“O óbito é alta” e a mercantilização da saúde
- 14 de outubro de 2021
Caso da Prevent Senior escancara que o genocídio em curso no Brasil está enchendo o bolso de muita gente; não se engane: chamá-los genocidas — embora o sejam — não os afeta
Texto por Vitória Regina
Arte por Norberto Liberator
Caso determinadas acusações colhidas durante os depoimentos na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid sejam comprovadas, esperamos que aqueles que se omitiram — e lavaram suas mãos em uma bacia de sangue, como diria o dramaturgo alemão Bertolt Brecht — sejam responsabilizados. Afinal, a história não cobra nada. Resumidamente, a CPI da Covid foi instalada em abril de 2021, com o intuito de investigar as ações e omissões do Governo Federal durante a pandemia. Ou seja, para tentar proporcionar uma explicação para a tragédia sanitária e pelo descanso para com a vida humana orquestrado nos últimos dois anos. Não foi um mero acidente de percurso que nos fez enterrar mais de 600 mil brasileiros e brasileiras.
Durante os meses de trabalho da CPI, o desprezo de Jair Bolsonaro e sua tropa de choque pela vida ficou cada vez mais escancarado — para quem não conhecia ou se recusou a investigar o passado do Capitão. A negligência pela vida; a disputa política e ideológica travada em torno da Coronavac; os empecilhos criados na aquisição de vacinas; as medidas anticientíficas e as recomendações de remédios sem eficácia; atraso no início da vacinação; a corrupção e as tentativas de desvio de dinheiro no caso da compra da vacina indiana Covaxin foram temas que ganharam destaque até o aparecimento da Prevent Senior.
O caso Prevent Senior
A empresa foi criada em abril de 1997 pelos irmãos Fernando e Eduardo Parrillo. Inclusive, após uma apuração feita pelo site Jornalistas Livres, foi divulgado que os irmãos e donos da Prevent Senior estão em uma banda de rock cujas letras manifestam adesão ao nazismo. Ademais, o nome da banda, Doctor Pheabes, é uma referência ao protagonista de dois filmes de terror: ‘’O abominável Dr. Phibes’’ e ‘’A câmara de horrores do Abominável Dr. Phibes’’.
A Prevent Senior virou alvo da CPI após um dossiê, divulgado pela Globo News, o qual indicava que a empresa pressionou médicos a receitarem medicamentos comprovadamente ineficazes para o tratamento da Covid-19, além de ter punido com demissão os profissionais que recusaram utilizar o chamado kit-Covid. Ademais, o dossiê também acusa a empresa de ter omitido mortes causadas pela doença e de ter submetido centenas de pacientes a tratamentos experimentais sem a autorização e o consentimento deles. No dia 28 de setembro, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) autuou a empresa por indícios de infrações relacionadas à falta de informação sobre os pacientes e sobre os medicamentos utilizados durante o tratamento.
No dia 22 de setembro, o diretor-executivo da Prevent Senior, Pedro Benedito Batista Júnior, esteve na CPI e negou todas as acusações e garantiu que o dossiê mencionado é resultado de ”dados roubados e manipulados”. Durante o depoimento, o diretor-executivo afirmou que a empresa alterava os diagnósticos de Covid após um determinado período de internação. A CID (Classificação Internacional de Doenças) era alterada após 14 dias em pacientes que estiveram na enfermaria e/ou apartamento e modificada em pacientes que permaneceram por 21 dias na UTI e/ou leito híbrido. No decurso do depoimento, Pedro Batista saiu da condição de testemunha para investigado após ser acusado de mentir e de ter trabalhado em parceria com o dito gabinete paralelo do governo Bolsonaro. Os senadores exibiram vídeos, áudios e documentos enviados à Comissão contendo denúncias de médicos e pacientes sobre o kit de ”tratamento precoce”. Posteriormente, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) afirmou:
— É possível ouvir um áudio de familiares de pacientes e corretores de plano de saúde mostrando que, para novos clientes da Prevent, o ‘kit-covid’ era enviado diretamente para a casa dos pacientes. Como eu disse, nós temos um elenco de provas e, a cada dia, chegam mais provas de que essa coisa infelizmente, lamentavelmente, existiu — disse Renan Calheiros; grifo nosso.
Para tentar desviar das acusações, Pedro Batista disse que a Prevent Senior é vítima de uma espécie de conluio e de manipulações. O diretor-executivo chegou a descrever o dossiê como uma ”peça de horror” e que o crime cometido contra ”uma empresa idônea” precisa ser investigado.
Na última terça-feira (28/09), a CPI ouviu a advogada Bruna Morato. A advogada é representante de 12 médicos que denunciaram em conjunto as ações tomadas pela Prevent Senior durante a pandemia — como impor a prescrição do ineficaz tratamento precoce e os tratamentos experimentais sem consentimento. O depoimento de Morato é, até o momento, um dos mais chocantes e macabros.
A depoente tentou detalhar o modus operandi da Prevent Senior e o alinhamento com o Governo Federal — aproximação feita inicialmente com o Ministério da Economia e, posteriormente, com o Ministério da Saúde. Morato explica que a aproximação com o Ministério da Economia visava promover o kit-Covid e tinha como objetivo manter a economia girando, além de descartar qualquer possibilidade de lockdown. A empresa entrou em contato com o famoso gabinete paralelo e com negacionistas como Anthony Wong, Paolo Zanotto e Nise Yamaguchi. Alinhada ao Ministério da Economia, a parceria idealizou uma ”solução” para não prejudicar a economia. Segundo a advogada, pretendiam ”conceder esperança para que as pessoas saíssem às ruas sem medo, e essa esperança tinha um nome: hidroxicloroquina”. Embora Morato não tenha afirmado ouvir qualquer menção a Paulo Guedes, a parceria entre a empresa e o Ministério ‘’técnico’’ de Jair Bolsonaro ceifou milhares de vidas brasileiras em uma matança quase que em escala industrial.
Os pacientes recebiam o kit-covid — composto por hidroxicloroquina e ivermectina — em casa mesmo antes de realizarem qualquer exame ou sinalização de uma possível internação. A advogada afirmou ser uma estratégia para reduzir custos, considerando que ”é mais barato disponibilizar medicamentos do que realizar internação em UTI”. A depoente disse, inclusive, que a distribuição do kit-covid era feita para pessoas com comorbidades e que exames preliminares não eram realizados.
— Os médicos eram sim orientados à prescrição do kit. E esse kit vinha num pacote fechado e lacrado, não existia autonomia até com relação à retirada de itens desse kit. Inclusive, é muito importante observar também que quando o médico queria tirar algum kit, ainda que ele riscasse na receita, o paciente recebia ele completo. Então, ele tinha a informação de que tinha de tomar aqueles medicamentos e o médico tinha que riscar, porque a receita também já estava pronta. Inclusive, ela vinha com um manual de instruções — disse Bruna Morato; grifo nosso
Posteriormente, a advogada afirmou que os profissionais que recusavam prescrever o ineficaz tratamento precoce sofriam diferentes retaliações, como redução de número de plantões ou demissão. Bruna Morato reiterou que não existia autonomia médica na Prevent Senior. A representante disse que a empresa não tinha leitos necessários para realizar os atendimentos aos pacientes e que a alternativa para diminuir custo de internação foi a criação do tratamento precoce e a distribuição do kit-Covid. Além disso, comentou que, no início da pandemia, os médicos não utilizavam equipamentos de proteção individual para não criar um clima de tensão e alerta. A advogada também comenta que muitos médicos e enfermeiros chegaram a trabalhar infectados com o vírus da Covid-19. A empresa também adotou o procedimento de reduzir a oxigenação de pacientes gradualmente, principalmente após os 14 dias de tratamento. O objetivo da Prevent Senior era liberar leito e sustentar a ideia assassina de que ”óbito também é alta”. A denúncia de Bruna Morato é, na realidade, uma denúncia de homicídio praticado pelos responsáveis da operadora.
A Prevent Senior é extremamente bem-sucedida no atendimento para com idosos, chegando a ter 76% de sua carteira de beneficiários compostos por esse público, como apontou a BBC Brasil. Diante disso, a advogada Bruna Morato relatou que a empresa se aproveitou da vulnerabilidade dos idosos para fazê-los de cobaias.
O relato feito por Bruna Morato sobre as ações macabras da Prevent Senior demonstra que a operadora de planos de saúde trabalha conforme a cartilha do capital e que o único objetivo é o lucro. Quando falamos sobre como a sociedade é organizada no capitalismo e como as instituições trabalham, não devemos fazer pontuações morais. O lucro está acima da vida e a mercantilização da saúde segue a todo vapor, pois é necessário para acumulação de capital. O genocídio em curso no Brasil está enchendo o bolso de muita gente e não se engane: chamá-los genocidas — embora o sejam — não os afeta. É ingênuo pensar que a mão invisível do mercado sentirá vergonha ou se considerará antiética. A mão invisível do mercado — bem como o neoliberalismo que a sustenta — é assassina. Não devemos ter medo de afirmar isto.
O escândalo da Prevent Senior escancara, mais uma vez, que no capitalismo nada além do lucro importa. Hoje é a Prevent Senior e amanhã aparecerá outra, considerando que a lógica do capital não muda: a natureza e a vida nunca serão mais importantes que os cálculos econômicos e o acumulo desenfreado de capital. No capitalismo, a saúde — e qualquer outro direito básico — é administrada como um negócio altamente rentável e sempre será assim. Diante disso, a defesa de uma saúde não mercantilizada e a superação desse modo de produção devem seguir na ordem do dia. É de extrema urgência que lutemos por uma saúde não mercantilizada pois compreendemos que a saúde é um direito básico e negar o direito à saúde é negar o outro, é coisificar o ser humano e desumanizá-lo.