Numa pequena porta, uma grande cozinha no coração da cidade

Restaurante no Centro de Campo Grande serve pratos vegetarianos estritos, acessíveis à população

Por Guilherme Correia
Quadrinhos por Marina Cozta

Quem passa pela rua Treze de Maio, uma das mais antigas e movimentadas do Centro de Campo Grande, percebe uma pequena porta, inscrita sob o número 2.499. Para uns, o edifício mais baixo da quadra é o local onde almoçam de segunda a sexta-feira, no intervalo do trabalho. Mas quem se aprofunda na história deste local tem a chance de conhecer muito mais que um restaurante.

Paulo Renato do Amaral Benites, conhecido por alguns como Paulão, ou Blackpauler, é o chefe da cozinha do Mais que Salada. O local, fundado há dois anos, serve diariamente, exceto aos domingos, refeições vegetarianas estritas (ou seja, sem ingredientes de origem animal), a preço acessível para a população.

Uma vez por semana, ele e sua equipe, de cinco pessoas, definem o cardápio semanal, com opções variadas, indo da culinária latino-americana à asiática. “Minha rotina é bem mapeada durante todos os dias. A rotina é basicamente organizar o cardápio, dividir todo ele nos dias e colocar cada dia de cardápio em dias específicos. A partir disso feito, você já tem uma direção de tudo o que você vai precisar durante a semana e também durante o mês”.

O planejamento é feito com base nos produtos necessários para o dia-a-dia de trabalho, seja pelos legumes, folhas e insumos, em geral, fornecidos pelo Centro Estadual de Abastecimentos de Mato Grosso do Sul (Ceasa-MS). “Trabalhamos com volume de alimentos considerado alto, então há uma logística bem elaborada para as verduras, os diversos tipos de temperos. A cozinha em si começa antes de estar dentro dela, colocar a touca e começar a cozinhar”.

As tarefas são dinâmicas, pois dependem de inúmeros fatores. Ainda que, em média, sejam de 130 a 150 pedidos diários, alguns dias têm mais demanda. “O sábado, dia da feijoada, sempre tem muita gente e os pedidos variam muito acima desse nível”.

Por isso, cada profissional da cozinha é designado na função que mais se adéqua, com base nas aptidões. Seja quem trabalha melhor com a preparação de folhas ou quem tem um bom corte dos legumes, a ideia é maximizar o potencial dos cozinheiros. “É um jogo, orquestrar o que cada um, e você também, está fazendo – as receitas, o ponto dos ingredientes, como tudo tem que ser feito, passa por mim e tem o meu aval”.

“É preciso o jogo de cintura para direcionar cada situação de atraso ou dificuldade. O objetivo é um só, o tempo tem que ser o mesmo, as pessoas querem almoçar no mesmo horário e não têm paciência para esperar. E isso é o normal de trabalhar com cozinha, jogar contra o tempo e fazer tudo da melhor maneira possível”.

Blackpauler, o chef

Vegetariano há oito anos, parte da trajetória de Paulo foi nos corredores da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), quando cursava História. Foi no ambiente acadêmico que conheceu adeptos de uma subcultura do movimento punk, a straight edge. “Uma parte muito intelectual do movimento, voltada para a política, questões de cunho social e também ao anti-especismo, uma das bases. 

“O entendimento de que você não é maior do que nenhum animal e que o ser humano tem acabado e contribuído para disseminar e devastar várias raças, vários tipos de vida, que não só a dele, por puro interesse próprio e por puro prazer.”

No entanto, a descoberta da paternidade o fez trancar a graduação, dois anos depois, já que viu a necessidade do trabalho em tempo integral para manter a família. Em um dos momentos, restou o trabalho informal como única alternativa para arcar com suas despesas – vendia cerca de 30 hambúrgueres veganos, feitos de lentilha, no Centro e em outros cantos da cidade por meio de entregas feitas de bicicleta.

“Só estudar não estava nos meus planos. Tinha mil coisas para ver, tive que criar toda uma estrutura para meu filho e para minha família que estava por vir”.

O cozinheiro avalia que naquele momento, havia pouca adesão às vertentes do vegetarianismo, mas conseguiu manter, junto ao amigo Mateus Lemos, a empresa VegVélo, e, posteriormente, uma marmitaria.

Foi justamente nesta região da cidade, anos depois, que Paulo conseguiu “mostrar sua verdade”, como ele próprio diz.

Mesmo que suas criações tenham surgido sem cursos formais de culinária, Blackpauler não se considera um autodidata. Seu trabalho é fruto de horas e noites viradas aprendendo tudo o que podia via internet, lendo PDFs de clássicos da gastronomia, e fazendo muitos testes.

“Não tive condições financeiras de fazer um curso de cozinha, comecei na profissão em uma idade mais avançada, não era jovem, foi bem depois. E a minha vivência foi a rua, vender na cidade, trabalhar em vários lugares, ter a minha própria empresa, fazer meus testes em casa e estudar muito”.

Filho de uma família japonesa, Blackpauler lembra que admirava a culinária da mãe, Eunice Satiko. “Eu, uma pessoa preta, sou adotado por uma família japonesa. Minha mãe não é o tipo de pessoa que deixa eu entrar na cozinha dela e mexer nas coisas dela. Ela cozinha muito bem, eu cozinho diferente dela, mas os sabores que ela consegue imprimir nas preparações dela são muito bons e me inspiram até hoje”.

As verdades da cozinha

As principais influências de Paulo vêm da comida brasileira, regional ou não, além da latino-americana e africana. A oriental, por conta da vivência familiar, também é muito presente nas suas criações. 

Outros colegas de profissão também o inspiram diariamente. O legado de Nelson Vaz, na confeitaria vegetal, é uma das várias menções que o chef faz. “Foi um dos melhores confeiteiros vegans até hoje, que tive oportunidade de conhecer. Me impressiona até hoje, via muita verdade no que ele fazia e que ele levava nas preparações”.

“Minhas referências não são só de pessoas que trabalham com comida vegetal, são de pessoas que trabalham com alimentação e que levam a sua verdade para outras pessoas. Por exemplo, o chef Laurent Suaudeau, francês, que está em São Paulo. Jefferson Rueda, uma pessoa muito talentosa que decidiu remar contra a maré, do lado dele, trabalhando com porco. Gosto também do chef Eudes Assis, do jeito que trabalha as suas raízes, a taioba”.

Outras referências vêm além da cozinha, como o boxeador estadunidense Muhammad Ali, e sua história envolvendo persistência e autoconfiança. “Eu penso em alimentação além do prato, além do que fazer com ele. Então, essas pessoas sempre me inspiram quando eu trabalho com cozinha vegana na capital da pecuária, no centro da cidade, com vários contras. Ainda assim, a gente persiste por acreditar no que a gente é”.

“Quando eu faço alguma coisa, quando me proponho a cozinhar algo para alguém no trabalho ou na vida comum, fora, é sempre a minha verdade que eu coloco na minha mão ou no pensamento que é para outra pessoa comer. É muito além do que só um prato de comida. O prato de comida é uma representação”.

Os trabalhos surgem em meio a momentos da vida e emoções, mas sempre com muito trabalho e busca por referências. “Idealizo pensando em como quero chegar no final. Se quero criar alguma coisa com abóbora, sempre penso como a pessoa quer que ela coma essa abóbora – algo mais doce no final, a satisfação da pessoa depois de comer. Se quero mais acidez, então repenso como vou cozinhar o ingrediente, acrescentar alguma coisa que consiga trazer para o começo da criação.”

“É uma dança que vai na minha cabeça, até criar alguma coisa. Mas, já criei muita coisa nos ‘sustos’, a criação vem”, diz Blackpauler, ao lembrar de um dos carros-chefe do restaurante, o torresmo vegano, que foi feito a partir de testes em meio a um movimentadíssimo Dia dos Namorados. “Estava desandando tudo, fiquei indignado, peguei um pedaço do assado que estávamos fazendo e fui fritando. Quando saiu, veio o torresmo, que é muito procurado atualmente”.

Mais que Salada

O restaurante que trabalha desde o começo de 2020 foi o “divisor de águas” na carreira de Paulo. Foi lá que encontrou estrutura necessária para pôr em prática sua arte. “Estou no Mais que Salada desde a sua concepção como restaurante, os primeiros projetos de como seria. Foi criado junto ao Guilherme Teló e ao Gustavo, este conceito. A base do restaurante sempre foi e sempre vai ser trabalhar com o veganismo popular”.

Página de quadrinhos mostra mapa do restaurante Mais que Salada, com falas do chef Paulo Renato:

“Um dos diferenciais é esse, você comer num lugar vegano, com um preço justo e com uma refeição muito saborosa. Prezamos muito por isso, a gente entregar um restaurante muito saboroso que a pessoa vai querer voltar aqui várias vezes e falar para todo mundo conhecer. Essa é minha missão como cozinheiro, fazer as pessoas se apaixonarem por comida, essa é a síntese de tudo”, destaca Paulo.

Desde então, a equipe é praticamente a mesma. Ninguém saiu e apenas novos funcionários entraram, dando continuidade ao trabalho. “A gente tem uma união que reflete em todos os momentos, principalmente os mais difíceis. Por exemplo, quando está cheio de clientes, com gente esperando até na esquina”.

Paulo acredita que o momento mais importante é a hora do almoço, muito esperado ao longo do dia, e que isso traz uma responsabilidade enorme ao seu trabalho. “Eu trato isso com muita seriedade e com muito respeito, e o restaurante reflete todo esse pensamento. Acho que um diferencial bem que chama muito a atenção e é reflexo dessa liberdade criativa que tenho nesse restaurante. Um dia a pessoa pode chegar e comer e no outro dia comer um feijão tropeiro, um baião de dois. Ela pode, no outro dia, um oriental. Hoje, estamos fazendo Yakisoba e amanhã a gente pode fazer uma feijoada. São várias coisas, não fico preso a nada. Gosto de cozinhar coisas que me agradam.”

“Nós temos aqui dentro um batalhão de cozinha, focado em conseguir fazer o máximo que der, o mais rápido e da melhor maneira possível. Essa união, essa vontade de fazer o negócio acontecer, eu acho muito difícil de acontecer e é o primeiro restaurante que eu senti isso em toda minha vida. Gosto muito daqui, do que a gente consegue fornecer para os nossos clientes. Nunca vi ninguém dizer que saiu daqui insatisfeito, essa é uma das minhas missões”.

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