Além do bolsonarismo: notas sobre política e enfrentamento à violência desde a juventude

Na minha infância, era prometido a mim “Um País de Todos”; hoje anuncia-se uma nova caminhada: “Vamos Juntas/os Pelo Brasil” reconstruir o pouco do que poderíamos ser e tudo que o capitalismo nos rouba

Por Matheus Firmino
(Arte por Marina Duarte)

O exercício de análise de conjuntura nos impõe o desafio de compreender  determinada realidade, internacional ou nacional, a partir de dimensões políticas e culturais específicas. Busca-se compreender a partir das determinações econômicas e sociais mais amplas alguma especificidade que permita ao militante traçar estratégias para avançar na construção do programa político em questão — a saber: dos direitos humanos, da luta por terra e/ou moradia, da luta feminista, por alimentação, da defesa do SUS etc. 

Neste texto, buscaremos dialogar um pouco sobre os desafios que os movimentos sociais e populares de esquerda enfrentam neste período no Mato Grosso do Sul. Refletir sobre a conjuntura é uma tarefa que exige algumas ferramentas analíticas qualificadas, ainda mais neste momento em que vivenciamos ansiedades em relação ao país que vamos construir.

As condições objetivas e subjetivas do campesinato sul-mato-grossense e do conjunto de outros setores de classes subalternas devem ser interpretadas a partir da compreensão de que o autoritarismo brasileiro constitui muito da nossa vida política. Essa afirmação implica refletir sobre quais estratégias ou táticas adotaremos dentro de diferentes campos de construção/disputa no próximo período.

Segundo informações do Ministério da Defesa e do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), os militares começaram a questionar o sistema eletrônico de votação somente em 2021, sob governo Bolsonaro. Patrocinados pelo próprio sistema eleitoral, a entrada destes no debate sobre as urnas eletrônicas deu, ao presidente, oportunidade e respaldo para promover ataques ao processo eleitoral. 

Em junho de 2022, a Defesa apresentou uma tréplica ao TSE e disse que os militares se sentem desprestigiados no debate sobre as eleições. Em ofício, o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, disse que não houve equívocos nas análises, mas divergências técnicas, e cobrou novamente algumas das alterações no processo eleitoral. Os questionamentos feitos pelos militares incluem desde pedidos de informação sobre o organograma do TSE até dados mais técnicos, como cálculos usados em testes de segurança das urnas. 

A tensão em torno de qual o papel a ser desempenhado pelas Forças Armadas começou há pelo menos um ano, quando o presidente Bolsonaro e alguns de seus aliados intensificaram suas críticas ao sistema eleitoral. Sem apresentar provas, levantaram dúvidas sobre a integridade das urnas eletrônicas alegando supostas falhas no sistema, defenderam a implantação de um sistema de contabilização em que os números digitados por cada eleitor nas urnas sejam impressos e depositados em uma urna de acrílico como forma de garantir segurança em caso de acusações de fraude. 

Uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) chegou a tramitar no Congresso Nacional, mas ela não obteve os votos necessários e foi derrotada, em agosto de 2021. Todo esse debate se acentuou ao mesmo tempo em que as principais pesquisas de intenção de voto passaram a mostrar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à frente de Bolsonaro na disputa pela Presidência da República.

Logo após a derrota da PEC do voto impresso, os militares voltaram à cena convidados pelo TSE para fazer parte da Comissão de Transparência das Eleições (CTE), criada em setembro de 2021 pelo então presidente do tribunal, Luiz Roberto Barroso. O grupo também reúne especialistas e representantes do Congresso, Polícia Federal e outras entidades. No âmbito da comissão, os militares apresentaram os mais de 80 questionamentos, além de sete sugestões de alteração nos procedimentos das eleições. Quase a totalidade das propostas foi rejeitada de forma assertiva pelo TSE.

De acordo com Carolina Botelho, pesquisadora do Laboratório de Estudos Eleitorais, de Comunicação Política e de Opinião Pública da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), as manifestações dos militares até o momento devem ser vistas como uma tentativa de intervenção no processo eleitoral, já que desde 1985 as Forças Armadas atuaram dentro de suas atribuições sem fazer interferências na esfera política. 

O teor dos questionamentos sobre o funcionamento do sistema eleitoral feitos pelo Exército deve ser visto como uma “intervenção” dos militares no processo das eleições. Outro fator que devemos considerar, segundo  o professor de Teoria Política da Universidade Federal do Tocantins (UFT) e doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB), Hesaú Rômulo, o grande número de militares na gestão do presidente Jair Bolsonaro dificulta indicar onde termina o governo e onde começam as Forças Armadas.

É possível estabelecer algumas comparações entre as possibilidades de fortalecimento de velhas e novas formas políticas? Nos ascensos autoritários cotidianos encontramos possibilidades de desarticulação das ideias bolsonaristas?  Cabe a nós investigar a capacidade do bolsonarismo de manipular as mentalidades da classe trabalhadora e outros setores de classe. 

A possibilidade de as Forças Armadas sentirem legitimidade em questionar as urnas eletrônicas é consequência direta de uma construção anterior de mobilização bolsonarista: o sete de setembro de 2021. Quando conclamou seus apoiadores às ruas, o execrável Presidente da República não economizou declarações que dessem conta das suas pretensões radicais. A ruptura não ocorreu, mas negar a afetação cultural que o bolsonarismo causou pode comprometer nossa política no próximo período.

Algumas análises desconsideram o caráter bonapartista do sete de setembro bolsonarista, outras ressaltam os contornos populistas e eleitorais do ato – as mais arrogantes e ignorantes dirão publicamente que se trata de cortina de fumaça para desviar dos debates programáticos. Caraterizamos o sete de setembro como um fenômeno populista-eleitoral com direção à ruptura institucional, que objetiva iniciar o processo de transição do regime democrático liberal atual para algo pior, que ainda não conseguimos compreender objetivamente.

A escolha da data não é aleatória ou inocente: faz parte de um projeto maior de disputa das mentes e corações do povo, em que tentam apagar sistematicamente a longa tradição de luta popular por direitos humanos e pela vida. Eles querem que nos esqueçamos do Massacre de Eldorado dos Carajás, do estupro e mutilação da menina Araceli Crespo e do Grito dos Excluídos. 

Evidentemente que não desconsideramos os deslocamentos causados pelo evento-teste bolsonarista como um perigo real, afinal seu discurso de ataque à integridade das urnas cumpre o papel de relacionar todo o bolsonarismo, produzindo  consensos na sua base social – que  é a disputa/distorção dos entendimentos de categorias como “democracia” e “liberdade”.

Impor novos significados às coisas que norteiam nossas experiências políticas garante aos militares e ao bolsonarismo a possibilidade de continuarem intervindo na conjuntura política pós-outubro de 2022. A dinâmica dos alinhamentos orgânicos de diferentes frações de classe, mas principalmente dos setores burgueses, pode constituir um desafio inédito para as esquerdas brasileiras.

Traçar estratégias, definir prioridades e eleger metas são tarefas coletivas, mas que são irremediavelmente conformados por trajetórias e acúmulos subjetivos, no sentido em que as pessoas só se colocam na luta como sujeitos quando a bandeira levantada está diretamente conectada com suas necessidades imediatas. Atualmente, por conta das pesquisa de intenção de voto, tem se tornado usual declarar que a derrota do regime do presidente Bolsonaro (e de forma quase que matemática, do bolsonarismo)  depende exclusivamente da eleição do candidato petista com suas alianças de centro-direita – sim, são tempos complicados, mas o objetivo deste texto não é refletir sobre a tática eleitoral   que consideramos acertada, o que já foi feito no editorial “Sem ilusões, com Lula”, publicado em maio deste ano.

O bolsonarismo é um sistema cultural complexo que surge a partir dos projetos reacionários e conservadores do cristianismo. Muito tem se falado sobre fé, projeto neoliberal de sociedade e disputa ideológica das igrejas – evidentemente não simplificamos nossa compreensão do avanço do conservadorismo como responsabilidade das Igrejas pentecostais e neopentecostais, mas como responsabilidade de blocos de ultra direita da Igreja Católica e outras denominações religiosas do país –  enquanto os debates feministas sobre direitos sexuais e reprodutivos foram convenientemente silenciados ou minorizados no conjunto dos partidos políticos e sindicatos. Assumindo como pressuposto que o corpo é matéria política primária de qualquer coisa que entendemos como digno de atenção: sujeito, família, território, nação, etc; consideramos que nos é pertinente ler algumas das dimensões diretamente envolvidas na questão para, se possível, desarticular um dos mais fortes alicerces do bolsonarismo: o pânico moral em torno dos direitos sexuais e reprodutivos.

As formas políticas como o povo negro tem organizado suas ansiedades são complexas e plurais. Desde os movimentos culturais à luta por saúde – precisamos falar sobre os encontros entre as capoeiras, sambas, candomblés, umbandas e outros evangelhos como caminhos possíveis para o fortalecimento e consolidação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra -, das lutas pelo desencarceramento em massa e antimanicomial, dos movimentos das infâncias e pela garantia de direitos sociais. Lançar novos olhares sobre estes e outros projetos do mundo é fundamental para a consolidação de uma nova democracia em que corpos negros não sejam o escape da violência de Estado. 

Arte: Marina Duarte

Nossos inimigos de classe sabem muito bem que qualquer transformação cultural que ponha em risco a hegemonia cis-hétero-capitalista deve ser combatida/interrompida, por isto priorizam a produção de discursos jurídicos e médicos que articulam concepções conservadoras sobre sujeitos, desde o pânico moral em torno da categoria “infância” ou do controle cada vez maior em torno das políticas públicas de garantia de saúde e outros direitos sociais à maternidade. No atual modo de produção e reprodução da vida, crianças e adolescentes são pouco mais que consumidores. E quando não podem ser absorvidos por essa lógica são engolidos por degradantes condições de trabalho ou transformadas em mercadoria – para atestar tal fato, basta lembrar que qualquer discussão sobre trabalho infantil foi despolitizada ao ponto de ser reduzido ao trabalho doméstico cotidiano (reservado na nossa sociedade às mulheres e crianças) ou algum caso excepcional de precariedade.

O que complexifica nosso desafio é o fato de o Estado deliberadamente fragilizar os aparelhos públicos que compõem a rede de garantia de direitos mínimos enquanto atores políticos conservadores – espalhados e organizados em diferentes frentes de construção de hegemonia – se infiltram em diferentes pontos do edifício constitucional. 

A disputa nesta arena atravessa diferentes instituições e discursos: as escolas, as igrejas, os conselhos tutelares, a medicina, etc. Em cada um desses campos uma intensa batalha é travada de forma interdependente, quer dizer, quando um determinado campo avança ou recua, os outros podem se reorganizar de acordo com esse movimento. 

Por exemplo: quando conselheiros tutelares priorizam seus valores morais religiosos para mobilizar dispositivos jurídicos do sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes a fim de perseguir famílias que vivenciam sua fé dentro de terreiros dos candomblés e umbandas, pode parecer um fenômeno puramente de racismo religioso e inconstitucional, mas olhando da nossa perspectiva, a existência de um judiciário utilizado como plataforma para o projeto de poder antinegro vai tornar possível que juízas e juízes se sintam autorizados para torturar crianças que são encaminhadas ao serviço de abortamento legal disponível no SUS.

Reconhecemos como urgente a construção e fortalecimento de redes comunitárias de defesa e promoção de direitos: moradia, saúde, alimentação, saneamento básico, lazer e cultura. Precisamos refundar espaços culturais comprometidos com o acolhimento e o enfrentamento à violência.

Pouco importa para os bolsonaristas – e provavelmente para  muitos sul-mato-grossensess – quanto custa física e emocionalmente para qualquer pessoa gestar e parir o fruto de estupro. Para a maioria das pessoas a “vida” está acima da dignidade humana. Por isto, temos deslocado nossa praxis reafirmando sem negociar: criança não é mãe, toda gravidez precoce é um estupro presumido. É violência.

Tornou-se imprescindível  compreendermos saúde e direitos como categorias amplas e abertas – e também integradas – que não estão limitadas aos dispositivos jurídicos e médicos, ou seja: talvez seja a hora de iniciarmos um processo de mapeamento e aprendizado com práticas populares de segurança, cuidado e proteção. Decidir de forma livre e responsável as condições, a quantidade e se queremos ter filhos em qualquer fase da vida é um dos direitos humanos mais violados em nosso país. Começando pelo fato de que poucos de nós recebemos informações cientificamente adequadas sobre métodos contraceptivos que nos permitam viver nossa sexualidade livre de discriminação, imposição ou violência. Estamos falando sobre o direito de escolher. O direito de decidir é uma causa justa. Viver plenamente a sexualidade é uma causa justa.

As alternativas que enxergamos para enfrentar esta dura realidade são muitas: é oportuno que nós jovens, dentro das nossas serendipidades e pluralidades,  construamos novas formas de conversar e aprender sobre nossos corpos. Que nos organizemos para fortalecer os movimentos sociais e populares que constroem suas agendas em acordo com os direitos humanos. Cabe a cada um de nós iniciarmos a conscientização permanente dos nossos amigos, familiares, comunidades de fé e territórios para acesso a todos os aparelhos públicos da rede de garantia de direitos.

Compreender que o MS é uma terra construída concomitantemente à manutenção e extensão das hierarquias raciais nos obriga a olhar para as relações político-econômicas a partir de algumas perspectivas mais ou menos complexas. Comecemos pelo óbvio: a hegemonia do agronegócio como organizador do nosso modo de vida está chegando ao fim. Antes de o agronegócio nos matar e morrer, definitivamente, é óbvio que todos os latifundiários que constroem essa política econômica vão investir herculeamente seus grandes recursos financeiros na manutenção da hegemonia em nossa vida política.

Em 2022 a disputa que tem exposto nossas fragilidades e centralizado nosso foco na questão das eleições. O Estado do MS – mas também as nossas esquerdas partidárias – continua debilitado e refém dos donos do poder. Bastariam alguns parágrafos para descrever e localizar variados episódios de violência política que lutadoras e lutadores populares, aqueles que os partidos e movimentos cooptados escolhem não proteger, têm sofrido. Toda vez que não interrompermos processos de perseguição e assédio político, nossa cumplicidade nos obrigará a colher flores para os nossos mortos.

Por óbvio, não desconheço ou desrespeito os debates sobre o tema que organizações populares têm acumulado ao longo da sua história – organizações estas forjadas na reação ao regime cívico-militar de 64, em que a repressão e assassinato da classe trabalhadora eram política oficial de Estado -, mas para muitos dos jovens militantes como eu, o que tem se evidenciado é que nossa integridade física e psicológica pode ser negligenciada quando nossas contribuições não são direcionadas ao cálculo eleitoreiro.

Os guarani-kaiowás são um dos povos que têm passado pelo processo de extermínio que o capitalismo latifundiário do estado executa mobilizando diferentes tecnologias. Todo um povo massacrado, mas que não deixam de lutar. O agronegócio tem avançado sobre territórios tradicionais indígenas e quilombolas, por conta da sua necessidade metabólica de acumular terra para plantar transgênico com veneno e criar gado. Neste modo de produção extrativista e predatório, não é possível constituir uma democracia que respeite modos de vida que escapem da monocultura e do progresso. Pois é isto que querem fazer conosco: jogar-nos numa vida de monocultura envenenada. Uma vida sem encantamento.

O medo e o saudosismo têm sido instrumentalizados para entravar novas possibilidades. Na minha infância, era prometido a mim “Um País de Todos”, eram tempos de PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) e Bolsa Família. Hoje anuncia-se uma nova caminhada: “Vamos Juntas/os Pelo Brasil” reconstruir o pouco do que poderíamos ser e tudo que o capitalismo nos rouba.

Notas de rodapé

  1. Eleições 2022: o papel e as polêmicas dos militares na votação para Presidência.  Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61402480 Acesso: 18/07/2022.
  2.  7 de setembro e os eventos-teste de Bolsonaro. Disponível em: https://diplomatique.org.br/7-de-setembro-e-os-eventos-teste-de-bolsonaro/ Acesso: 19/07/2022 
  3.  Carajás não foi fato isolado… Disponível em: https://mst.org.br/2022/04/20/carajas-nao-foi-fato-isolado-foi-um-marco-para-continuidade-de-outros-massacres-diz-ripper/ Acesso: 18/07/2022
  4.  Faça Bonito. Disponível em: https://www.facabonito.org/acampanha Acesso: 18/07/2022
  5. Sem ilusões, com Lula. Disponível em: https://www.revistabadaro.com.br/2022/05/30/editorial-sem-ilusoes-com-lula/
  6.  O direito ao corpo e as demandas dos movimentos LGBT+ por direitos sexuais e reprodutivos muitas vezes não são tidos como estratégicos dentro das nossas organizações.
  7.  Nota do Coletivo Diversas Feministas de Mato Grosso do Sul, grupo orgânico da Rede Nacional de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos. Disponível em: Declarações e Compromissos Feministas – Diversas Feministas .pdf
  8.  Sempre com evidentes marcas de valores religiosos ou significantes produzidos em trajetórias de vidas diversas em que “trabalhar desde cedo me ensinou a ter caráter”.
Matheus Firmino

Matheus Firmino

24 anos, periférico, militante por direitos humanos, principalmente os direitos sexuais de crianças e adolescentes. Atualmente coordenador municipal do MNU (Movimento Negro Unificado) Campo Grande e membro do Comcex - Comitê de Enfrentamento à Violência e Garantia de Direitos Sexuais de Crianças e Adolescentes.

MARINA DUARTE

MARINA DUARTE

Ilustradora e quadrinista pantaneira. Feminista antiproibicionista interessada pela profunda mudança social.

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