Putsch de Brasília

O Brasil é o país que costuma conciliar o inconciliável e seria um erro crasso conceder, outra vez, anistia aos golpistas; por isso, anistia nunca mais

Por Vitória Regina

A posse de Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 1º janeiro, foi marcada pelo pedido de centenas de pessoas que gritavam: “sem anistia!”. Uma semana depois, naquela mesma Praça, seguidores do ex-presidente Jair Bolsonaro submeteram o Brasil e a sua frágil democracia a um ataque golpista alimentado pelo clã bolsonarista e financiado por vários empresários de todo o país.

O que aconteceu nas repartições públicas anexas à Esplanada dos Ministérios não deveria deixar ninguém surpreso, pois o que vimos foi uma consequência de quatro anos de notas de repúdio. O medo de uma ruptura institucional assombra os brasileiros porque a nossa sociedade está acorrentada aos porões da Ditadura. O espectro autoritário ronda a nossa frágil democracia. 

Foi, também, o resultado daquilo que se evitou fazer após o fim da Ditadura Militar: condenar e punir os torturadores e assassinos. Ao contrário dos vizinhos Argentina, Uruguai e, em menor grau, Paraguai, o Brasil viveu uma transição com ares de normalidade na qual as palavras de ordem eram “anistia ampla, geral e irrestrita”, erro reproduzido por setores da esquerda e liberais progressistas, e que equiparou os crimes praticados pelo regime à ação dos que a ele resistiam, resultando em nenhuma punição aos que torturaram e mataram em nome da “luta contra o comunismo”.  

Em abril de 2016, na Câmara dos Deputados, durante a votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), Jair Bolsonaro votou em nome do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra (1). De acordo com Bolsonaro, Ustra era “o terror de Dilma Rousseff”. Neste dia, se as instituições brasileiras funcionassem, Jair deveria, no mínimo, ter o mandato de deputado cassado e ter sido preso. Contudo, como sabemos, não foi. Após elogiar um torturador, Bolsonaro se elegeu presidente.

Dois anos após homenagear sem consequência um torturador, Bolsonaro foi eleito com mais de 55 milhões de votos. Posteriormente, uma verdadeira máquina de desinformação com dinheiro público foi montada e a extrema-direita deslanchou. Os grupos no WhatsApp e Telegram disparam e passaram a atuar como uma espécie de célula de disparo de irrealidade e de ataques contra os poderes da República.

A criação e desenvolvimento diário dessa máquina de desinformação passou a questionar a confiança nas urnas e, durante a pandemia da Covid-19, das vacinas. Os disparos em massa miraram também nos agentes dos Poderes da República e criou-se uma imagem, ao redor de Jair Bolsonaro, como o único capaz de salvar a nação contra um ‘’sistema corrupto’’ e, claro, contra o comunismo.

Esses espaços virtuais ganharam um local físico: o cercadinho do Planalto. Ali, semanalmente, Bolsonaro sinalizava aos seus seguidores quais seriam as pautas da semana e quem deveriam atacar. Inúmeras ameaças às instituições foram realizadas nesse espaço. O cercadinho do Planalto foi, na realidade, ninho da serpente que sustentou o avanço de um movimento golpista e negacionista.

É importante destacar novamente a impossibilidade de ficar surpreso com o que ocorreu em Brasília, porque o ovo da serpente estava chocando há anos. Os bolsonaristas não decidiram de forma espontânea e inédita ameaçar a democracia e tentar instalar um caos social. 

Quem não tentou relativizar a vontade do grupo de eleitores de Bolsonaro que falavam em “ucranizar o Brasil’’ sabia que os ataques aos Três Poderes era questão de tempo. A ideia de ucranização do Brasil se baseia na vontade de repetir o que aconteceu no país do leste europeu: invadir prédios públicos e assegurar a ascensão e domínio da extrema-direita no país.

 

 

Arte: Norberto Liberator

Quem tentar minimizar o perigo oferecido por esse movimento de caráter fascista e golpista à sociedade estará cometendo um erro histórico. E como a história não cobra dívida, é urgente investigar e punir todos que se envolveram de alguma forma com os terroristas de Jair. Isso inclui, por óbvio, o próprio ex-presidente que não reconheceu a eleição e incendiou seus eleitores. Como Donald Trump, Bolsonaro alimenta um discurso que visa minar e desestabilizar um governo eleito democraticamente em outubro de 2022.

Após o resultado que garantiu a vitória de Lula nas eleições de 2022, bolsonaristas golpistas montaram acampamentos em frente aos quartéis do país todo. Durante três meses, nada foi feito para dispersar e desmontar a superestrutura bancada por empresários. Diante da submissão – e participação – do Exército e da polícia, tornou-se óbvio comparar à postura adotada contra as manifestações e ocupações de esquerda.

Às vésperas da posse de Lula testemunhamos tentativas de atentados em aeroportos e postos de gasolina praticados por aqueles que nunca foram impedidos de pedir golpe militar, nem de aclamar uma liberdade autoritária. Não podemos oferecer uma segunda anistia. Todos os funcionários públicos que se relacionaram com esses atos devem ser responsabilizados. Além disso, responsabilizar todos os civis e empresários que atentaram contra as premissas democráticas é fundamental. 

Em relação aos ataques de 8 de janeiro, dois pontos de análise precisam estar no horizonte. O primeiro é a clara tentativa de desmoralizar e desestabilizar o governo e os Poderes da República, considerando que um ato terrorista logo na primeira semana impõe ao governo a necessidade de sustentar a sua própria permanência e também o impede, em algum grau, de trabalhar. O segundo ponto é considerá-los como uma espécie de ensaio geral que visava testar o nível de resistência a ser enfrentado – do governo, das instituições, dos movimentos sociais e da sociedade civil.

A postura de Lula horas após o início dos ataques foi bastante adequada. O petista entendeu que precisava dar uma resposta estrutural ao Putsch de Brasília(2), decretando intervenção federal e prometendo punir quem se manifestou contrário à Constituição de 1988. Embora seja uma posição acertada, os movimentos sociais e a sociedade civil também devem se colocar como uma barreira à ascensão da extrema-direita no Brasil. Além das respostas institucionais, as ocupações das ruas em defesa da democracia e contra o espírito golpista precisam continuar. Não podemos nos iludir com a ideia de que há uma restauração democrática e que entraremos numa onda de normalidade.

Enquanto Lula discursava ao ser empossado, a população ali presente gritava ‘’sem anistia!’’. O Brasil é o país que costuma conciliar o inconciliável e seria um erro crasso conceder, outra vez, anistia aos golpistas. Por isso, se desejarmos um futuro sem ameaças do passado: anistia nunca mais.  

NOTA

  1. Entre 1970 e 1974, Ustra – que era coronel do Exército brasileiro – chefiou o DOI-Codi, um dos principais centros de repressão da Ditadura Militar no estado de São Paulo. Ustra está relacionado diretamente com mais de 60 mortes e desaparecimento. Além disso, sob comando de Ustra, uma denúncia de tortura era registrada a cada 60 horas.

  2. Em referência ao Putsch da Cervejaria. Em 9 de novembro de 1923, Adolf Hitler e seus seguidores invadiram um comício político no Bürgerbräukeller. O objetivo do grupo era derrubar a República de Weimar. Uma década depois Hitler se tornou o Führer.
Vitória Regina

Vitória Regina

Marxista e psicóloga. Debate política, psicologia e cultura.

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