Anatomia de uma Queda: O uso da vida íntima para desqualificar mulheres nos tribunais

Apesar de ficcional, o filme francês “Anatomia de Uma Queda” evidencia infelizes semelhanças com a realidade das mulheres

Por Tainá Jara

Talvez uma história contada às avessas do usual ajude a comprovar pontos exaustivamente sustentados pelos movimentos feministas. O filme francês “Anatomia de uma Queda”, dirigido por Justine Triet, permite interpretações mais amplas e possibilidades de conclusões muito pessoais de cada apreciador. No entanto, ao ser lido a partir da perspectiva de gênero, é inevitável pensar o uso da vida íntima para desqualificar mulheres no tribunais, sendo elas vítimas ou rés.

Na história em questão, Sandra, uma escritora alemã, interpretada por Sandra Huller, se torna a principal suspeita do suposto homicídio do marido. Mesmo sem saber o desfecho da narrativa, o incômodo diante do uso de elementos íntimos para sustentar a tese da acusação, explorados de forma cada vez mais intensa conforme o julgamento avança, é quase permanente. 

A presença do filho da ré, de 11 anos, no tribunal não é fator intimidador para quem quer provar uma versão criminosa, mesmo sendo a situação por si só já muito dramática na vida de uma família que acabou de perder o pai. Sandra assiste ao uso de seu filho, sua vida pregressa, sua orientação sexual, seus traumas, desgostos e, até mesmo, sucessos, para desqualificá-la. 

Em contraponto, é notório o esforço da personagem principal para preservar a imagem do pai morto diante do filho – esforço que se torna insustentável diante do avanço da estratégia de acusação. O contrário, porém, passa longe de acontecer. 

Vasculhar a vida íntima pregressa de mulheres é muito comum em julgamentos de casos de feminicídio, por exemplo. Na posição de defesa, a estratégia é utilizada como tentativa de reduzir a pena dos acusados ou até absolvê-los. Tais passos, porém, trazem prejuízos irreparáveis à memória das vítimas. 

Em geral, os argumentos culpabilizam as mulheres, revitimizando-as; usam de sensacionalismo; desconsiderando a memória da própria vítima e seus familiares; como ao abordar aspectos da vida íntima. Estes elementos, somados a outros, ajudam a reforçar estereótipos sobre papeis de gênero e comportamentos socialmente esperados das mulheres.

 

A gravidade de situações como estas levou o governo Lula, por meio da AGU (Advocacia-Geral da União) a apresentar ao STF (Supremo Tribunal Federal), no início deste ano, manifestação para impedir juízes de avaliarem a vida sexual pregressa de mulheres vítimas de violência sexual. A ação está sob relatoria da ministra Cármen Lúcia e ainda não tem data para ser julgada.

Conforme a AGU, apesar do avanço da legislação brasileira, que busca proteger as mulheres de violência, como a Lei Maria da Penha (nº 11.340/2006) e a Lei Mariana Ferrer  (nº 14.245/2021), “os crimes de violência sexual aumentaram nos últimos anos e continuam a ocorrer casos em que acusados de estupro são absolvidos porque as vítimas são desqualificadas por juízes em razão de aspectos alheios ao crime denunciado, o que muitas vezes resulta em humilhação e revitimização de mulheres que sofreram violência sexual.”

Se considerada, a iniciativa se tornará um importante mecanismo de combate ao machismo estrutural no sistema judiciário. 

Desta forma, notamos que apesar de ficcional, o filme “Anatomia de Uma Queda” evidencia infelizes semelhanças com a realidade das mulheres. A percepção não se deve por acaso, já que a cineasta Justine Triet é reconhecida pelo olhar feminista em suas produções, cujas personagens fogem de estereótipos e expectativas impostas pela sociedade. 

O gênero perpassa sua própria trajetória profissional. Ela venceu a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes de 2023 com este último filme, tornando-se a terceira diretora mulher a ganhar o prêmio. No Oscar, foi a nona a vencer na categoria de melhor roteiro original, além de ter sido indicada na de melhor direção. Em quase um século da premiação estadunidense, cineastas mulheres foram indicadas à categoria nove vezes e apenas três levaram a estatueta.

Traçar paralelos entre realidade e ficção, buscar formas instigantes, menos óbvias, de narrar e produzir com uma ousadia específica é importante para levar debates relacionados às desigualdade de gênero de maneira quase corriqueira ao público. Quem assiste, se questiona sobre tais pautas, sem sentir o peso incisivo da militância. Só não temos provas se sozinha, a estratégia narrativa das telonas é eficaz. 

Referências:

JARA, Tainá Mendes. #NenhumaAMenos: Redes sociais e feminismos nos fluxos informativos do caso de feminicídio de Mayara Amaral. Dissertação de mestrado. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Programa de Pós-Graduação em Comunicação, 2019.

DA REDAÇÃO. Governo Lula defende que vida sexual de vítima não seja avaliada por juiz. PT, 2024. Disponível em <https://pt.org.br/governo-lula-defende-que-vida-sexual-de-vitima-nao-seja-avaliada-por-juiz/>. Acesso em: 07 jan. 2024. 

DE ALMEIDA, Fernanda. Justine Triet pode ser a 4ª mulher a receber Oscar de melhor direção. Forbes, 2024. Disponível em <Leia mais em: >. Acesso em: 07 jan. 2024. 

Tainá Jara

Tainá Jara

Jornalista e pesquisadora em Comunicação. Interessada em mídia, estudos de gênero e direitos humanos. Na horas vagas vai de cinema, música e, sim, política.

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