Votos sem cabrestos
- 21 de novembro de 2022
Diferente de discursos xenofóbicos ou mesmo de simplificações rasas, maior adesão por candidatos petistas à presidência no Nordeste não ocorre por votos de cabresto, mas por fatores diversos de uma dinâmica complexa
Por Carolina de Mendonça
Arte por Iara Cardoso
A cada quatro anos, durante o mês de outubro, já é de praxe. Seja nas redes sociais, nos espaços públicos na região centro-sul ou em colunas e comentários nos jornais, a xenofobia contra nordestinos costuma ser intensificada. Historicamente, a região Nordeste é conhecida por votar majoritariamente nos candidatos do Partido dos Trabalhadores (PT) para a presidência da República.
Um clássico xingamento, disfarçado de análise política usada pelos críticos, é que o Nordeste seria “Brasil profundo” dominado por coronéis. Não restam dúvidas de que, nos nove estados da região, há famílias que por décadas comandam a política local. É o caso da conhecida nacionalmente família Sarney no Maranhão, cujo patriarca José Sarney (PMDB) chegou à presidência do Senado Federal e do país, ou da família Magalhães, recém derrotada para o governo da Bahia por Jerônimo Rodrigues (PT), o primeiro indígena a ser eleito governador no Brasil, em um pleito marcado por fraude racial do adversário ACM Neto (União), que chegou a se declarar negro.
No entanto, pequenos grupos dominarem uma enorme região não é uma problemática nordestina, mas do capitalismo, em especial pela colonização iniciada em capitanias hereditárias, onde hoje estão principalmente os estados do Nordeste.
No estado de São Paulo, o mais populoso do país, há décadas a família Covas tem participação direta na política — em 2020, mesmo com o candidato Bruno Covas (PSDB) apresentando estado avançado de câncer, que o levaria a óbito em maio de 2021, ele foi eleito prefeito da capital paulista, derrotando Guilherme Boulos (PSOL) nas urnas. Ou a família Tebet no Mato Grosso do Sul, como já mostrado em reportagem da Revista Badaró, que domina a política local e teve com Simone Tebet (MDB), senadora de destaque durante a CPI da Covid e candidata à presidência da República, maior visibilidade nacional.
Ainda que os votos à esquerda na região Nordeste sejam fortes para a presidência, não são homogêneos nas eleições locais. No último pleito, Sergipe teve, em todos os municípios, vitória de Lula desde o primeiro turno, porém elegeu majoritariamente deputados federais e estaduais de direita, como o bolsonarista Laercio Oliveira (Progressistas), eleito ao Senado Federal, e o também bolsonarista Fábio Mitidieri (PSD) ao governo estadual, que venceu o senador petista Rogério Carvalho.
Uma outra justificativa usada para menosprezar as escolhas eleitorais da população nordestina é a pobreza da região, traduzida pelo argumento de que esta “votaria pelo estômago”. A terrível analogia coloca o sujeito que passa fome como incapaz de ter um pensamento crítico e sugere que o impacto direto nas necessidades básicas para sobrevivência não seria um motivo razoável para suas decisões políticas.
Os comentários ofensivos ou especulações sobre o voto da região são, acima de tudo, ignorantes, não demonstram uma compreensão da complexidade da política dos nove estados e não pensam o país de forma ampla. O veículo independente Marco Zero Conteúdo, situado em Pernambuco, buscou, junto a professores de universidades nordestinas, quais seriam os motivos que levam essa população a votar. As motivações são amplas e é possível traçar análises diversas.
Uma região não é capaz, e nem deveria ser, de carregar o país nas costas, mas os votos têm sido importantes para neutralizar o avanço da direita no Brasil. Desde 2002, os candidatos petistas à presidência da República venceram no Nordeste, inclusive na dolorosa eleição de 2018, que levou ao poder o fascista Jair Bolsonaro, na época pelo PSL. Naquele ano, nos nove estados, o professor Fernando Haddad (PT) venceu no segundo turno, mesmo não sendo uma figura tão conhecida em território nordestino.
Apesar de o voto dar o cargo a Bolsonaro, não se pode dizer que as eleições ocorreram de forma democrática. A incitação ao ódio, o disparo de mensagens com informações falsas, o pânico moral, a prisão de seu principal opositor e até a alegação de fraude das urnas eletrônicas – mesmo após a vitória – estiveram presentes na disputa de 2018. Naquele ano, o cadastramento de biometria também fez com que milhões de títulos de eleitor fossem cancelados no Brasil, a maior parte no Nordeste.
O medo de que a esquerda moderada retomasse a presidência fez com que as instituições trabalhassem a favor do fascismo, limitando os direitos civis da população por uma questão burocrática. Não se deve entender o episódio como uma problemática pontual ou atribuir uma culpa à população pela desinformação, já que muitos municípios nordestinos ainda vivem desertos de notícias. O ocorrido em 2018 foi um golpe à democracia.
Em 2019, o governo Bolsonaro teve um início nada bom para a região, que naquele ano sofreu com um derramamento de óleo no litoral que afetou os ecossistemas, em especial a restinga e o manguezal, além de comunidades ribeirinhas, pesca e turismo locais. Além do impacto pessoal para os moradores, que têm a praia e os rios que desaguam no mar como parte do cotidiano e identidade, os habitantes passaram por um enorme afastamento físico desses espaços, apesar de manterem a proximidade geográfica.
Durante a pandemia de Covid-19, foi criado o Consórcio Nordeste, visando amenizar a negligência vinda do presidente que debochava das milhares de mortes no país. Alguns por táticas políticas, outros por posicionamento ideológico, uns de forma mais evidente, outros de forma bastante discreta, o certo é que todos os governantes da região se posicionaram contrários ao bolsonarismo. Mesmo aqueles que, dentro de seus estados, permaneceram com práticas similares ao então presidente.
A população nordestina, em sua maioria, repudia Bolsonaro. O que fez em 2022 figuras como ACM Neto (BA) e Fábio Mitidieri (SE) esconderem suas afinidades e aproximações com o presidente, ignorando acenos e tentando criar associação à figura de Lula.
Não apenas há um ódio a Bolsonaro, como um carinho por Lula – mas não um fanatismo –, uma identificação com esse retirante de Pernambuco, ex-metalúrgico que teve sua vida política iniciada nos sindicatos. E que também é um líder carismático, apaixonado por futebol, que fala com saudosismo de sua mãe e que, assumidamente, adora tomar cachaça.
Os programas criados e ampliados durante os governos petistas tiveram impacto especial na região, como é o caso do extinto programa Bolsa Família, duramente criticado por membros da direita e recordado ao se falar do voto “pelo estômago” vindo da região. Há uma gratidão, sim, pela figura de Lula, afinal foi o primeiro a olhar para o Nordeste e ter políticas públicas efetivas para melhoria das condições regionais.
No primeiro turno do último pleito eleitoral, novamente se abriu uma larga vantagem para o candidato petista no Nordeste. Dentre uma parcela progressista, reforça-se um mito de que a região salvaria o país do fascismo, o que não seria possível apenas com nove das 27 unidades da Federação.
Já esperado que se mantivesse a preferência pelo candidato petista no segundo turno das eleições, apenas 20 municípios da região tiveram preferência por Bolsonaro no segundo turno, o equivalente a pouco mais de 1% das cidades. A Polícia Rodoviária Federal (PRF), mesma polícia que assassinou Genivaldo de Jesus na região sul de Sergipe, em ação golpista, contrariou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e realizou operações nas rodovias, que dificultaram e até impediram muitas pessoas de votar no segundo turno.
A maioria das operações, 49,5%, ocorreram no Nordeste. Novamente, a tentativa de golpe durante as eleições afeta majoritariamente a população da região que teve negados seus direitos de exercer a cidadania e de ir e vir, além de sofrer constrangimento e violências.
O voto à esquerda para a presidência, pensando no geral e não em interesses pessoais, também tem fatores históricos. A região, que foi a primeira terra indígena a ser saqueada e devastada, com sua população aculturada, assassinada e violentada, sempre foi palco de resistências ao colonialismo que se renova nas relações de poder, inclusive entre diferentes regiões do país.
Lideranças criaram enormes comunidades como forma de luta pela liberdade, a exemplo de Zumbi, com seu quilombo em Alagoas; Antônio Conselheiro, no Arraial do Belo Monte, destruída na Guerra de Canudos, no sertão baiano; ou o imenso bando de cangaceiros, que teve como liderança Lampião, que utilizaram do banditismo como forma de lidar com a situação de miséria vivida. Também foi palco de levantes populares como a Revolução Praieira (PE) e a Revolta dos Malês (BA).
A cultura muito importante para a região também traz uma forma de resistência e de apropriação do espaço público, que mesmo com as tentativas de privatizar ou descaracterizar, tendem a se manter em novas roupagens, respeitando algumas das tradições. Para além do turismo, as festividades trazem à população um pertencimento à história daquele lugar.
Durante a campanha do segundo turno do petista, a força das festas de carnaval foi evocada na visita às capitais de Salvador (BA) e Recife (PE). Em avenidas que durante os dias de festa ficam lotadas de foliões, Lula esteve em cima de trios puxando multidões. Um misto do fenômeno político que sua figura representa, o repúdio da população a Bolsonaro e a saudade de estar aglomerado nesses locais pulando, gritando e sem medo de ser feliz.
A constante escolha pelos candidatos petistas no Nordeste não se dá por votos de cabresto, mas fatores diversos de uma dinâmica complexa. Quaisquer simplificações que buscam desmerecer as escolhas da população demonstram ignorância e preconceito