É um erro histórico comparar o comunismo ao fascismo
- 26 de janeiro de 2020
Por Leopoldo Neto, Marina Duarte e Norberto Liberator
Colaboraram Guilherme Correia e Adrian Albuquerque
Recentemente, um artigo de Tatiana Dias e Rafael Moro Martins, publicado no site The Intercept Brasil (TIB), causou polêmica nas redes sociais. De acordo com os autores, setores de esquerda adeptos às ideias de quem os dois jornalistas consideram “ditadores” estariam a contribuir no avanço da extrema-direita, que segundo a premissa do texto, se fortalece quando a esquerda se radicaliza.
O artigo – cuja estrutura mais se assemelha a “textões” do Facebook – equipara, sem qualquer embasamento em fontes, a Revolução Russa ao nazismo, ao citar uma declaração do historiador marxista Jones Manoel da Silva, em que o mesmo constata algo óbvio: em revoluções, há mortes. Os autores utilizam da frase para dizer, em tom de ironia, que tal frase naturaliza condutas criminosas.
Em uma demonstração de alto desconhecimento histórico, ignoram que todas as derrubadas de regimes autoritários demandaram resistência armada e, consequentemente, mortes. Tiranos não deixam o poder por livre e espontânea vontade. Assim foi na Revolução Francesa, que legou ao Ocidente os ideais liberais de liberdade, igualdade jurídica e fraternidade. Assim foi, também, durante o processo de independência dos Estados Unidos, bastião do liberalismo e da democracia burguesa.
Não considerando o bastante a ingenuidade a respeito de processos revolucionários liberais-iluministas, a dupla decide atacar a deputada Talíria Petrone (PSOL-RJ), devido a uma fala da mesma em homenagem ao aniversário do teórico marxista e líder revolucionário Vladimir Ulianov Lênin. De acordo com Dias e Moro Martins, exaltar Lênin estaria na mesma categoria de elogiar o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, ou de utilizar do discurso de Joseph Goebbels.
Lênin e os direitos civis
O governo revolucionário bolchevique, que teve Lênin à frente de sua gestão, foi o mais progressista do século XX. Pela primeira vez na história, um Estado nacional deu às mulheres o direito ao aborto, bem como deixou de tratar a homossexualidade como crime (conquistas posteriormente revogadas por Stálin).
Sob a liderança dos comunistas, a antes atrasada e feudal Rússia, onde a maior parte da população não sabia ler e escrever, conseguiu erradicar o analfabetismo entre adultos e se tornou referência mundial em educação. Esta conquista teve papel decisivo de Nadezhda Krupskaya, que além de pedagoga e militante bolchevique, também era esposa de Lênin.
Para além dos direitos civis impensáveis nas chamadas democracias ocidentais, o governo comunista cumpriu uma de suas principais promessas desde o início da Revolução: retirar a Rússia da Primeira Guerra Mundial. Ao contrário do que a esquerda liberal acredita ou quer fazer parecer, foram as potências ocidentais que não aceitaram o governo revolucionário e atacaram a Rússia soviética, dando armamentos e enviando tropas para apoiar o Exército Branco, liderado por aristocratas anticomunistas.
A quem interessa perpetuar a – já antiga – propaganda ocidental de que a URSS só pode ser caracterizada como um regime ditatorial? A consequência direta é o ofuscamento da obra que a democracia soviética teve, ao seu tempo. Enquanto no ocidente inúmeras barbáries ainda ocorriam em nome do lucro de poucos, na URSS as crianças estavam estudando (à época o trabalho infantil, na Europa, ainda acontecia aos milhares, com salários miseráveis e jornadas enormes, com crianças fora das escolas) e nos anos 30 o desemprego chegou ao fim. Em países ocidentais, trabalhadores ainda eram exaustivamente explorados e desconhecedores de qualquer possibilidade de direitos. A democracia liberal ocidental ainda matava milhões de pessoas amedrontadas pela possibilidade de um regime que sequer conheciam.
A esquerda que se pauta pela direita
Segundo um tuíte do youtuber Leon Martins, todas as mortes causadas pela resistência do Partido e do povo russo ao invasor devem ser colocadas na conta dos bolcheviques. “Sete milhões”, de acordo com o autodeclarado “nerd”, teriam morrido por consequência direta da Revolução. Não teria exercido qualquer influência, portanto, o fato de países capitalistas e seus aliados russos de direita terem iniciado a Guerra Civil.
Para os liberais que se consideram de esquerda, todos os setores que se encontram em tal espectro político deveriam pautar suas atitudes e discursos pelo que a direita considera razoável. Seria, assim, “absurdo” defender experiências que visaram o alcance do socialismo, pois estas foram demonizadas pela direita a ponto de se tornarem impopulares. Desta forma, reivindicar aquela tradição daria munição para os direitistas, que apontariam tal atitude. A contradição veio de forma rápida: o Intercept foi elogiado pelo blog de extrema-direita Terça Livre.
O que tais quadros da esquerda liberal ignoram, ou fingem ignorar, é que o governo petista foi derrubado, difamado e caluniado mesmo com discurso e práticas de conciliação, muito longe do radicalismo. Ignoram também que, se posições consideradas antidemocráticas fossem um problema para a população, Jair Bolsonaro jamais seria eleito. Seguindo tal “lógica”, seria então melhor que a esquerda abandonasse pautas como aborto, legalização de drogas e casamento igualitário por serem impopulares?
Não que a conciliação seja irrelevante ou antirrevolucionária, afinal, Marx e Engels citam alianças táticas (com o Partido Social-Democrata francês, por exemplo) como saída para alavancamento das ideias comunistas no seio social. Mas os mesmos fazem destaques sobre quais os objetivos dessas conciliações e alianças: quebrar a ordem social e política existente e, como questão fundamental, discutir a propriedade privada. A aliança pela democracia não envolve, em momento algum, anacronismo ou negacionismo histórico, muito menos abandono teórico-prático.
“Por que a esquerda insiste em falar sobre Lênin?”, questionam. Seria uma alternativa abandonar o materialismo histórico dialético? Será que o melhor a ser feito, em matéria de estratégia, é abandonar completamente os estudos de sociedades alternativas e seguir a agenda social, teórica e narrativa dos poderosos de sempre? Marx discordaria completamente. Em tempos de obscurantismo e negacionismo da ciência, se faz lamentável que o método escolhido para se tocar num assunto urgente – a nossa práxis como grupo revolucionário – tenha sido o apresentado, tão semelhante em rasura quanto o que combatem também, mesmo que achem estar tão distantes dos “admiradores de ditadores”.
Essa esquerda insiste em falar de Lênin pois, como bem afirmou Florestan Fernandes, antes dele, a teoria estava desalinhada da prática. E discutir a prática, o discurso e a estratégia é extremamente necessário, afinal é isso que se exige ao fazer a disputa. Falar de Lênin é falar de sua obra, não sua pessoa, é defender que existem possibilidades reais de mudança social e que já houve experimentações disto. E o jornalista investigativo de esquerda que opta por não investigar a obra comunista e, ao menos, a contribuição desta, limita sua capacidade de análise conjuntural e estrutural. Se não vamos investigar e nos aprofundar na obra de esquerda, vamos nos basear apenas pelas obras do liberalismo – que, aliás, também é pautado por governos autoritários e/ou totalitários?
Regrar-se pela direita, aliás, é se ancorar no medo eterno do comunismo, que tanto foi construído pela indústria cultural estadunidense como também pela mídia hegemônica – que o TIB, em tese, milita contra. Dizendo-se fazer jornalismo transparente e independente, preferem manter um discurso dominante que contribui para que a perseguição dos comunistas se perpetue. E ainda querem ditar que não negar a história é que contribui para a ruína tática da esquerda.
Jornalismo, História e ética
Na complexidade da realidade social, articulada a partir de uma série de conflitos e tensionamentos entre grupos com interesses diversos, o jornalismo – ao menos seu aspecto normativo – possui a importante função de narrar o presente e informar os diferentes indivíduos sobre os fatos da vida cotidiana. Com todas as críticas em relação ao aparelhamento dos complexos midiáticos com grandes indústrias, banqueiros, latifundiários e outro setores conservadores, o jornalismo é a instituição que possui a legitimidade para a disseminação pública de informações.
Contudo, junto a esta importância, provém uma responsabilidade social como também uma série de critérios éticos, estéticos e técnicos para com que esses profissionais construam um projeto de jornalismo sério. Compromisso com a realidade objetiva – embora com a consciência de que não há imparcialidade e narrar sempre implica selecionar um fato em detrimento de outro –, apuração dos fatos, pesquisa rigorosa e bem articulada, pluralidade de fontes estão entre alguns dos critérios que um jornalista precisa manter em seu horizonte normativo.
Não é à toa que, dentro desse panorama, se articula uma tensão entre os jornalistas e os historiadores. Estes possuem uma série de ferramentas metodológicas para compreender o passado e suas relações com o presente. Os jornalistas também possuem instrumentos para escrever sobre a relação passado/presente. As narrativas jornalística e historiográfica apresentam uma série de convergências em seus princípios deontológicos – todavia os jornalistas precisam ter vigilância e rigor quando se deparam com algum texto que se utiliza de abordagem histórica, para assim evitar anacronismos, distorções históricas e interpretações equivocadas.
Falar de Marx se faz importante já que o TIB utiliza a imagem do filósofo – e se coloca à esquerda – até para distribuição de brindes aos seus apoiadores. O conforto de utilizar uma identidade revolucionária, poderia, idealmente, ser acompanhado de retórica transformadora. O contrário é feito a partir do momento em que um veículo investigativo opta por ignorar a História – e a jornalista responsável se posiciona publicamente dizendo que a História fica pros historiadores. A retórica se faz, portanto, a mesma de grupos negacionistas de extrema-direita, mas o problema é a esquerda ainda se importar em fazer a disputa de hegemonia.
A fala da profissional sobre a prática jornalística em diálogo com a História mostra uma irresponsabilidade no tratamento da informação. Embora seja um artigo de opinião, ignora a importância da pesquisa de cunho histórico para fundamentar a lógica argumentativa em um texto. Porém, seu principal erro é o anacronismo. Retirar personalidades históricas, pensamentos e teorias de seus contextos sócio-históricos, além de confundir leitores que poderiam se interessar por um debate qualificado, dá munição para grupos de extrema-direita criticarem projetos socialistas de sociedade que se pautam pela radicalidade, é desonesto.
É inegável a contribuição do Intercept_BR na revelação da arbitrariedade do sistema judiciário brasileiro no que tange à interferência de Sérgio Moro no julgamento e na prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. As revelações que o jornal tem feito são extremamente importantes para mostrar a corrupção estrutural das instituições democrático-republicanas no Brasil.
Todavia, o artigo de opinião escrito de forma superficial, mal fundamentada e desonesta não contribui ao debate de um projeto de sociedade estruturado nos ideais da esquerda. Apenas fornece munição para a extrema-direita na luta pela manutenção da realidade objetiva e suas representações legítimas.
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