Marx sobre o suicídio e a privatização do sofrimento

”o suicídio não é mais do que um entre os mil e um sintomas da luta social geral” (MARX, 2006, p. 29)

Por Vitória Regina

Ilustração por Marina Duarte

O modo de produção capitalista transforma, por razões ideológicas e estratégicas, questões sociais em tabu. Ao invisibilizar discussões a respeito de alguns temas, não debatemos sobre os possíveis sintomas, determinações e modo de enfrentamento, apenas individualizamos e responsabilizamos os sujeitos. Entre os temas considerados um tabu no capitalismo — na sociedade ocidental —, o suicídio está no topo da lista. 

O suicídio, em nossa sociedade, antes de ser considerado um assunto de esfera estritamente privada, é um ataque direto ao cristianismo. É um ataque à ordem secular de que um deus lhe deu a vida e ele — e somente ele — pode tirá-la. Diante da moralidade que ronda esse tema, perdemos a oportunidade de discutir de forma concreta os motivos que levam alguém a tirar a própria vida. 

Marx escancarou — e descortinou — as contradições presentes no modo de produção capitalista e na sociedade moderna. O artigo publicado no Gesellschaftsspiegel (1) em janeiro de 1846 é um ensaio bastante diferente da obra marxiana. Marx se interessa pela temática do suicídio após ter acesso ao Mémoires tirés des archives de la police de Paris, de Jacques Peuchet, publicado em 1838 (2). Neste sentido, comentou sobre quatro casos de suicídio — sendo três mulheres e um homem — que aconteceram em Paris. A escolha não foi à toa, já que em cada caso uma mazela da sociedade moderna foi analisada. No primeiro caso, é apontada a falsa moral da burguesia e sua materialização no patriarcado; no segundo, o ciúme e a monogamia; no terceiro, o desespero de uma mulher grávida e a intenção de abortar e no último caso o desemprego. 

A questão do suicídio é tratada por Marx — e por Peuchet, um monarquista — como um sintoma da sociedade capitalista. Inclusive, os dois confrontam a ideia de que o suicídio é antinatural, pois seria equivocado considerar ‘’antinatural um comportamento que se consuma com tanta frequência’’ (MARX, 2006, p. 25).

O primeiro caso escolhido por Marx é sobre a história de uma mulher, filha de alfaiates, que no dia anterior ao seu casamento é convidada para jantar na casa dos futuros sogros. No entanto, por conta de algumas encomendas que deveriam ser entregues, os pais da noiva não puderam ir ao jantar. Durante a noite, os noivos se divertiram, beberam e cantaram. A jovem retornou para casa somente na manhã seguinte sendo recebida de um modo grosseiro e humilhante pelos pais. De acordo com Peuchet, os pais da noiva a ”irromperam furiosamente e cobriram-na com os mais vergonhosos nomes e impropérios”. Após a humilhação pública e o sentimento de vergonha que a invadiu, a jovem decidiu dar fim à própria vida no rio Sena. Posteriormente, Marx (2006) aponta que as pessoas intolerantes não perdem a oportunidade de lançar mão da autoridade de pessoas mais velhas.

No segundo caso, uma jovem se casa com um dos homens mais ricos de Martinica. Um ano após o casamento, a mulher comete suicídio. Passado algumas semanas do ocorrido, o cunhado revelou o motivo ao afirmar que o que levou a jovem a tirar a própria vida foi o ciúmes e o controle do marido. Durante o casamento, o cônjuge contraiu uma doença degenerativa que afetou sua imagem e resolveu se isolar fora da cidade. O homem forçou a esposa a seguir o mesmo caminho, retirando-a de qualquer convívio social — além de sofrer com inúmeras cenas de ciúmes. Sem previsão de se livrar dessa situação de controle, a única alternativa encontrada pela jovem foi o suicídio. Como pontuou Engels (2019), no casamento monogâmico, o bem-estar dos homens se impõem pela dor e pela opressão das mulheres.

Sobre esse caso, os autores escrevem que 

o sr. Von M… podia praticá-la apenas por estar amparado pelo Código Civil e pelo direito de propriedade, protegido por uma situação social que torna o amor independente dos livres sentimentos dos amantes e autoriza o marido ciumento a andar por aí com sua mulher acorrentada como o avarento com seu cofre, pois ela representa apenas uma parte de seu inventário (MARX, 2006, p. 37 – grifo nosso).

O segundo caso também nos remete aos escritos de Engels sobre a monogamia e o antagonismo entre homem e a mulher na sociedade moderna. Engels (2019) afirma que o casamento monogâmico ”entra em cena como a subjugação de um sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre os sexos, desconhecidos em toda a história pregressa” (p. 84)

O terceiro caso é a descrição de um relato de tentativa de aborto por um médico a Peuchet. Uma jovem mulher procura um médico para comunicar o seu desejo de praticar o aborto, pois a criança seria fruto de uma infidelidade.  Ao longo da conversa, a jovem sobrinha de um banqueiro parisiense relatou que se sentia desonrada e que não receberia o perdão de ninguém. Diante desse acontecimento, a mulher alertou que se não fosse possível interromper a gestação, optaria em colocar um fim à própria vida visando evitar um escândalo. Após a recusa do médico, a jovem cometeu suicídio. Durante a descrição do relato, o médico afirmou que ”teria dado o melhor do seu sangue” para tirar a jovem dessa situação e que gostaria de ter evitado o suicídio e — em suas palavras — o assassinato. Teria feito de tudo, menos encarar o moralismo. Em nossa sociedade — assim como no conto bíblico de Adão e Eva — aquele que comete suicídio ou aborto deve estar preparado para lidar com as consequências da expulsão do Jardim do Éden.

Silhueta de Karl Marx dizendo "o suicídio não é mais do que um entre os mil e um sintomas da luta social geral"

O último caso abordado no ensaio é sobre a história de um guarda afastado que, por uma questão de idade, não conseguiu incorporar-se às Forças Armadas. O despossuído tentou adentrar na área de administração civil, mas não obteve sucesso. Diante do desemprego e da dificuldade de manter a si e a sua família — era casado e tinha duas filhas — decidiu pôr fim à vida.  O ex-guarda deixou uma carta onde dizia 

que, não podendo mais ser útil a sua família, e sendo forçado a viver à custa de sua mulher e de seus filhos, achava que era sua obrigação privar-se da vida para aliviá-los dessa sobrecarga (MARX, 2006, p. 49).

Embora Marx não tenha se dedicado exclusivamente no desenvolvimento de uma obra sobre a situação das mulheres na sociedade moderna, a questão de gênero está presente em seu trabalho — e no de Engels — e, concordando com Michael Löwy (2006), o artigo sobre o suicídio ”é uma das mais poderosas peças de acusação à opressão contra as mulheres já publicada” (p. 18). Conciliando o ensaio de Marx com o escrito de Engels sobre A origem da família, da propriedade privada e do Estado, é possível reconhecer que não há como falar sobre capitalismo sem falar sobre o patriarcado, considerando que a ascensão e a sustentação do patriarcado está fundamentado na ideia de propriedade privada — como apontamos no segundo caso. Engels (2019) destaca que 

o casamento monogâmico de modo algum entra na história como a reconciliação entre homem e mulher, muito menos como sua forma suprema. Pelo contrário. Ele entra em cena como a subjugação de um sexo pelo outro, como a proclamação de um conflito entre sexos, desconhecidos em toda a história pregressa (p. 84 — grifo nosso).

Ao longo do ensaio, notamos o papel histórico do patriarcado e a sua relação íntima com a noção de propriedade privada. Ademais, nos ajuda a pensar os diferentes temas apresentados sob todas as suas determinações, evitando o perigo de se interpretar a realidade de forma fragmentada. Percebe-se que o suicídio também é uma questão social e que ‘’é o último recurso contra os males da vida privada’’ (MARX, 2006, p. 48). Além dos casos apresentados, durante o período em que Peuchet escreveu as suas memórias, centenas de pessoas estavam colocando fim à própria vida por razões de exoneração; queda de salários; impossibilidade de sustentar a produção e a reprodução da vida e miséria.

O debate ao redor da temática do suicídio não deveria se restringir a um mês específico, tampouco ser apontado como uma trágica consequência da vida privada do sujeito — como se este estivesse alheio aos efeitos deletérios de uma sociedade organizada para adoecer. Desnecessário dizer que o problema dos quatro casos é sistêmico. Todas as histórias descritas no ensaio são de pessoas que optaram em colocar fim à própria vida em razão da natureza desumana da sociedade moderna e do seu moralismo vigente. 

A privatização da vida — e do sofrimento — individualiza questões que são sociais. Não à toa o número de diagnósticos aumenta conforme o capitalismo se desenvolve e o neoliberalismo manipula como sofremos. À medida que o neoliberalismo avança, avança também a ‘’reformulação brutal da gramática do sofrimento psíquico através da hegemonia do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais’’ (SAFATLE, V., SILVA, N., DUNKER, C, 2021, p. 10). A individualização do sofrimento é garantia da intervenção bem sucedida do liberalismo. O neoliberalismo não visa atuar somente como uma teoria que guia o funcionamento econômico, mas como um gestor que coisifica e dita o modo de sentir de todos àqueles que estão inseridos nesse sistema. 

Notas

  1. ‘’Espelho da sociedade’’, Órgão de Representação das Classes Populares Despossuídas e de Análise da situação atual.
  2. A escolha editorial pode confundir alguns leitores. De início, quem entra em contato pela primeira com o livro, pode ser levado a entender ser uma produção exclusiva de Marx, o que é falso. Marx analisa e faz comentários a respeito de quatro capítulos do livro de memórias de Peuchet, ex-arquivista policial. Todavia, a escolha do título não é uma exclusividade brasileira, a maioria das editoras que resolveram publicar o livro optaram por usar “Sobre o suicídio” e não “Peuchet: sobre o suicídio” — título original. 

Referências

ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.

LÖWY, M. Um Marx insólito. in MARX, K. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006.

MARX, K. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006.

SAFATLE, V., SILVA, N., DUNKER, C. Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

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