Angola: uma tragédia com atuação brasileira
- 26 de abril de 2022
Em abril de 2002, chegava ao fim a Guerra Civil Angolana, conflito que teve participação do Brasil e das principais potências da Guerra Fria
Por Norberto Liberator
Colaboraram Mylena Fraiha e Guilherme Correia
A ancestralidade e a guerra
Gabriel Ambrósio nasceu e cresceu em meio aos anos de guerra. Natural da província do Zaire, é licenciado em Letras pela PUC Goiás, mestre em Estudos de Linguagens pela UFMS e autor do livro “Áfricas Ocultas”, no qual explora aspectos sócio-religiosos tradicionais africanos e como eles impactam a história do continente. Ambrósio conversou com a Badaró sobre o conflito em Angola, sua influência sobre a produção literária do país e seus efeitos nos dias atuais.
O pesquisador explica que, durante a Guerra Anticolonial – travada contra Portugal e que se antecipou ao conflito civil –, a religiosidade e a ligação com a ancestralidade foram centrais para os movimentos de libertação. “Havia a crença de que as balas que vinham das tropas opostas às de Portugal não poderiam matar os nativos. As pessoas tinham fé na espiritualidade africana. De que a sua força ancestral os protegeria. E claro, houve contextos em que foram protegidos, nas guerras, principalmente no começo, onde eles não tinham armamento”.
Para Ambrósio, a espiritualidade dos guerrilheiros angolanos os incentivou a travar sua luta, já que se encontravam em desvantagem em relação ao poderio militar. “Em Angola, começou com pedaço de pau, punhal e facões. Foram esses os instrumentos usados para começar a atacar os portugueses nas fazendas, principalmente no norte – Cassanje, Malanje, Mbongo”, explica.
Ele também destaca o papel que os idiomas locais e os códigos de escrita tiveram na resistência ao colonialismo. “A língua portuguesa era fácil de ser decodificada. Hoje, nós temos alguns jovens que não têm nem um pouco de noção sobre as línguas africanas faladas em Angola, mas no passado antigo, combatentes tinham domínio de uma, duas, três, quatro ou mais línguas nativas. Do ponto de vista linguístico, tem pouco mais de 30 línguas em Angola”.
Ambrósio explica que essas línguas costumavam ser utilizadas como forma de driblar o controle português, já que os colonizadores não as dominavam. “Me recordo que as forças tinham um código de escrita que usava oralidade, mas também uma escrita que não era oficial, ou seja, os termos eram codificados e isso circulava no centro da cidade – na capital, Luanda –, onde havia o governo geral de Angola e portugueses”.
Gabriel afirma que os portugueses “não conseguiram decodificar como eram escritas e quais mensagens eram aquelas”. O professor lembra que essas passagens fazem parte da historiografia oficial do país. “Isso está registrado na história de Angola. Para ver como foram importantes as línguas africanas, a sua oralidade e a sua espiritualidade”.
O pesquisador acredita que tais tradições têm se perdido e lamenta que, diante da globalização capitalista, o continente africano esteja atualmente entregue ao neoliberalismo e, politicamente, haja pouco espaço para a busca por uma identidade própria. “O que tem acontecido hoje, inclusive, pelos próprios países africanos, do ponto de vista geral e em particular em Angola, é a agenda ocidental. Não temos uma agenda que é africana, uma agenda que os países africanos seguem”, conclui.
A outra guerra angolana: Cabinda
Paralelamente à guerra civil que opôs o MPLA à Unita e à FNLA, uma região vivia um conflito separatista contra forças angolanas. Trata-se de Cabinda, província localizada entre os dois Congos – Congo Brazzaville e Congo Democrático –, fora do território de Angola. A região convive ainda hoje com movimentos armados que lutam por independência. O principal grupo é a Frente para Libertação do Enclave de Cabinda (Flec).
Durante o ano de 2022, as Forças Armadas Cabindesas (FAC), braço armado da Flec, e as Forças Armadas Angolanas travaram algumas batalhas. No dia 11 de abril, houve confrontos nos povoados de Kisungo e Tando Masele, no município de Belize. Angola vai às urnas em agosto e os independentistas pedem à população que boicotem o pleito.
Gabriel Ambrósio aponta que as FAC já existiam e tinham força nos anos 70 do século XX. “Os cabindas desde os anos anteriores a 1975, quando se decretou independência, já tinham praticamente um exército. Esse exército, até hoje, ainda existe. Têm havido algumas integrações, mas não são suficientes para agradar a todos”, afirma. “Cabinda não teve paz do ponto de vista do calar das armas”.
O professor acredita que, embora ainda haja a crença em libertação por parte de alguns militantes separatistas, o que mais influencia os grupos por independência é o desejo por autonomia econômica. “Existem aqueles que são mais presentes, não querem desvincular de suas ideias, mas também a questão territorial e principalmente do ponto de vista econômico. Cabinda é uma região econômica muito forte. Lá tem muita riqueza. Petróleo e madeira”.
Caminhos e descaminhos do MPLA
O MPLA abandonou sua orientação marxista em 1990, durante a profunda crise econômica e política nos países do Leste Europeu, então socialistas e governados por partidos teoricamente marxistas. A decisão foi tomada durante o congresso do partido naquele ano (VIDAL, 2016). Definiu-se, então, que Angola adotaria um sistema “multipartidarista” na política e “de mercado” na economia. No ano seguinte, a já desintegrada União Soviética deixaria de existir.
Gabriel Ambrósio destaca o papel central do partido no aparelhamento das instituições. “Quando a gente fala da política de Angola, a gente está falando exatamente do MPLA, já que o partido está no poder desde a independência do país”. Para ele, quando o MPLA ainda exalta a simbologia e o discurso marxistas, “trata-se de um marxismo falacioso, porque ele não se dá na prática. Alguns jornalistas que acompanho, de anos anteriores e, especificamente, de jornais privados, diziam que o MPLA havia traído a si próprio”.
José Eduardo dos Santos permaneceu no poder até 2017. Foram 38 anos de governo. “Zé Du” foi acusado de enriquecer a partir da corrupção e às custas dos baixos indicadores sociais da população. Sua filha, Isabel dos Santos, chegou a ser considerada, pela revista estadunidense Forbes, a mulher mais rica da África e a oitava do mundo.
Isabel não consta mais na lista de bilionários da Forbes. Quando João Lourenço, também do MPLA, assumiu a presidência da República em 2017, demitiu a socialite do cargo de presidente da Sonangol, empresa estatal que explora o petróleo angolano. A gestão de Lourenço tem a transparência e o combate à corrupção como algumas de suas principais bandeiras, em uma tentativa de recuperar a credibilidade do partido, que opositores afirmam ser responsável pela pobreza no país.
Ambrósio, que tem como objeto de pesquisa a obra do escritor Pepetela, destaca que o autor angolano é um dos críticos do partido. “O próprio Pepetela, que até os anos 80 foi vinculado ao MPLA, também traz em sua obra muitas questões voltadas à política. Pepetela conhece bem a história do MPLA e também o critica”. Baseado no escritor, Gabriel Ambrósio afirma que “o partido em si, politicamente, não tem uma ideologia própria, que reflete no sentido prático. Podem até ter um estatuto ou regulamentos em que se coloca o marxismo, mas só existem no plano utópico – como o próprio Pepetela intitula seu livro”.
Porém, nem tudo em relação ao governo de Zé Du são críticas. O ex-presidente (à época, no cargo) foi eleito “Homem do Ano” pela revista Africa World, em 2014, devido a seus “esforços pela paz”. Uma das alcunhas pela qual é chamado por apoiadores é “arquiteto da paz”, devido às negociações desde o início de seu governo até o acordo que deu fim definitivo à guerra, em 2002.
A opinião sobre Santos divide os angolanos, já que, por um lado, apoiadores exaltam sua habilidade de negociação; e por outro, no entanto, são apontados os baixos índices em relação à saúde, moradia, transporte, educação e economia, além da corrupção endêmica que marcou seu governo.
Angola sofreu com séculos de colonialismo, venda de sua população para escravidão, guerras e pressões do capital internacional, não sendo possível apontar um governante recente como responsável pelos baixos índices de desenvolvimento. Por outro lado, críticos apontam que, em quase quatro décadas de governo, pouco se avançou em termos sociais e econômicos, enquanto a fortuna familiar do ex-presidente crescia.
Se, por um lado, José Eduardo dos Santos não é o “tirano sanguinário” que a abordagem da imprensa ocidental – não raramente com contornos racistas – frequentemente tenta transparecer, por outro, foi um líder apegado ao capital, que abandonou sua ideologia e não representou os anseios da sociedade igualitária com que seu antecessor e mentor, Agostinho Neto, um dia sonhou para Angola e para o mundo.
Referências
AGOSTINHO, Feliciano Paulo. GUERRA EM ANGOLA. Academia Militar – Direção de Ensino. 2011.
Novo Jornal. Brasil entrou na guerra civil em Angola ao lado da FNLA de Holden Roberto contra o MPLA de Agostinho Neto – Investigação. 2019.
NUNES, Fernando José Matias. A GUERRA CIVIL ANGOLANA NO CONTEXTO DA GUERRA FRIA: da Independência à Guerra por Procuração. Escola de Guerra Naval. 2020.
Portal de Angola. UNITA explica aliança com “Apartheid”. 2014.
RTP. Assinatura do Acordo de Alvor. 2018.
VIDAL, Nuno. O MPLA e a governação: entre internacionalismo progressista marxista e pragmatismo liberal-nacionalista. 2016.
1 Comment
A Guerra Desnecessária
PREFÁCIO
A luta anti-colonial angolana foi extremamente complexa devido ao seu quadro de lutas internas e à existência de três movimentos políticos, divididos por rivalidades tribais, ideológicas e pessoais, todos eles procurando o acesso ao poder.
Devido a um acidente que lhe provocou um hematoma cerebral, António de Oliveira Salazar, o ditador autoritário de Portugal, foi afastado do governo em 1968 e faleceu em 1970. Na liderança do regime, foi substituído por Marcelo Caetano.
Supostamente, dos três movimentos nacionalistas angolanos existentes à data do golpe português de 25 de abril de 1974, a UNITA, apesar de se dizer que contava com várias vezes o número de seguidores dos seus rivais, era – segundo muitas opiniões coincidentes – o movimento de libertação mais fraco no plano militar, não dispondo de armamentos suficientes, e gozava também de escassa influência política na cena internacional.
Há quem considere que Jonas Savimbi, o líder da UNITA, perdeu os favores de Fidel Castro por duas razões:
– as relações com Ernesto «Che» Guevara a partir do Congresso da Unidade Africana em Dar es Salam, em 1965
– as suas tendências pró-China.
Várias fontes afirmam que os dois nunca chegaram a conhecer-se. No entanto, no livro intitulado Dulces Guerreros Cubanos, o escritor Norberto Fuentes inclui dados que me levam a concluir que ambos se conheceram no ano de 1965 e que viajaram juntos de Dar es Salam para o Cairo.
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