Espírito Santo, 2013.

RICCIOPPO, Carlos Eduardo. Leonilson – uma questão de escala. Revista ARS, 2009.

SILVA, Lúcio Flávio Gondim da. A inespecificidade da palavra-imagem em Leonilson. Revista de Estudos Literários da UEMS, agosto 2019.

Carolina de Mendonça

Carolina de Mendonça

Psicóloga, amante de utopias e com grandes flertes com o cinema.

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